"Ice Merchants", a curta-metragem de animação de João Gonzalez que tem encantado o público em festivais de cinema por todo o mundo e que se tornou na primeira obra de produção portuguesa a ser nomeada para um Óscar - na categoria de Melhor Curta de Animação -, pode por estes dias ser vista em salas de cinema de Norte a Sul, em sessões de curta duração. E se merece ser vista em sala, esta animação lindíssima e emocionante, exemplo perfeito da vitalidade e da qualidade de dois formatos cinematográficos frequentemente menosprezados pelo nosso público - a curta, e a animação (quem conhece sabe que temos trabalhos de altíssima qualidade nestes campos). Vão ver, pois vale a pena - a qualidade da animação e do enredo não deixarão ninguém indiferente.
É ético, pois requerido, que amanhã entre a Pátria em pousio, todos nós no dever de seguirmos "concentrados na selecção", assim no empenho comum de que os Nossos venham a regressar das (luxuosas) areias arábicas com o místico - e regenerador - "caneco", qual Graal actual. A rota começará às 16 horas, num temível embate com os ferozes ganeses, sempre protegidos pelos seus ímpios manipanços. Cruzado esse Cabo, e se assim nos acudirem São Jorge e o Grande Engenheiro Santos, nos dias seguintes esperam-nos outras tormentas impostas por acoitadas hostes nórdicas, dinamarquesas, alemãs, belgas. Ou, pior ainda, pela maldosa vizinha, esta vil peçonha espanhola.
Mas apesar da grandeza da Missão há indulgência para que entretanto.nos ausentemos desse dadivoso estupor frenético, nisso simularmos o normal quotidiano - desde que o façamos apenas por breves momentos, que não abalem ou mesmo rompam a comunhão que nos engrandece lusos.
E o primeiro desses momentos autorizados ocorre já amanhã, logo após a conclusão do glorioso episódio dos das "Quinas" - às 19 horas na Cinemateca Nacional é estreado o filme "Editor contra", de Luis Alvarães, centrando na vida do peculiar editor Fernando Ribeiro de Mello (haverá quem logo o associe à editora Afrodite - até pelo recente livro de Pedro Piedade Marques que lhe foi dedicado).
Ou seja, e para os da Grande Lisboa: jogo terminado, cinzeiros despejados, vasilhame apartado, restos dos víveres guardados. E ala que se faz tarde, que o Metro ou qualquer bolt ou uber (n)os colocará na Cinemateca a tempo.
E depois do filme poderemos regressar à Nação televisiva, congregando-nos nos comentários à patriótica demonstração dos nossos bem-amados "Quinas".
Este documentário "Sita: a vida e o tempo de Sita Valles", é mais uma investida da realizadora Margarida Cardoso ao ocaso colonial. Ao vê-lo logo recordei o excelente "O Mar em Casablanca" de Francisco José Viegas (talvez o meu romance preferido daquele autor), que aflorou o terrível episódio. Mas, e para além dessa minha deriva, como é óbvio logo associei este recente filme a outras obras de Cardoso, o "A Costa dos Murmúrios" (com base no romance de Lídia Jorge) e, em particular, o excelente "Yvone Kane", neste caso pela patente similitude temática - e, num âmbito mais alargado dessa indagação sobre aquele período histórico também é relevante o documentário "Kuxa Kanema - o Nascimento do Cinema", debruçado sobre o inicial processo cinematográfico moçambicano (o texto começa por uma alusão aos "cinco séculos de colonialismo" mas essa derrapagem não é mácula suficiente para deslustrar o trabalho).
Não faço estas associações pela superficial nota de "género" - aquele mero reconhecimento da mulher realizadora que indaga o(s) processo(s) histórico(s) através de três personagens/personalidades mulheres, que será prisma que pouco me ilumina. Interessa-me a pertinência (e competência) da realizadora no seu vasculhar do que pode - àqueles que se refugiam na forma de incompreensão que é o espanto - aparentar ser o absurdo na história. Mas o qual é, de facto, o horrível histórico que tanto vigorou naquele período do final do colonialismo português e das alvoradas das novas nações. Como nos anteriores e posteriores períodos, noto, pois segue esse horror bem omnipresente.
A sinopse deste documentário está disseminada, o que torna desnecessário que a repita. Apenas friso o que me ocorreu durante o longo filme (quase três horas). Por um lado, o não terem sido abordadas as diferentes facetas daquele horror, no qual morreram Sita Valles, seu marido, seu irmão e cerca de 30 mil indivíduos. Não será isso um defeito, mas uma característica que foi objectivo da realizadora, o centramento no ambiente formativo daquela militante. Valles, de uma família oriunda de Goa e da pequena-burguesia luandense - e a sua inserção social, denotando menores barreiras raciais do que as existentes no Moçambique coevo, é apenas aflorada - é recordada através de documentos pessoais, depoimentos de familiares, amigos próximos de Luanda e de seus correligionários durante o período de residência em Portugal. Não há uma única voz contrastante ou, pelo menos, afastada. Alguém a quem ela, ou suas causas e objectivos, fosse antipática. Seja de quem foi então militante do MPLA ou do PCP, seja de adversários políticos lato sensu. E assim segue ela, a sua memória, algo acarinhada, nisso até enublada. E dos seus companheiros finais - do propalado movimento de Nito Alves - nada fica, nem do seu afirmado líder.
O que fui vendo foi a formação de uma jovem progressivamente radicalizada - desde o anticolonialismo e aversão ao racismo inicial até à sua formação comunista em Portugal e, depois, o seu extremar aquando do regresso a Angola (patente num até trágico trecho de uma sua carta à família na qual ecoa a retórica oficial, em tom crítico, aquilo de que "o MPLA não é comunista"). Tratava-se de uma peculiar visão do real, que não é bem delineada nos depoimentos - talvez por nunca ter sido sistematizada pela militante - e sobre a qual algo podemos intuir através da leitura do opúsculo "África - Colonialismo e Socialismo", de algum esquematismo interpretativo, publicado nesse ano de 1977 pelo seu irmão Edgar Valles, o qual neste filme surge como fonte primordial e explicitando-se como mais moderado, e até descrente, do que a irmã.
Honestamente, ao longo do documentário - acima de tudo pela secura dos trechos das suas cartas aos seus pais, bem como pelo que se pode depreender da sua efervescência pessoal através de alguns dos testemunhos dos que lhe foram próximos -, foi-se-me criando uma imagem da militante revolucionária que até algo me envergonha de aqui deixar transparecer, face ao cruel destino que sofreu. Não é apenas a do seu radicalismo até inconsciente, coisa até passível de ser atribuída à juventude, e que não só a conduziu até à morte bem como talvez influenciado a do seu irmão. Pois o que mais me foi patente foi um irredentismo, talvez abrasivo, um fervor crente de intolerância constituído.
Ou seja, e sei o quão cruel e descabido é até este meu sentimento de espectador, se o filme ilustra um acto de horrível despotismo, massacrando pelo menos 30000 dos apoiantes do próprio regime, uma das habituais purgas das pretensas "grandes revoluções" históricas, aquilo que se me foi crescendo ao longo do documentário foi uma sensação de que se tratava de uma mulher horrível. Insuportável, pelo menos. Sim, é um sentimento que pouco me abona, face ao cruel destino de Sita Valles, assassinada grávida nos seus 20 anos. E à magnitude da malevolência daquele regime assassino. E à imoralidade daqueles - alguns dos quais tão laureados vieram a ser - que daquele processo foram cúmplices. Até exultantes, a crer em alguns relatos. Mas foi, e digo-o com pesar, o que me ocorreu ao ver "Sita".
E decerto que por isso, pelo acabrunhamento sentido face a esta minha reacção, que logo após o filme fui até à estante. E comecei a reler o "Les Dieux Ont Soif", talvez procurando justificar-me na memória desse malvado fanático revolucionário Évariste Gamelin que Anatole France nos legou. Para que não caiamos em simpatias. Pelo putativo brilho, carisma, fervor, empenho e competência organizativa deste tipo de militantes...
Adenda: deixo uma entrevista de Margarida Cardoso ao Buala, relativa ao seu trabalho durante a produção deste filme e do "Yvonne Kane".
É muito provável que o cinema português não o saiba, já que o votou ao esquecimento prematuro, mas com a morte de António de Macedo perdeu um dos seus mais talentosos, mais ousados, e mais originais cineastas. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente antes de descobrir a sua obra - era presença assídua no Fórum Fantástico, tanto como convidado como na qualidade de espectador, e ouvi-lo era sempre um privilégio pela lucidez, pelo humor, pelas histórias mirabolantes que contava. Só mais tarde encontrei a literatura fantástica que escreveu e os filmes que realizou enquanto lhe foi possível. Há cerca de um mês vi na Cinemateca a sua primeira longa-metragem, Domingo à Tarde (1965), adaptada do romance de Fernando Namora; mas guardo especial memória de descobrir o assombroso O Princípio da Sabedoria (1975) há poucos anos, numa sessão memorável.
No ano passado, o DocLisboa encerrou com Nos Interstícios da Realidade, ou o Cinema de António de Macedo, um documentário realizado por João Monteiro, do Motelx, sobre o papel fundador de António de Macedo no "Cinema Novo" e sobre a forma como foi sendo afastado e esquecido. Deverá ser exibido dentro de pouco tempo em salas de cinema de todo o país, após a ante-estreia de ontem na Cinemateca, e não o poderia recomendar mais. Entre o documentário e as homenagens dos últimos anos, é possível que a obra de António de Macedo seja resgatada ao esquecimento e que ocupe o seu lugar merecido na história do cinema português. Já era tempo.
Só hoje vejo este "O Barão", de Edgar Pêra. Se eu pensasse que o Pêra, que é um tipo que eu não encontro para aí há 20 anos, serve para representar algum colectivo que me seja mais ou menos vizinho, ou dele emane, este filme seria a forma de me reconciliar com essa qualquer entidade, com a qual a amargura dos anos passados talvez me tenha azedado o amor. Mas não penso isso, até porque me vão dizendo que o homem não mudou muito e nisso não se terá amarfanhado, e ainda bem que assim é. Porque o filme é sumptuoso, iluminado. E dele. E arrebata-me. Uma apneia, avassaladora. Não sobre a qualquer coisa que me dizem os ecos escritos, mas sobre a vida, o poder. E, acima de tudo, a paixão. Fico, agora, já depois, exausto. Da tal apneia. Reconciliado com qualquer coisa. Com o cinema, talvez. Com a grandeza humana, com toda a certeza, essa que produz coisas destas.
A dada altura de “Mudar de Vida” de Paulo Rocha, eis a figura compostíssima da Dra. Maria Barroso descalça, com um molho de lenha à cabeça, sofismada pela boca a fazer biquinho por via da boa dicção aprendida na escola do Teatro Nacional de Amélia Rey Colaço.
Esta imagem poderá resumir todos os equívocos do Cinema Novo português.
Também Portugal, nos anos 50, teve o seu cinéma de papa, só que em vez de ser enfatuado e burguês como o da França modelar, era enfatuado e neo-realista como a Seara Nova. A isto queriam os moços formados no IDHEC obstar com desassossego cinéfilo, e desembraçarem-se do naturalismo a favor do realismo, da pompa cultural em benefício do ar da rua, das peripécias do enredo pelo rigor subjectivo dos factos (uma frase que só é paradoxal para quem não viu “À Bout de Souffle”).
A história é de quem a vence e tão retumbante foi a vitória do Cinema Novo que ainda hoje, passado meio século, o cinema português vai-se fazendo e pensando em torno do seu eixo programático. Ficou assim para o cânone que “Belarmino” (1964) de Fernando Lopes e “Os Verdes Anos” (1963) de Paulo Rocha, constituem pedras basilares e inamovíveis da cinematografia nacional. Mas se o primeiro parece ainda hoje perfeito e consonante com o que dele se pedia, já em “Os Verdes Anos”, se o conseguirmos ver sem a gravidade sacerdotal em que o velaram, há ali qualquer coisa que não bate certo – o quê?
O que é, revela-se então em “Mudar de Vida” (1966) e mais cabalmente na cena acima referida. Não é a inverosimilhança, porque em cinema isso é um dom e não um pecado, mas é a impressão de uma realidade não experimentada, abstracta e consumada como um arquétipo, em suma: desvitalizada. Fica-lhe um mérito nada pequeno, que ter a mais bela banda sonora de sempre feita em Portugal, dedilhada por Carlos Paredes.