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Delito de Opinião

Uma frase

jpt, 14.01.24

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O Pedro Correia tem a sua rubrica "frase do ano". E eu, sem respeito, intrometo-me e deixo esta - enviaram-me o artigo dizendo-me "lê". E eu li, a coluna de Clara Ferreira Alves no Expresso desta semana. Texto algo escatológico. E que (também) deixa isto:

"o Congresso do PS foi um festival de onanismo".

Uma maionese

jpt, 14.04.23

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Sei que os meus amigos têm acompanhado com interesse os meus postais sobre temas gastronómicos. [Adenda para o Delito de Opinião: postais que coloco principalmente no meu mural de Facebook e alguns também no meu blog individual]. Assim sendo aqui regresso a essa matéria. Hoje com uma receita de maionese retórica, bem do agrado dos comensais... "alternativos".

"Os Princípios e as Práticas"

... comecei a analisar a crescente prevalência e maior visibilidade do poder cru em relação ao poder cozido [eu, jpt, detesto esses ditos "emoji" e por isso prefiro assinalar esta grosseira "apropriação cultural" da dicotomia do grande Lévi-Strauss com uns valentes !!!] tendo-me centrado numa das manifestações deste fenómeno, da vitória sobre o adversário ao extermínio do inimigo. Continuo agora a análise, centrando-me na segunda manifestação, a híper-discrepância (sic) entre princípios e práticas.

Uma Híper-Discrepância (sic)

A discrepância entre princípios e práticas é talvez a maior especificidade da modernidade ocidental. Qualquer que seja o tipo de relações de poder (capitalismo, colonialismo e patriarcado) e os campos do seu exercício (político, jurídico, económico, social, religioso, cultural, interpessoal), a proclamação dos princípios e dos valores universais tende a estar em contradição com as práticas concretas do exercício do poder por parte de quem o detém. O que neste domínio é ainda mais específico da modernidade ocidental é o facto de essa contradição passar despercebida na opinião pública e ser mesmo considerada como não existente.  (...)

Este mecanismo de supressão das contradições reside no que designo por linha abissal, uma linha radical que desde o século XVI divide a humanidade em dois grupos: os plenamente humanos e os sub-humanos, sendo estes últimos o conjunto dos corpos colonizados, racializados e sexualizados. 

Se é verdade que a contradição entre princípios e práticas sempre existiu, ela é hoje mais evidente do que nunca. (...)"

Boaventura Sousa Santos, "Os princípios e as práticas", Jornal de Letras, 17 de Novembro de 2021, p. 30.

Os Hipopótamos Extraviados

jpt, 18.03.23

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"Os programas de rádio da manhã e os noticiários da noite, as colunas de opinião que toda a gente lia e os bloguistas que ninguém lia, todos se interrogavam se seria necessário matar os hipopótamos extraviados, se não bastaria acorrentá-los, anestesiá-los, devolvê-los a África;..."

(Juan Gabriel Vásquez, O Barulho das Coisas ao Cair, Objectiva, 2012, tradução de Vasco Gato.)

O Patriotismo

jpt, 04.02.23

"...patriotism - a somewhat discredited sentiment, because the delicacy of our humanitarians regards it as a relic of barbarism ... It requires a certain greatness of soul to interpret patriotism worthily - or else a sincerity of feeling denied to the vulgar refinement of modern thought which cannot understand the august simplicity of a sentiment proceeding from the very nature of things and men". 

(Joseph Conrad, Prince Roman, Selected Short Stories, Wordsworth, 1997, p. 206).

 

 

Neste Fevereiro cumpre-se um ano de guerra na Europa. A qual vem implicando um enorme esforço assente no "patriotismo", o ucraniano. E é interessante ver como na Europa, e por cá, a extrema-direita "soberanista" logo se tombou por simpatias pela força imperial agressora contra o que sempre diz defender, as tais nações, nisso confluindo com a esquerda comunista, esta que sempre se reclama de avessa aos "impérios". Sendo os democratas, mais ou menos confederativos, os grandes apoiantes desse esforço patriótico. De como a realidade bem mostra a falácia das demagogias.

Apropriação cultural e Kipling

jpt, 24.08.22

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Há um mês uma actriz de telenovelas entrançou o cabelo e logo se desencadeou a polémica - a qual não se deveu à sempre aludida "estação parva" mas sim à evidente "era tonta" à qual alguns nos querem vincular. Entre académicos e activistas lá se fizeram ouvir os argumentos do costume, e mesmo "autocríticas públicas" até pungentes - e as declarações do músico Agir disso foram um caso paradigmático. E nessa mostra o músico, e os tantos que com ele concordam, a involução intelectual sofrida no país. Desde que alguém perguntou "Pode alguém ser quem não é" e à questão lhe juntou "A corda d'um outro serve-me no pé / Nos dois punhos, nas mãos, no pescoço," até este actual patético exemplo de contrição por "apropriação cultural" feito por um músico de ascendência portuguesa que se tatua e faz jazz. E que pode ir actuar à Festa do "Avante" sem ali aventar a impertinência das "opções de classe" do doutor Álvaro Cunhal ou do engenheiro Carlos Carvalhas, entre tantos outros - tema, de facto, similar e que há algumas décadas era brandido por estupores similares aos de hoje.

Enfim, a nossa historieta do final de Julho fez-me lembrar Kipling. Sei que brandir o "campeão literário" do colonialismo britânico é, hoje em dia, algo desconfortável - e ao ver-me com o livro que abaixo citarei a minha filha deu-me, com bonomia, a conhecer este delicioso episódio de Boris Johnson em visita à Birmânia em 2017, citando o clássico colonial Mandalay , algo "not appropriate" diz-lhe, com a fleuma possível neste pós-império, o embaixador britânico.

Mas ainda assim recupero Kipling, a entrada do pequeno conto "Para lá da cerca", um passeio sobre os males da interracialidade, a bárbara crueldade oriental e a imoralidade ocidental desencadeadas pelo "pular da cerca", pela "incorrecção" dir-se-ia hoje, do inglês Cristopher (claro) Trejago: 

"Haja o que houver um homem deve manter-se fiel à sua casta, raça e credo. Que o branco continue a ser branco e o preto, preto. Assim, o que quer que ocorra de mal faz parte do curso natural das coisas - não é repentino, nem estranho, nem inesperado." ("Para lá da cerca", Três Contos da Índia, 2008, p. 11. Tradução de José Luís Luna). 

Ou seja, e para estes muitos d'agora, Kipling afinal é "much appropriate"...

Crónica do Porto-Sporting (3-0)

jpt, 21.08.22

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Medram, já viçosos, os suculentos rebentos da figueira mais vizinha...

E "A velhice tem outro predicado (tem vários, olá se tem!): (...) estarmos a ver um jogo de futebol, sabendo vagamente quais são os times, assistirmos impávidos a puxões e caneladas, termos a visão para ir comer uma sandes de presunto e, entretanto, o resultado passou de 0-0 para 3-0, o que também não tem importância nenhuma, porque todos andamos cá para perder e ganhar. (...)

A velhice, ainda, é o repouso sábio e diletante. Começamos a ler se nos dá para isso, a sociologia e o badminton, a história do azulejo ou da ervanária, anúncios de vendas de casas que nem queremos nem podemos comprar, prospectos que nos enfiam na caixa de correio e observações económicas de cabeças financeiras: "Isto é que são milhões, rapaziada." (...)

Envelhecer, enfim, é como o título de uma fita que não me lembro se vi: situação desesperada mas não grave." (Dinis Machado, "Situação desesperada mas não grave", A Liberdade do Drible, Quetzal, 2015, p.84).

Medram, já viçosos, os suculentos rebentos da figueira mais vizinha...

(Nota: quem quiser uma análise mais detalhada do jogo de ontem entre Porto e Sporting pode aqui encontrar a minha abordagem especializada).

Eça e a Rússia (2)

jpt, 01.08.22

Eça_de_Queiroz_(Álbum_das_Glórias,_n.º_9,_Julh

Há tempos citei uma das crónicas de Londres, em que Eça de Queirós se mostrava clarividente a respeito da guerra entre Rússia e Turquia (1877-8). Vários outros trechos se poderão retirar dessas crónicas para sedimentar esse olhar pertinente sobre aquela actualidade,  tanto sobre a referida guerra - que o autor termina por sumarizar como a definitiva expulsão dos muçulmanos da Europa, encetada um milénio antes na Reconquista ibérica -, como sobre outros assuntos: desenvolvimentos tecnológicos, alguma reabilitação da sua querida França após a guerra franco-prussiana, a situação italiana e o papado, etc. Eça era um homem do seu tempo - como todos o são. Nunca foi um visionário, terá sido um jovem contestatário e depois veio sendo um desiludido, mesmo sarcástico, dissecador. 

O que me é aqui interessante foram as reacções de alguns comentadores - em blog e no facebook - àquele meu postal sobre Eça e a Rússia. Logo surgiram os defensores da actual política imperialista russa - essa amálgama de monárquicos ultramontanos ("miguelistas", por assim dizer); fascistas; "frentistas" de extracção comunista - a apontarem Eça de Queirós não só a sua desatenção pelo mundo de então como a sua mediocridade intelectual. É o habitual vitupério anacrónico a la carte... O qual está imenso na moda, como bem mostra este afã na "reescrita da História" que preenche a "nova" esquerda identitarista.

Enfim, foram esses dislates dos adeptos putinófilos que me apelaram a este postal, motivo para regressar ao delicioso "Álbum de Glórias", uma preciosa colecção de perfis da Lisboa de finais de XIX, com desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro e textos de vários autores, especialmente de Guilherme Azevedo (João Rialto) e de Ramalho Ortigão (João Ribaixo). E assim aqui deixo o que sobre Eça - afinal tão medíocre, a crermos nos putinófilos de hoje - desenhou Bordalo Pinheiro e escreveu Guilherme Azevedo, seus contemporâneos:

"Quando ele, há alguns anos, soltou os primeiros vagidos nos folhetins da Gazeta de Portugal, houve antigos escritores cheios de introspecção que morreram de ataques apoplécticos! Eça de Queirós era um inspirado estranho que vinha, no concerto ameno da literatura familiar, tocar uma nota desusada e quase incompreensível para muitos espíritos educados no amor e melancolia.

Ele acabara de percorrer a Terra Santa, sentara-se a cismar no Jardim das Oliveiras, e desse jardim não trouxera simplesmente a crença que constitui o fundo único de tantas declarações românticas; do Jardim das Oliveiras arrancara uma pernada com que principiou a desancar a antiga retórica do país, destronando os velhos tropos e lançando os fundamentos daquele estilo fotográfico que é o seu grande poder e uma das suas grandes glórias.

No Oriente não viajara só. A memória de Chateaubriand acompanhara-o, e Leconte de Lisle e Charles Baudelaire, que eram então triunfadores, fizeram com ele o percurso da Terra Santa. Desta camaradagem estranha resultou a original feição que Eça de Queirós imprimiu nas figuras bíblicas tão nossas conhecidas e que então, pela primeira vez, se apresentavam diante de nós falando uma linguagem meio apocalíptica e meia humana, que estava muito longe de ser a linguagem oficial do velho cristianismo clássico. 

O destino fez dele em seguida administrador do concelho de Leiria. Assim como o Jordão lhe revelara a Antiguidade, o Lis revelara-lhe a realidade. O místico sublime morrera: principiava o autor do Crime do Padre Amaro (...). O vidente transformou-se num anatomista. Dentro da sociedade portuguesa existiam coisas de que alguns já teriam suspeitado mas que ninguém ainda trouxera claramente à superfície." (...)

E agora, século e meio, no afã de defenderem o indefensável, assomam os remanescentes desses patéticos românticos, hiper-reaccionários, no saudosismo da pretérita "Nação" que imaginam ter existido e/ou da épica "Revolução" pela qual anseiam, sebásticos, e brandem a "linguagem oficial" de hoje, esta do vil anacronismo punitivo. Eça ainda os incomoda. Que melhor elogio se pode dar a um legado literário e intelectual?

Eça e a Rússia

jpt, 06.07.22

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Enquanto foi cônsul em Newcastle, Eça de Queirós escreveu estas "Crónicas de Londres" em 1877/8, 15 textos publicados no jornal A Actualidade, os quais vieram a ser coligidos em livro apenas aquando do centenário do seu nascimento (Editorial Aviz, 1944). E ainda bem que o foram. Não tanto pela sua ironia, cáustica até roçar o sarcasmo, e nisso eivada de moralismo, sobre as características da sociedade inglesa, as quais, como lhe foi muito comum, tomava como tiques. Mas muito mais pela forma como dali ecoava o mundo - e nisso muito a França de Mac-Mahon, e de Hugo, ainda que esta não seja aqui sombra tutelar -, assim informando o rincão, nisso deixando um olhar que aparece hoje imensamente contemporâneo. Nas reflexões sobre a influência da imprensa, a real e a então imaginada, mas também no entusiasmo pelas inovações tecnológicas que tanto a transformavam, sem com isso deixar de cutucar os desmandos informativos a que ia assistindo.

Nestes textos há uma enorme actualidade que sobreviveu na verve de então, agora ainda mais patente pela atenção analítica - ora em tons sarcásticos ora militantes - à guerra russo-turca que decorria, essa sequela da guerra da Crimeia de vinte anos antes, mais uma etapa dos anseios moscovitas de aceder ao Mediterrâneo. Embrenhado no debate britânico de então, entre os radicais pacifistas e os paladinos da intervenção em prol da Turquia, Eça deixou páginas esplêndidas. Entre elas escolho estes dois trechos- tão contemporâneos que de difícil digestão para muitos literatos de ardor russófilo, esses que por cá ainda abundam:

- 10 de Janeiro de 1878

"Onde estão os tempos saudosos em que cada telegrama nos trazia uma vitória turca? Onde estão êsses dias em que os correspondentes nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana atroando os céus com o grito de Allah! Allah! e apavorizando divisões russas?

Onde estão os vitoriosos e os ghazis? Onde estão as lágrimas do Imperador da Rússia choradas nas noites de derrota? Onde estão as tardes alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o Czar e o seu Govêrno autoritário, despótico, teocrático, semi-bárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz, cada dia, é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxadada cavada na sepultura da Turquia. O Czar não só não é destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão alucinado, que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijando-lhe as botas, tocar com a ponta dos dedos na sua espada santa! E são os ministros do Sultão, que dizem ao novo Parlamento em Constantinopla: Estamos perdidos, rendamo-nos!

É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um govêrno inimigo de tôda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor poder explorar pelos impostos, que condena um romancista ou um poeta a prisão perpétua, se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa todo o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de govêrno a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres convêm, e que civiliza as raças de civilização inferior - destruindo-as.

Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo Sultão: uma tão rica porção de território europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa e asiàticamente passiva, é certamente uma perda para a civilização, é uma esterilização de fôrça produtiva; mas se o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia - hurrah! pela Turquia! hurrah! pelo chino ou pelo mongol! hurrah! por qualquer povo negro ou nu, que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Govêrno do Czar! (...) (183-185)

- 26 de Janeiro de 1878

"Um dos meus grandes ódios políticos é a Rússia; não o povo russo, que tem qualidades magníficas, mas o Govêrno russo, que não só exerce o despotismo em sua casa, mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. (...) o grande paladino do absolutismo na Europa; em tôda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava, ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor oficial do despotismo. 

O actual Czar (...) tem apoiado com a sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, tôdas as tentativas mais ou menos aventureiras que se têem feito contra o livre espírito da época: foi êle que mais embaraçou e contrariou o movimento liberal de 68 em Espanha; foi ele que deu o mais alto aplauso ao Ministério Broglie, de ominosa memória; foi dêle que D. Carlos, na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu desejo seria colocar o Conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal, restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à maneira como a Rússia é governada, tornam-no pouco simpático a todo o espírito liberal." (...) (201-202)

O "Babygro" político: Marcelo Rebelo de Sousa

jpt, 17.04.21

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(Postal também colocado aqui)

Artur Portela (durante décadas conhecido como Portela Filho) morreu há pouco. Das minhas estantes paternas recuperei-lhe alguns livros, em particular estas colectâneas "A Funda", belo mostruário da década de 1970. Deste quarto volume (Editora Arcádia, 1974) retiro este texto, de Janeiro de 1974, um elogio a Marcelo Rebelo de Sousa. Será interessante 47 anos depois não só ler a memória daquele final do Estado Novo, mas também observar o actual presidente a partir deste texto:

O "babygro" político

Era o filho pródigo do Regime. / Fizera, no Direito, a ideologia, a família moral, o destino histórico. / Estava talhado, calibrado, destinado. / Não era um acidente - era uma raça. / Tinha, sobre a cabeça, a estrela. Na fronte, o halo. No olhar, a certeza. No sorriso, a sorte.

E quando passava, nos corredores pombalinos do poder, soltando a sua risada aguda, o seu gesto largo, todos os barões, acercando, cochichadamente, as cabeças, o seguiam com um olhar terno. / Era Marcello. / Era Rebello. / Era De Souza. / E, excessivamente, Nuno.

Foi o escândalo. / Foi o escândalo quando ele, recusando sob Martinez, a reprise, rechaçando, sob Dias Rosas, a tarimba, apareceu por sobre o ombro Pestana & Brito de Francismo Balsemão, a espreitar. / Era a fronda do Expresso. / Não quiseram crer. 

E, no entanto, era bem ele, a vivacidade Tim-Tim, a barba Trotsky, o olhar Harold Loyd. / E o riso fácil, a voz estaladamente metálica, a inteligência extravasante, o brilho incontrolado. / O próprio excesso. / O Regime empalideceu. / A Esquerda riu. E a 3ª Força, ela mesmo, sentiu, naquele Gotha revoltado, naquela lei de  Mendel às avessas, naquela Divisão Azul, um compromisso, uma má consciência, um lastro, uma trela. / Um chumaço. / Uma bala de madeira. / Uma injustiça.

Esperava-se uma imoderação. / Foi uma táctica. / O Regime habituou-se àquela perda. A Esquerda, um momento desperta, mergulhou na sonolência da sua dor. / E os próprios Liberais, por instantes irritados com o metal daquela voz, com a velocidade daquela análise, com a fome daquela super-alimentação política, soltaram, de alívio, um suspiro quando ele se sentou, Z. Zagallo, atrás de Francisco Balsemão.

De resto, que podia Marcello Nuno perante as figuras colossais dos campeões liberais? / Do Norte, chegava, moralmente gigantesco, Sá Carneiro. Do Sul, assomava, consciência viva da Universidade, Miller Guerra. João Salgueiro lançava, para a mesa, na sua luva, o peso inteiro da Sedes, Magalhães Motta movia todo um Congresso. Xavier Pintado desembaciava, do bafo do poder, as suas lentes poderosas. E Francisco Balsemão, de uma rotativa renitentemente Lopes do Souto, arrancava esse "tour de force" que eram 70 000 cópias do "Expresso".

E quando, de trás, da sombra, Marcello Nuno, lápis trémulo, soerguia uma qualquer sugestão, corria, em redor da mesa, um sorriso paternal. / Parecia ser o fim das mais belas esperanças. / O Regime enxugou, por ele, a sua última lágrima. / Fora o príncipe - era o pobre.

Como foi que aconteceu - sabem-no poucos. / Os Liberais, por instantes sob o fogo dos projectores, apagam-se. Um a um. Como lâmpadas de uma peça proibida. / Sá Carneiro é já um bronze a si próprio. A Sedes converte-se num Rotary de quadros. Magalhães Motta está pulindo, inutilmente, a tabuleta de advogado. Xavier Pintado perde o fôlego. E Francisco Balsemão faz Porsche.

Vai-se a ver - e quem está? / Está - quem o diria? - Marcello Nuno. / Só ele se move. Só ele existe. Só ele manobra. / Ele é, nas eleições, a única carta nova dos liberais. O seu único talento. A sua única voz forte e original. A sua única manobra. 

A 2ª página do "Expresso" é ele. A 3ª página do "Expresso" é ele. É ele que flirta com  a Oposição. É ele que desmantela aquele barão A. N. P. / Os títulos são ele. / Os itálicos são ele. / A manobra é ele. / Sá Carneiro faz grandeza. Miller Guerra faz pitoresco. Francisco Balsemão faz charme. / Marcello Nuno faz política.

Há, em tudo isto, a inteligência descompassad da imaturidade? / Há. / Há, em tudo isto, o intelectualismo, a abstracção, o jogo, o luxo, o revanchismo, o edipismo? / Há. / Há, em tudo isto, Freud e Júlio Verne, Luís XIV quando jovem e Douglas Fairbanks Júnior, José António Primo de Rivera e Mickey Rooney? / Há. 

Mas como é possível que a 3ª Força não tenha envergadura para absorver esta descarga eléctrica, para sublimar este escândalo de qualidade, para disciplinar este brilhantismo avulso e lúdico? / Não tem ela a sua disciplina ideológica, a sua hierarquia moral, a sua separação de poderes, o seu ministério sombra, a sua escrita em dia, a sua poeira assente, o seu espírito de seriedade, a sua mochila, o seu colete, o seu polimento? / O seu primeiro jovem turco vai logo a Ataturk? / Que é isto - uma força ou um terreno vago?

Os Liberais acabaram? / Não necessariamente. Mas já fizeram a sua adolescência histórica. / E ainda não sairam dela. / Isto que prova? / Prova que a 3ª Força é a impaciência da 1ª Força. / Prova que a política não é apenas uma generosidade mas também uma hereditariedade. / Prova que a vida política portuguesa se conta pelos dedos - e que a 3ª Força tem o seu Pulgarzinho. / Acontece com Marcello Nuno esta coisa cara aos monárquicos - a vocação política como bem moral de raiz. 

O pai Miller Guerra ofereceu ao filho Miller Guerra, talvez, um estetoscópio de brinquedo. / O pai Sá Carneiro ofereceu ao filho Sá Carneiro, talvez, uma toga de ganga. / O tio Balsemão ofereceu ao sobrinho Balsemão, talvez, uma rotativa de latão. / A Marcello Nuno deram, talvez, 99 000 quilómetros quadrados de esperança e dez milhões de bonecos de pasta. / É o que se chama - um "Babygro" político. 

Tem ainda outra vantagem. / Decisiva, essa. / O ser meu amigo. / E, claro, meu adversário.

Nota: Troquei os parágrafos utilizados pelo autor pela barra ("/") apenas para tornar o texto menos longo no suporte de blog.

 

John Le Carré em sete citações

Pedro Correia, 21.12.20

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«Todo o poder corrompe, mas alguém tem de governar.»

A Toupeira (1974)

 

 

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«Dos fortes sei eu proteger-me. Deus me livre dos fracos.»

A Gente de Smiley (1979)

 

 

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«A lealdade em excesso pode ser uma terrível maldição. É que pode vir um dia em que não haja mais nada nem ninguém a quem servir.»

A Casa da Rússia (1989)

 

 

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«Nós, os seres humanos, somos umas armas muito perigosas. E mais perigosas ainda nas nossas fraquezas. Sabemos tanto sobre o poder dos outros. E tão pouco sobre o nosso.»

O Nosso Jogo (1995)

 

 

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«As mulheres fazem os lares, os homens fazem as guerras.»

O Fiel Jardineiro (2001)

 

 

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«É um dos grandes problemas do nosso mundo moderno, sabe? O esquecimento. A vítima nunca esquece. Pergunte a um irlandês o que os ingleses lhe fizeram em 1920 e ele dir-lhe-á o dia do mês, a hora e o nome de todos os homens que eles mataram. Pergunte a um iraniano o que os ingleses lhe fizeram em 1953 e ele dir-lhe-á. O filho dele dir-lhe-á. O neto dele dir-lhe-á. E quando ele tiver um bisneto, também lhe dirá. (...) Ignorar a história é ignorar o lobo à porta.»

Um Homem Muito Procurado (2008)

 

 

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«O que é a memória? Devíamos encontrar outro nome para a maneira como vemos os acontecimentos passados que permanecem vivos dentro de nós.»

O Túnel de Pombos (2016)

Botar Abaixo o Hemingway?

jpt, 28.06.20

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Há em várias cidades um punhado de estátuas de Hemingway. Deixo um excerto do autobiográfico "As Verdes Colinas de África", escrito em 1935. Talvez seja um exemplo apropriado para uma era em que as sensibilidades pretéritas andam a ser avaliadas. A preto e branco ...

"M'Cola foi, aos saltos, pela montanha abaixo e, através do riacho, mesmo no lado oposto ao nosso, surgiu um rinoceronte a correr, num trote ligeiro, pela parte de cima da margem. Quando o observávamos, apressou o passou e correu, em trote rápido, perpendicularmente à beira da estrada. Era de um vermelho sujo, o chifre muito visível, e não havia nada de pesado nos seus movimentos, rápidos e deliberados. Ao vê-lo, senti-me excitado. 

- Vai atravessar o regato - observou Pop - Está ao alcance do tiro.

M'Cola pôs-me a Springfield na mão. Abri-a para me certificar de que estava carregada. O rinoceronte estava fora da minha vista, mas distinguia-se o agitar do capim alto. 

- A que distância julga que pode estar?

- A uns quatrocentos metros.

- Hei-de apanhar esse malandro.

Conservei-me alerta, procurando deliberadamente acalmar-me, fazendo cessar a excitação como quem fecha uma válvula, entrando naquele estado impessoal que se atinge ao fazer pontaria. 

O animal surgiu no regato baixo e pedregoso. Naquele momento apenas pensava em que era perfeitamente possível alvejá-lo, mas que para isso era necessário alcançá-lo e ultrapassá-lo. Alcancei-o, ultrapassei-o e disparei. Ouvi o ruído da bala e, como animal seguia a trote, esta pareceu-me ter explodido mais à frente. Com um resfolegar sibilante, caiu prostrado, esparrinhando água e roncando. Disparei de novo, levantando uma coluna de água atrás dele. Como tentasse escapar-se para a relva, voltei a disparar. (...)

Droopy correu. Carreguei a espingarda e corri atrás dele. Metade dos homens do acampamento estavam espalhados pelas colinas (...). O rinoceronte tinha-se dirigido precisamente para debaixo do lugar onde eles se encontravam e subia o vale em direcção ao sítio onde se perdia na floresta. (...)

O rinoceronte estava no capim alto, atrás de uma qualquer moita. Enquanto avançávamos, ouvimos um roncar surdo, quase um gemido. O ruído voltou a ouvir-se, terminando desta vez com um suspiro sufocado pelo sangue. Droopy ria.  (...) Sabíamos onde estava o animal e, ao aproximarmo-nos, lentamente, abrindo passagem pelo mato alto, descobrimo-lo. Estava morto, caído sobre um dos flancos. (...)

Quando chegou o grupo todo, voltámos o rinoceronte de forma a ficar como que numa posição de ajoelhado e cortámos o capim em volta para tirarmos fotografias. (....) ali estava com a sua comprida carcaça, pesados flancos, de aspecto pré-histórico, a pele como borracha vulcanizada e vagamente transparente, com a cicatriz de uma ferida causada por uma cornada e depois picada pelos pássaros, a cauda grossa, redonda e aguçada, carraças de mil patas formigando-lhe no corpo, as orelhas franjadas de pêlos, olhinhos de porco, com musgo na base do chifre, que lhe saía da parte de frente do focinho. (...) Era um animal dos diabos! (...)

- Estou louco de satisfação - confessei."

(Ernest Hemingway, As Verdes Colinas de África, Livros do Brasil, 77-81. Tradução de Guilherme de Castilho. Edição original em inglês de 1935)

 

Sun Tzu escrevia em inglês?

Pedro Correia, 28.06.19

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Na minha livraria preferida, espreito as novidades literárias. Novos romances, por exemplo. Há sempre vários à disposição dos leitores.

Pego num deles, espreito a primeira página. Traz citação. Coisa fina: é de Sun Tzu. A Arte da Guerra, clássico com várias traduções em português. 

Mas esta citação surge em inglês, idioma que o admirável filósofo chinês, nascido no século VI antes de Cristo, não dominava. Desde logo porque a língua imortalizada por Shakespeare, Byron e Dickens só começou a generalizar-se, no seu figurino actual, cerca de mil anos depois.

Excluindo o chinês original, só faria sentido, portanto, que uma frase destas surgisse no nosso idioma como epígrafe de um romance escrito por um autor português e destinado a leitores portugueses. O inglês, aqui, indicia apenas aculturação bacoca e espúria. Algo digno de um pesca-frases em modo rápido nesse amplo mar da palha que é o Google.

Passei adiante, claro. Sem necessitar de ler mais nada.

Da arte do possível

Pedro Correia, 27.01.17

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«O ainda jovem Mario Vargas Llosa perguntou certa vez a Jorge Luis Borges, numa entrevista para a televisão francesa, o que era para ele a política. O grande escritor argentino deu-lhe uma resposta lapidar: "É uma das formas do tédio." Esta frase reflecte exemplarmente o carácter fastidioso da vida política, que só pode ser protagonizada com eficácia por quem sinta genuína vocação pela condução dos destinos de uma determinada comunidade - a nível de freguesia, município, região ou país - sem temer os choques que o exercício da governação sempre enfrenta.

A política é a arte do possível aplicada num momento muito concreto e numa circunstância muito específica: compete aos intelectuais como Borges, sonhadores e visionários por natureza, imaginar outros mundos, imunes à implacável e entediante lógica dos factos. Não admira que uma das primeiras recomendações que os políticos veteranos costumam dar aos seus jovens colegas é a de ajustar os desejos às realidades: em política, raras vezes compensa ter razão antes do tempo.»

 

Excerto do verbete POLÍTICA, do livro Política de A a Z

(edição Contraponto, 2017)

Clarice Lispector

Patrícia Reis, 16.12.16

Viver em sociedade é um desafio porque às vezes ficamos presos a determinadas normas que nos obrigam a seguir regras limitadoras do nosso ser ou do nosso não-ser...
Quero dizer com isso que nós temos, no mínimo, duas personalidades: a objetiva, que todos ao nosso redor conhece; e a subjetiva... Em alguns momentos, esta se mostra tão misteriosa que se perguntarmos - Quem somos? Não saberemos dizer ao certo!!!
Agora de uma coisa eu tenho certeza: sempre devemos ser autênticos, as pessoas precisam nos aceitar pelo que somos e não pelo que parecemos ser... Aqui reside o eterno conflito da aparência x essência. E você... O que pensa disso?


Que desafio, hein?
"... Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la..."

Perto do Coração Selvagem - p.55

Eduardo Prado Coelho

Patrícia Reis, 25.08.16

"O mais terrível é sentirmos a irreversibilidade do tempo. Que mesmo quando tudo se repete, já nada se repete, pela primeira vez. E que nós nos gastamos como borrachas na demorada corrosão das coisas. Um dia acordamos e já não é a primeira vez. A não ser quando a paixão nos diz que, nupcial e navegante, cada gesto de amor é sempre o primeiro."

Passagem de Nível

Francisca Prieto, 12.10.15

“(...) Outra pergunta que comecei a fazer a mim mesma foi a seguinte: a tendência predominantemente pessimista que os meus pensamentos têm vindo a experimentar nestes últimos dias dever-se-á ao estado do mundo, que é mau e piora mais depressa do que podemos esperar salvá-lo, o que me inquieta e enfraquece – ou dever-se-á simplesmente ao nível insuficiente das hormonas tiroideias, o que significaria que o estado do mundo não é tão assustador como tende a parecer-me, e me deveria levar a dizer de mim para mim: lembra-te do teu hipotiroidismo e acredita que o estado do mundo acabará por se recompor.”

(Lydia Davis, Contos Completos – Diário da Tiróide)