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Delito de Opinião

Sobre Wilson Filipe e a generosidade da esquerda

Paulo Sousa, 28.12.20

Já por várias vezes senti que se tivesse crescido numa herdade ou à volta de uma fábrica onde o proprietário fosse um arrogante plenipotenciário, abusador no trato e faltoso nos direitos, a mensagem comunista teria sido para mim muitíssimo apelativa.

O esforço para entender o imaginário em que se baseia a lógica de parte de esquerda, e que constitui o mainstream português das últimas décadas, é bem menor depois de ler Fernando Namora, ou outro autor do neo-realismo da nossa literatura.

Numa versão italiana, o filme Novecento de Bernardo Bertotolucci é também um excelente exemplo disto mesmo. Aquela enorme bandeira vermelha tecida com as pequenas bandeiras vermelhas guardadas secretamente em casa, que são cosidas todas juntas no dia da libertação do fascismo, por acaso também num 25 de Abril, é incrível. Toda a concepção do filme é grandiosa, a infância das personagens, um proprietário e um assalariado que nasceram no mesmo dia em 1900, foi filmada na Primavera, a sua idade adulta passa-se no Verão e no Outono e no Inverno chega o fascismo. O avô, Alfredo Berlingheri, é representado por um Burt Lencaster que por ter gostado do conceito da obra aceitou representar gratuitamente. O calor, as cores e a energia da Primavera da infância são substituídos pelo frio e pelo gelo da ditadura. Este tempo frio e cruel é personalizado magnificamente pelos abusos perversos do cruel Átila (Donald Sutherland) e da sua amante, Regina.

Na versão de coleccionador do filme, Bertolucci relata que chegou a pedir à Academia Soviética um actor para dar corpo ao assalariado Olmo Dalco, mas que desistiu logo depois de lhe terem começado a pedir o script da obra. Esta personagem acabou por ser representada por um Gérard Depardieu em início de carreira, e que ali contracena com outra estrela maior em ascensão, Robert de Niro.

Bertolucci relata nessa mesma versão de coleccionador, que a rodagem do filme se foi arrastando, semanas após semanas, meses após meses, e dentro do staff do filme algumas relações amorosas foram constituídas. Quando ele decidiu que estava na hora acabar o filme, sentiu que estava a interromper equilíbrios que tinham sido ali estabelecidos. A revolta e o mau-estar sentiram-se de imediato.

Novecento.jpg

Vi este filme pela primeira vez na Cinemateca em duas sessões (são 5h17m!), legendado em castelhano e, devido à sobrelotação, só consegui lugar sentado no corredor central da sala. Este texto não estava para ser sobre este filme que, pelos muitos momentos fortes e por se tratar efectivamente de uma obra-prima do cinema, merecia um post próprio.

Com tudo isto em mente, entendo que ser de esquerda, mais ou menos revolucionária, é como um grito de revolta, é um acto de generosidade e de humanismo. Mas, e aqui reside a sua fraqueza, na sua acção pretende esmagar a natureza humana.

Na história da nossa recente democracia, existem vários momentos onde estas duas visões estão em confronto, mas em nenhuma encontro a força e a genuinidade como no debate sobre a propriedade da enxada, no filme de Thomas Harlam, rodado na herdade da Torre Bela em Abril de 1975, e em que Wilson Filipe é um dos seus protagonistas.

"Qual é o valor da tua ferramenta?" podia ter sido uma pergunta feita no Novecento de Bertolucci, mas foi feita em Manique do Intendente no prelúdio do Verão Quente de 1975. "Amanhã tiram-me as botas e ficam da cooperativa! Daqui a nada o que eu visto e o que eu calço é da cooperativa!" diz o incrédulo nos amanhãs que cantam.

A injustiça pela incorrecta distribuição de riqueza será uma camada adicional não contemplada pelos estudos de Adam Smith. Entre muitas coisas (a mão invisível será o seu conceito mais conhecido e, atenção não estamos a falar do governo de José Sócrates, o príncipe da esquerda!) preocupou-se em entender como é que a riqueza se acumulava em algumas regiões e noutras não. Ele reparou que nem o talhante, nem o cervejeiro nem o padeiro agiam por benevolência, mas apenas considerando os seus próprios interesses. E concluiu que era possível combinar a natureza humana no empenho dos seus interesses próprios, com o bem comum na criação de riqueza para a economia. Defender isto não implica que o talhante, o cervejeiro e o padeiro, sejam impiedosamente egoístas, mas apenas que eles, zelando pelos seus interesses pessoais, acrescentam riqueza à sociedade e à economia, e se o bolo for maior, haverá mais para distribuir. Adam Smith não fala nesta redistribuição mas eu acho que desde que não se sacrifique a capacidade de criação de riqueza, a redistribuição faz todo sentido.

A esquerda mais aguerrida, não aceita esta lógica. Prefere de longe que seja o estado, e os seus zelosos funcionários, a definir as acções do talhante, do cervejeiro e do padeiro. O estado, ou a cooperativa, deve ser o dono das enxadas e, mesmo sabendo que a história da ocupação desta herdade é apenas mais uma das inúmeras tentativas em expropriar a natureza humana, insistem em repetir a fórmula que repetidamente tem trazido fome e miséria aos que já eram mais pobres.

Tudo este texto foi desencadeado pelo desaparecimento de Wilson Filipe, uma das figuras que lideraram a ocupação da herdade da Terra Bela em 1975 e que defendeu a apropriação dos bens privados pela cooperativa. Não duvido da sua coragem, da sua sede de justiça e da sua humanidade. Foi apenas, como muitos dos idealistas de esquerda, derrotado pela realidade e pela natureza humana.

Quem nos escova a alma? (Cine 2)

João Carvalho, 08.11.09

Corrupção, escutas, compadrio, processos, descrédito, investigações, inquéritos, suspensões, interrogatórios, detenções, arranjismo, prisões... Notícias atrás de notícias, há qualquer coisa neste país que me recorda A Canção de Lisboa: a zanga entre o Vasco (Vasco Santana) e a Alice (Beatriz Costa) na cozinha, com pratos partidos e massa tenra pelo ar.

– Vou-me embora desta casa, p'ra nunca mais voltar! P'ra nunca mais voltar! Adeus p'ra sempre, mulher ingrata. Adeus. Vou-me embora, p'ra nunca... Que porcaria... P'ra nunca mais voltar! Adeus. Adeus.

– Não faz cá falta nenhuma. Urso!

– ... Nunca mais! Nunca mais voltar!... Ó raparigas, lavem-me a cara, limpem-me o casaco, escovem-me a alma...

Obrigado, João Benárd da Costa!

André Couto, 08.01.09

Recebi uma notícia triste: por razões de saúde João Bénard da Costa vai sair da Cinemateca Portuguesa. Ainda que não o saiba, o actual Director do Museu do Cinema teve um papel importante na minha formação. Foram muitas e preciosas as horas que passei nas salas, esplanada, café e restaurante da Cinemateca, espaço do qual sou sócio. Ao longos dos 28 anos que dedicou à Casa (longevidade impar num cargo público), João Bérnard da Costa proporcionou a milhares o contacto com fitas, actores, realizadores e culturas cinematográficas a que jamais há acesso pelas vias comuns.

É com tristeza que o vejo abandonar a sua Casa, na esperança que o caminho que traçou continue a ser trilhado. Espero também que rapidamente se restabeleça.

Obrigado, João Bénard da Costa!