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Delito de Opinião

Ferrari

Sérgio de Almeida Correia, 30.01.24

Tirando o facto de ser falado em inglês e Il Commendatore ser um cepo nessa língua, mostra bem o que foi o culto das Mille Miglia e porque tantos durante tantos anos se renderam aos seus encantos.

Belíssimas imagens, uma sonoridade invulgar de motores que deixaram muitas saudades, destacando-se os papéis de Adam Driver, da sempre espantosa Penélope Cruz e do jovem que se assume como Piero Lardi Ferrari. A caracterização de Carlo Chiti, com quem me cruzei algumas vezes, está excelente. 

A sequência final, após o acidente de Guidizzolo, embora espectacular, ficou um pouco aquém do que antecedeu e surge como uma quebra na narrativa. Mas nem por isso deixa de ser um belo filme de Michael Mann, concluído, curiosamente, no ano em que a Ferrari venceu a Corrida do Século.

A ver, e talvez a rever se houver tempo para apreciar alguns detalhes.

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O Pensamento "Woke"

jpt, 28.01.24

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Vejo o "E tudo o vento levou", que há muito não revia. Chega agora numa cópia restaurada há cerca de uma década, a avivar-lhe, mesmo que em mera televisão, algum do brilho fílmico que incendiou os cinemas aquando do seu aparecimento, fenómeno que foi. Lembro-me, vagamente, da primeira vez que o vi, petiz junto à minha mãe em cinema de grande tela - talvez o "Monumental", bem antes deste ser uma vulgata envidraçada de vendilhões do templo, talvez o "Império", também antes deste ser um templo de vendilhões.

Ela adorava o filme, percebi depois e lembro agora, saudoso, que por venerar Scarlett, feita arquétipo de pessoa, suplantando-se entre a candura e a estratégia, numa franqueza ardilosa, símbolo da mulher adequado ao circundante, mais necessário de afirmar em tempos já tão distantes que a boa língua portuguesa sobrevivia sem patacoadas como "resilência"... Ao longo dos anos regressei ao filme algumas vezes, percebendo que - afinal - articula o dramalhão comercial com o desfazer dos aparentes estereótipos, pois não só desfraldando as fraquezas masculinas como escorrendo algum sarcasmo com o estertor daquela nada bela "Belle Époque" escravista. Num filme de guerra sem guerra, assim sem heroísmos encenados, nisso subreptícias justificativas...

Mas ontem nem pensei nisso. Sexta-feira à noite fiquei a ver o filme ao lado dela, Marília, enquanto o meu pai António ia lendo na sua poltrona, alheado como (quase) sempre da televisão. Tinham vindo passar o serão, agradados com a visita que lhes fizera de manhã no cendrário dos Olivais - onde acorrera por razões outras, - tendo-me demorado, ali, junto ao que deles me resta. Até me sentir qual o Anthony Hopkins no final do "O Pai" que vi há dias, que foi o sinal para partir, que nada é bom em demasia.

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Depois do tão esperado e obrigatório "After all, tomorrow is another day", a mãe foi-se deitar e fiquei, como é habitual, de conversa com o pai. Ele disse-me que estou a fumar demais e, como é óbvio, resmungou com a pepineira do "Gone With the Wind". Foi o (por mim ansiado) sinal para politizarmos. Precipitei-me para o controlo e puxei o filme atrás - coisa que ele nunca faz, estranhando estas novas tecnologias - até ao princípio. E logo concordámos no ditirambo contra este pensamento "woke", paupérrimo arremedo de reflexão. Tanto barulho fazem os seus "activistas" para expurgar a história, para tutelar mentes, para "analisar" o "abissal" mundo. E para apenas saracotearem coisas como esta: enfrentar um filme destes, com o impacto que teve, quase quatro horas de filme, num argumento com as camadas que tem, e julgam relevante e necessário anunciá-lo como "produto da sua época e retrata preconceitos raciais e étnicos", como se houvesse algo que não o seja. E é com esta pobre mentalidade que se agitam, ufanos na crença de que "para criar um futuro melhor é necessário primeiro conhecer e compreender a história"... Assim?

O pai abanou a cabeça, em desprezo, e nisso tanto concordamos na aversão a esta pobre gente adormecida, enlevada consigo própria, tanto que se dizem "Acordados", essa sempre dita "esquerdalhada". Avancei um pouco o filme e digo-lhe "vê esta cena, pai", o baile no qual a jovem viúva Scarlett dança pela primeira vez, assim quebrando as regras do nojo, com o galhardo Rhett. E ela, enquando rodopia, diz-lhe "Mais uma dança e perderei a minha reputação para sempre", ao que ele responde "Se tiver coragem, pode viver sem a sua reputação". E o  meu pai, o Camarada Pimentel, sorri, anui, nem preciso de lhe explicar o que quero dizer - até porque já cheguei à idade em que não só o compreendo como também ele me percebe. "Querem a história sem "grão", como o dos filmes antigos, a história como "cópia digital restaurada", atiro. "É isso", diz, aceita. E repete que estou a fumar demais. Depois vai dormir. Estando, claro, acordado mas nunca "woke"...

Memória cinéfila de Lisboa

Pedro Correia, 15.12.23

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Monumental (1951-1984): imponente mas malogrado cineteatro
 
Percorro ruas e avenidas de Lisboa e vou-me lembrando dos cinemas que existiam ainda não há muitos anos espalhados pela cidade. Quase todos desapareceram já, devorados pelos novos hábitos de consumo, que nos mandam recolher a casa e olharmos a vida e os filmes pelo quadradinho da televisão.
 
Na Avenida de Marquês de Tomar, atrás da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, existiu em tempos o cinema Berna: abriu em 1970, com uma fita que fez “estrondoso sucesso”, como então se dizia: Borsalino, com Jean-Paul Belmondo e Alain Delon. Outros tempos, outros hábitos: a filmografia francesa arrastava multidões.
 
Outro cinema estreado por essa altura com uma película falada em francês foi o Satélite, ali ao Saldanha, espécie de irmão mais novo do imponente mas malogrado cineteatro Monumental - onde, em criança, Mary Poppins me deslumbrou. Coisas da Vida, assim se chamava a fita inaugural do Satélite, com Romy Schneider e Michel Piccoli. Esteve cerca de um ano em cartaz, algo impossível nos dias que correm.
 
E havia o Apolo 70, atracção máxima no drugstore do mesmo nome, na Rua Júlio Dinis, ao Campo Pequeno: vi lá um dos filmes da minha vida: Apocalypse Now, de Francis Coppola.
 

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Apolo 70 (1971-1990): esteve muito na moda, mas mal chegou à idade adulta
 
No Império – outro cinema que fechou, situado na Alameda Afonso Henriques, vi em estreia Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg. Inesquecível.
 
Nostalgia e cinefilia são dois vocábulos que caminham a par: por mim, associo antigos cinemas de Lisboa a filmes que jamais passarão de moda. No Camões, perto da praça do mesmo nome, vi a Lolita, de Stanley Kubrick. No Caleidoscópio, em pleno jardim do Campo Grande, chorei a rir com Uma Noite na Ópera, dos Irmãos Marx, e empolguei-me com Intriga Internacional, de Alfred Hitchcock.
 
Ligarei sempre o Berna a outro filme de Spielberg, Os Salteadores da Arca Perdida, e a uma película que na altura me encantou e jamais revi: Bem-Vindo, Mr. Chance, do malogrado Hal Ashby. No Satélite, vi A Regra do Jogo, de Jean Renoir. No Mundial (às Picoas), E Tudo o Vento Levou. No São Luiz (ao Chiado), vibrei com o Correspondente de Guerra, de Hitchcock. E recordo como se fosse hoje a Guerra das Estrelas, de George Lucas, em estreia no ecrã gigante do Monumental.
 

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Cinema Alvalade original, inaugurado em 1953 na Avenida de Roma
 
No Estúdio, sala associada ao Império, esteve em exibição durante mais de um ano uma fita do Botsuana que fez furor: Os Deuses Devem Estar Loucos. Não a perdi, claro. Nem Kramer Contra Kramer no City Cine (Picoas), Um Cadáver de Sobremesa no Terminal (em plena estação ferroviária do Rossio, outro enorme sucesso de bilheteira na estreia deste cinema, em 1976), o francês Uns e os Outros no Star (na Avenida Guerra Junqueiro) e A Semente do Diabo no Xenon (na Avenida da Liberdade).
 
Sem esquecer o mítico Quarteto, onde assisti a filmes atrás de filmes – do Expresso da Meia Noite (1978) até Babel (2006). Ou o Alfa (na Gago Coutinho), onde vi Os Pássaros, de Hitchcock. Sem esquecer o Estúdio 444, na Defensores de Chaves; o Pathé (antigo Imperial), a Arroios; o Roxy (antigo Lys), na confluência da Almirante Reis com a Rua dos Anjos; o Aviz e o Ávila, na Duque de Ávila (assisti lá, na habitual terceira fila a contar do ecrã, a Vontade Indómita, de King Vidor, com Gary Cooper); o Castil, na Rua Castilho; o Fonte Nova e o Turim, na Estrada de Benfica; o ABCine, na Praça de Alvalade; o Roma, na avenida homónima; o Cine 222, na Avenida da Praia da Vitória; o Cinebloco, na 5 de Outubro; o Europa, em Campo de Ourique; o Zodíaco, na Rua Conde Redondo; o 7.ª Arte, junto ao viaduto dos comboios de Entrecampos; e o Cine AC Santos, num espaço comercial da Avenida da Igreja (onde vi A Morte de um Apostador Chinês, de John Cassavetes).
 
E, claro, havia o Eden, nos Restauradores: recordo-me ali da antestreia de um filme português em grande estilo, ao jeito de uma gala de Hollywood - A Vida É Bela?, de Luís Galvão Teles, com Nicolau Breyner no principal papel.
 
Do outro lado da Avenida, era o Condes: vi lá Serenata à Chuva e A Rainha Africana, entre outros clássicos. Mais acima, o Tivoli (onde apreciei o delirante Doutor Estranhoamor, de Kubrick) e o São Jorge, vocacionado para produções britânicas (uma das últimas a que ali assisti foi O Paciente Inglês).
 
Entre os meus favoritos, durante anos, contava-se o Londres, na Avenida de Roma, que chegou a ter as cadeiras mais confortáveis das salas de Lisboa: vi lá em estreia A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, ainda com Mia Farrow como protagonista. Também o King, inicialmente chamado Vox, que acompanhei mesmo até encerrar por absoluta falta de investimento e manifesta falta de espectadores. VolverLos Abrazos Rotos, de Pedro Almodóvar, foram dois dos últimos filmes que ali me cativaram. Nunca os esquecerei.
 

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Nimas, de 1975: um dos raros sobreviventes da era do cinema com porta para a rua
 
Destes espaços autónomos que nos proporcionaram tantas horas de prazer restam muito poucos. Praticamente só o Alvalade, com traça alterada mas ainda resistente, na garbosa Avenida de Roma, o Nimas – inaugurado em 1975, na Avenida 5 de Outubro, com um filme que permaneceu largos meses em cartaz: Chove em Santiago. E o centenário mas renovado Ideal (que também já se chamou Camões), na Rua do Loreto.
 
Nada garante que não venham a fechar também num prazo curto. 
 
Lisboa é uma cidade que descura a sua memória cultural. E que parece ter deixado de gostar de cinema. Agora o que está a dar são as pipocas. 

Cinefilia pouco eficaz

João Pedro Pimenta, 13.12.23

Antes do filme propriamente dito começar, desenrola-se cerca de meia hora de trailers, anúncios publicitários, entre os quais aqueles longuíssimos das operadoras de redes móveis, anúncios "institucionais" e, para acabar, mais outro a apelar para que as pessoas vão ao cinema. Isso antes de uma fita de mais de duas horas e meia.

Percebo a necessidade de publicidade, mas com tanto preliminar, dispensava ao menos o anúncio de apelo às ida às salas de cinema, uma coisa supérflua e redundante, e já agora que as redes telefónicas pusessem anúncios um bocadinho mais curtos. Se assim for, ao menos reinstituam essa nobre tradição cinéfila que é o intervalo entre filmes (pedir um bar à antiga em lugar dos postos de venda de pipocas e refrigerantes já me parece demais).

Já agora, o filme era o tão esperado Napoleão, de Ridley Scott. As cenas de batalha são boas, mas impunha-se mais veracidade histórica, como já tinham avisado, e a coisa resultaria melhor num díptico, um Napoleão com parte I e II. Assim sendo, fica um semi-épico de cadência irregular, um trajecto difícil de perceber e partes saltadas de forma inexplicável.

Diaconisas Sem-Remédio

Pedro Correia, 18.10.23

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Volto hoje a apreciar muito os filmes das décadas de 80 e de 90, quando ainda não havia os tais "consultores de intimidade" que agora pululam por Hollywood à espreita de um mamilo ou uma nádega - os novos censores, de tesoura em riste. A mando das Diaconisas Sem-Remédio.

Havia muito mais liberdade nessas duas décadas do que existe hoje. Nem se compara.

O Caçador

jpt, 26.08.23

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[The Shadows - Theme from The Deer Hunter 1979]

Amigos dados ao cinema, oficiais do ofício, talvez (e muito provavelmente) contestem Cimino, uma espécie de narrador oitocentista. Passantes ex-esquerdistas, agora identitaristas - ainda que, por isso mesmo, sempre pouco ou mal lidos -, talvez ainda critiquem o "reaccionário" Cimino. Mesmo assim partilho o que o zapping me trouxe, que talvez a alguém interesse. No canal Fox Movies está disponível desde hoje "O Caçador". Um filme inesquecível..., que acabo de rever passados tantos anos. Com gáudio.

(E com o tal final imperdoado pelos comunistas de várias extrações, e seus "amigos". Esse mesmo que a história veio confirmar, já agora... E aqui o deixo, para que tantos "intelectuais" de pacotilha possam compreender o que se vem passando (também) desde há décadas. À revelia das suas, tão erradas, perspectivas sobre o real, presente, passado... e futuro. Cimino, o tal "conservador", "reaccionário", entendeu  - no tempo próprio  - o que se passava. Os outros, ufanos de si, nada perceberam, perorando).

 

[The Deer Hunter ending]

 

[Michael Cimino on the final scene in The Deer Hunter]

Kevin Spacey

jpt, 26.07.23

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Na Grã-Bretanha Kevin Spacey foi agora ilibado das acusações de crimes sexuais, que quatro candidatos a indemnizações lhe tinham levantado. Em Outubro passado também fora ilibado de acusações nos Estados Unidos.

O processo que lhe foi feito, nas suas múltiplas vertentes, foi horrível - e sim, daqui a uns anos haverá um filme de "Hollywood" mostrando-o como vítima e todos o considerarão como tal. Mas durante estes últimos seis anos fizeram-no passar um verdadeiro Calvário. Não apenas no ponto pessoal - vasculhado, enxovalhado, julgado, ostracizado. Mas também arrombando-o profissionalmente: despedido, apeado, censurado - chegou-se ao ponto de retirar as suas cenas num filme e atribuir o seu papel ao velho Christopher Plummer, o qual teve o desplante de, antes de morrer, aceitar essa função.

Em Dezembro de 2017 aqui deixei o postal "Viva Spacey", enjoado com a perseguição que lhe faziam e notando o perverso cariz político de todo este processo. Recupero algumas palavras, para quem não tenha paciência para ir ler o texto todo: 

"esta horrível coisa que andam a fazer ao Spacey - despedido e até o apagam de filmes, pura censura diante do silêncio da dita "esquerda europeia", sempre tão atenta às censuras e perversões de Hollywood. É de lembrar, isto é um ambiente criado pelo fundamentalismo "genderista" / "identitarista". Em última análise é autofágico (pois cairá em cima dos seus mais acérrimos defensores, vituperando comportamentos ditos "alternativos).  Pois, de facto, a única coisa de que Spacey é acusado é de ser "promíscuo" (palavra que é um programa político, moralista). Foi moral e profissionalmente linchado por razões políticas - por não se ter assumido como homossexual, e como tal ser uma "fraude", disse o primeiro delator [Anthony Rapp]. Ou seja, por não integrar as fileiras do movimento político "gay". Nisso acusado de violências morais e físicas, e até pedofilia (a monstruosidade dos nossos dias). Mas de facto o gajo não é mais do que um atrevido...".

Enfim, deixo votos que o extraordinário actor possa recuperar a paz de espírito, e nisso a sua vida afectiva e sexual. E também o estatuto profissional que tanto merece, com o seu enorme talento.

Oppenheimer e a Bomba Atómica

João André, 19.07.23

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À esquerda, Robert Oppenheimer. À direita, Cillian Murphy em Oppenheimer.

Estreou esta semana Oppenheimer, o novo filme de Christopher Nolan. Não o vi ainda, embora tencione fazê-lo. Nolan é um cineasta que me enche as medidas quando vejo os seus filmes, embora raramente eu a ele regresse. Não é alguém que me deixe com vontade de esclarecer alguma coisa na história ou na mensagem. Nisso penso que ele é algo simplista (Nolan é um admirador de Michael Bay, cada um que tire as ilações que entender), mas é um cineasta fantástico no que diz respeito à imagem. Não espero que Oppenheimer seja diferente.

Não é no entanto o filme em si nem Nolan que me levam a escrever. É a história da construção da Bomba Atómica. É que esta é uma história incrível, com personagens fascinantes - Robert Oppenheimer talvez seja de facto a mais complexa de todas - e todo um cenário, desde o início do século XX até 1952, quando a primeira bomba de hidrogénio (ou bomba termonuclear, ou bomba de fusão) foi detonada. E toda esta história é contada majestosamente por Richard Rhodes na sua monumental obra The Making of the Atomic Bomb (link na Amazon, link na Wikipedia), um livro fenomenal que já li duas vezes (e ouvi em audiolivro outras duas) e que infelizmente não parece estar publicado em português.

Não vou eu contar num post uma história tão complexa que precisou de mais de 800 páginas para ser colocada em papel. No entanto aponto para pequenos pormenores como a dissolução de duas medalhas Nobel em Copenhaga (para as esconder dos nazis), as preocupações filosóficas de Bohr (que emerge como o maior gigante numa história de gigantes), uma visão de Leo Szilard que evocava um livro de HG Wells, um duo de tia (Lise Meitner) e sobrinho (Otto Frisch) que fizeram descobertas fundamentais no campo, um ataque às instalações da Norsk Hydro (revisitado em Hollywood anos mais tarde) seguido da história de um afundamento de um ferry e de um famoso violinista, descrições horrendas do resultado de bombardeamentos, uma narração em segunda mão das descrições de narradores infiáveis sobre um encontro entre Heisenberg e Bohr, a fuga de Bohr da Dinamarca, a origem de nomes de código, a escolha do cientista mais rápido na equipa de Fermi para levar amostras para análise, etc. O livro é rico em detalhes, explica os princípios técnicos com clareza e simplicidade e pouco a pouco para os leitores os poderem apreender e ainda nos leva mais longe que simplesmente Agosto de 1945, chegando então à "Super" de Teller e Ulam detonada em 1952.

O filme de Nolan foi baseado no livro American Prometheus, uma biografia de Oppenheimer. Será talvez a melhor fonte para o filme, dado que se debruça sobre especificamente Oppenheimer, não sobre a bomba. No entanto, para quem queira adquirir mais informação sobre aquele que terá sido o maior projecto científico da história da Humanidade, o livro de Rhodes será inultrapassável.

Clint Eastwood

jpt, 01.06.23

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(Ontem Clint Eastwood fez 93 anos. No FB da "lisboa" erudita vai polémica sobre o homem, teclam-no qual "fascista", pois de "direita", e, pior ainda, "machola" - um terrível neo-insulto - e etc. Alguns insurgem-se e defendem-no..., citam-se filmes que o "eximem" a tais pecados, etc. Ao ver o relambório lembrei-me de velhos postais que sobre ele botei ao longo dos anos no meu antigo blog ma-schamba. E depois encontrei este, de 2016, no qual mais ou menos resumi o que penso do autor. É certo que também poderia embrulhá-lo em papel de jargão, e com laço conceptual, e até o poderia candidatar a participar no concerto de trinados contra a "macholice". Mas não me parece que viesse a entoar no tom certo. Por isso aqui o coloco, para quem tenha paciência. Ou goste do Clint:) 

Se na actualidade há algum bardo por aí é este e há muito que o encontrei, a fazer-me a vida. De todos os vivos é o meu cineasta preferido e, também, o meu pensador preferido. E compreendo que nos filmes dele, até nos falhados, fico feliz, suspendo todo o juízo crítico. Ora, não é isso o amor? Segue ele pensando o mundo com uma intensidade e uma densidade ímpares, incompreensíveis para os “bem-pensantes” das ideologias lites e muito para além dos pobres boçais que dele retiram o culto de colts, magnums ou drones. Julgo que a paupérrima apreensão da obra de Clint é mesmo o espelho do superficialismo militante do hoje em dia.

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Em todo o lado

João Campos, 13.03.23

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Fotografia de J. Brown/AFP/Getty Images, na Axios.

Que me lembre, a edição de 2023 dos Óscares foi a terceira em que vi um filme de que gostei mesmo muito a ganhar o principal galardão.*

Julgo que em Abril, quando Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo estreou nas salas portuguesas ninguém esperava que, onze meses volvidos, um filme tão peculiar, tão distante na forma e no tom das clássicas películas "isco de Óscar" que estreiam em Novembro e Dezembro (nos Estados Unidos; mais tarde em Portugal, por norma), viesse a ganhar sete em onze estatuetas douradas, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Realizador (realizadores, neste caso), Melhor Actriz Principal, Melhor Actriz Secundária, Melhor Actor Secundário, Melhor Montagem e Melhor Argumento Original. E no entanto cá estamos: um filme que cruza uma aventura de ficção científica com um drama familiar em tons de comédia surrealista conquistou o público e, devagarinho, acabou por convencer a Academia, tradicionalmente conservadora nestas escolhas.

Uma conquista merecida, pois se quisermos ser honestos, o conceito básico de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo tinha tudo para correr mal. Vejamos a premissa: durante uma inspecção do IRS às finanças da sua pequena lavandaria familiar, Evelyn (Michelle Yeoh), imigrante asiática de primeira geração, vê-se arrastada para uma aventura que atravessa vários universos paralelos e múltiplas versões de si mesma, isto enquanto no seu próprio universo tenta perservar o seu negócio, salvar o seu casamento com Waymond (Ke Huy Quan) e evitar alienar a sua filha adolescente, Joy (Stephanie Hsu). Como é bom de ver, há aqui material que daria para fazer vários filmes. Daniel Kwan e Daniel Scheinert podiam ter optado por fazer um drama familiar mais convencional - mais ao jeito dos Óscares - sobre as vagas de imigração, as diferenças geracionais entre quem fica no país de origem, quem parte, e quem já nasce no país de destino, e os traumas que daí resultam. Também podiam puxar pelo lado mais queer da narrativa, explorando essa faceta da personagem de Stephanie Hsu. Ou podiam ter avançado mais directamente pela ficção científica - tanto em formato aventura, saltando pelos universos paralelos (conceito tão na moda nos blockbusters destes tempos), como num registo mais meditativo pelas inúmeras possibilidades que as múltiplas versões de cada um de nós encerram. Qualquer uma destas ideias, se bem executada, poderia dar um bom filme. Qualquer combinação de dois destes conceitos, idem. Todos ao mesmo tempo era no mínimo improvável.

E, no entanto, resulta maravilhosamente. Há uma elegância frenética na forma como Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo mistura e remistura géneros e convenções narrativas, com um argumento espantoso, uma realização segura, uma montagem arrojadíssima - a premissa assim o exige. E, claro, há um elenco incrível - Michelle Yeoh, sempre deslumbrante, a equilibrar de forma superlativa sequências de acção mais alucinantes com os momentos mais dramáticos (e os mais absurdos). Ke Huy Quan - lembram-se do Short Round do segundo Indiana Jones? - faz-lhe um magnífico contraponto, e Stephanie Hsu teve aqui uma estreia em grande - estava também nomeada, mas viu Jamie Lee Curtis vencer pelo seu maravilhoso desempenho como Deirdre, a auditora do IRS a investigar as contas de Evelyn.

(Abro aqui um parêntese a propósito de Jamie Lee Curtis, pois a sua vitória gerou online dois comentários de sinal distinto, ainda que relacionados, que merecem ser dissecados. O primeiro, que esta distinção terá sido mais um prémio de carreira, como a Academia gosta de dar por vezes; e o segundo, recuperando a polémica recente sobre nepo babies - filhos de gente de Hollywood que singra em Hollywood não tanto pelo talento, que podem ter ou não, como pelas portas que os papás e as mamãs abrem, de forma directa ou indirecta. Ora, se este foi um prémio de carreira, então a Academia decidiu premiar uma carreira muito invulgar, daquelas que ficam na memória de um público especializado, mas não da crítica - afinal, Jamie Lee Curtis optou sempre por papéis menos convencionais, em filmes de género que decerto lhe terão dado imenso gozo (ninguém faz aqueles Halloween todos sem amor ao cinema de horror), mas que não seriam as primeiras opções de outras actrizes com o seu talento e com as suas ligações. E se deverá ser inegável que ser filha de Tony Curtis e de Janet Leigh lhe terá aberto imensas portas, parece-me também certo que com essas ligações, e com o talento e o carisma que possui, podia ter andado confortável pela alta roda de Hollywood. Ao invés disso, fez aquilo de que gosta, e fê-lo muito bem. Stephanie Hsu teria sido uma excelente vencedora, tal como a magnífica Angela Basset - e decerto Hong Chao e Kerry Condon, mas não vi os seus filmes; nem por isso, porém, deixou a estatueta dourada de ficar muito bem entregue.)

Ver Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo é como assistir a um acto de malabarismo que vai acrescentado mais e mais bolas, mas que continua a mantê-las todas no ar, como que por magia. Comovemo-nos com o drama de Evelyn, divertimo-nos com a sua aventura tão improvável, ficamos abismados com alguns momentos - eles estão mesmo a mostrar aquilo?. E percebemos que tudo funciona - a aventura é entusiasmante, a comédia faz-nos rir como poucas na memória recente, e a história familiar comove do início ao fim, com um final que não precisa de ser delicodoce ou melodramático para nos deixar satisfeitos. E demonstra que contar uma história dramática não requer a solenidade e a seriedade, quando não o cinismo, de outros filmes contemporâneos. Ver um filme desta natureza, produzido por um estúdio independente que se tem notabilizado por projectos mais arrojados e alternativos, com um elenco de actores e actrizes que muitos já consideravam "fora de prazo", a conquistar tantos prémios é algo extraordinário, se não for mesmo irrepetível. Aproveitemos, então.

Duas últimas notas sobre os Óscares: a primeira, saudando Guillermo Del Toro pela merecidíssima vitória na categoria de Melhor Filme de Animação com o seu "Pinóquio", contando uma história que tão bem conhecemos de forma brilhante e com uma animação stop-motion excepcional. A segunda, lamentando que Ice Merchants, a curta de animação do português João Gonzalez, não tenha ganho o prémio na sua categoria, que me pareceu ter uma competição fortíssima. Julgo que a curta ainda está nas salas, e recomendo muito: com Óscar ou sem Óscar, são quinze minutos de pura magia no cinema.

*Os outros, já agora, foram O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei em 2004 e A Forma da Água em 2018

Falsidade

jpt, 22.01.23

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(JOKER Final Trailer)

Só ontem vi este "Joker", filme já de 2019, com realização de Todd Philips e argumento dele próprio e de Scott Silver, o qual foi na época bastante elogiado, tendo ganho o prestigiado prémio Leão de Ouro no Festival de Veneza. E que lhe valeu os celebrados prémios Óscar para melhor argumento e para melhor actor. Não pude deixar de me indignar com o que ali vi. Pois a trama do filme centra-se na vida de Arthur Fleck, um doente mental que ambiciona tornar-se comediante e cujo rumo delirante o tornará um assassino. Ora a convulsa personagem está a cargo do actor Joaquin Phoenix - o qual, repito, ganhou o Oscar desse ano devido a esta actuação. Acontece que se consultada a biografia de Joaquin Phoenix poder-se-á constatar que o actor não tem essa condição psicológica, não lhe sendo conhecidos distúrbios mentais graves nem tendências homicidas. É assim uma falsidade o que a indústria fílmica norte-americana, "Hollywood", nos apresenta, pois é inaceitável que este actor possa representar os indivíduos que apresentam essas condições - os quais, ainda por cima, são em quase todas as áreas profissionais francamente desvalorizados. Um verdadeiro caso de "crazyfake"...

É certo que no mundo do espectáculo nem tudo é assim tão mau. Hoje mesmo assisti ao filme "O Comediante", no qual o actor Robert de Niro pertinentemente interpreta um actor, papel para o qual não lhe falta legitimidade social. E até por cá as coisas vão melhorando, como se vê no recente caso do teatro municipal S, Luiz, no qual a inaceitável apropriação de um papel de uma personagem transexual por actor heterossexual (um ilegímo caso de "transfake") foi já revertida pela iluminada direcção após justificados protestos públicos. O caminho faz-se caminhando - ainda que citando eu António Machado seja também uma apropriação indevida, um verdadeiro caso de "writerfake"...

Uma obra maior

Paulo Sousa, 06.12.22

Não sei quantas vezes já vi cada um dos filmes da trilogia O Padrinho. Mesmo assim, de cada vez que ali regresso, continuo a conseguir deliciar-me com mais um detalhe. Por vezes encontro um novo, de que nunca tinha notado e vão sendo cada vez mais difíceis de encontrar, outras vezes são apenas um daqueles muitos que preenchem toda a história da família Corleone.

O primeiro filme desta triologia foi lançado em Março de 1972, o que faz deste clássico um belo cinquentão. Há dias revi novamente umas passagens.

Depois de ter assassinado Sollozo e McCluskey num restaurante em Nova Iorque, Michael Corleone (Al Pacino), esconde-se na Sicília profunda. Durante um bucólico passeio a pé até à vila de Corleone, que casualmente lhe deu o nome, Michael conhece a que virá a ser a sua primeira esposa, Apollonia, representada pela lindíssima Simonetta Stefanelli. Tudo isto acontece sob segurança permanente garantida por dois tipos armados de caçadeira.

Toda a sequência é maravilhosa. A música criada por Nino Rota para este trecho é de uma beleza superior.

A cena passa-se no Verão. Numa estrada poeirenta, uns soldados americanos dentro duns Jeep Willys, passam sem parar pelo trio composto de Michael e os seus dois capangas. Estamos no pós-guerra e os americanos são os novos amigos de Itália. Um dos seguranças de Michael acena grita inocentemente para lhes chamar a atenção.

- Take me to América, G.I., hey, hey hey, take me to América, G.I. Clark Gable, Rita Heyworth…

Perante a total indiferença destes, desabafa com um:

- Mannaggia miseria!

Pouco depois, cruzam-se com um grupo de mulheres, onde se destaca Apollonia. Ela e Michael olham-se nos olhos e ele fica como que, nas palavras do seu guarda-costas, “atingido por meteorito”. Mesmo avisado que as mulheres sicilianas são mais perigosas que espingardas, o filho do mafoso novaiorquino não esmoreçe, e o espectador entende que a história não vai ficar por ali.

Para se refrescar, o trio continua a pé até uma tasca ali próxima, o Bar Vitelli. Com tanto calor, um dos seguranças transporta a caçadeira ao ombro enquanto arrasta pelo chão um saco de tiracolo. Ouvem-se uns cães a ladrar à distância e o espectador sente o vento quente que varre a sombra garantida por um toldo ao lado da entrada da tasca. Ao vê-los chegar, o dono do estabelecimento grita para o interior para que tragam vinho para estes clientes. A sonoridade musical da língua italiana dá cor a toda a cena.

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Cena de O Padrinho 1

Depois de elogiar a beleza das mulheres daquela terra (di questo paese)  o trio fica a saber que a Apollonia é filha do dono da tasca. Ele que começa por reagir ofendido pelos comentários que lhes tinha ouvido antes, mas acaba por aceitar o respeitoso pedido de Michael, de poder conhecer e namorar Apollonia.

Após uma breve passagem por um almoço de domingo, onde o endinheirado americano distribui prendas para todos, tudo fica bem encaminhado e, pouco depois, lá vai o par de namorados, num passeio a pé, por um caminho empoeirado. Uns instantes depois vemos que são vigiados de perto por um grupo de mulheres da aldeia. E poucos metros atrás de todos, seguem os capangas de caçadeira em riste.

Adorei fazer este postal. Obrigou-me a ver este excerto três ou quatro vezes.

Angela Lansbury (1925-2022)

João Sousa, 11.10.22

Angela Lansbury as Granny
Angela Landbury em The Company of Wolves

Um colega de escola costumava dizer-me que se alguma vez se cruzasse com Jessica Fletcher, a protagonista de "Crime, Disse Ela", fugiria como do Diabo porque as pessoas tendiam a morrer como moscas à sua volta.

O Sapo faz um resumo da longa carreira de Angela Lansbury, exercício sempre algo ingrato pela necessidade de condensar 80 anos em dois ou três ecrãs de texto (o limite de atenção do internauta-padrão), mas parece-me injusto não haver nem uma menção a um adorável filmezinho de culto de 1984 chamado The Company of Wolves. Na cultura popular, Angela Lansbury será sempre Jessica Fletcher. Eu, quando penso nela, é primeiro como aquela avozinha cheia de superstições licantrópicas.

No DocLisboa

jpt, 09.10.22

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Esta semana decorrerá o festival DocLisboa. Do vasto cardápio que estará disponível aos cinéfilos e aos amadores anotei dois filmes que me compelem a ascender àquele além-Tejo. Trata-se da apresentação - estreia (?) - de "Margot", um filme de Catarina Alves Costa (2022, 72 minutos) dedicado a Margot Dias e ao seu trabalho etnográfico no norte de Moçambique, junto aos macondes (com "c" e não "k", como consta no programa digital do festival, pois - como um dia bem disse o escritor Mia Couto - nada há de mais "africano", qual "respeitoso" "multicultural", nas "k", "w" e "y" do que nas restantes 23 letras), durante os finais de 1950s e inícios de 1960s - para quem desconheça tratava-se da missão coordenada pelo antropólogo Jorge Dias, com o qual Margot Dias era casada, que originou os célebres tomos "Os Macondes de Moçambique".

O outro filme que me convoca à incursão na capital é "Nhinguitimo", curta- metragem (23 minutos, 2021) do realizador moçambicano-brasileiro Licínio de Azevedo, que bem anseio - não só mas também porque baseada no conto homónimo de Luís Bernardo Honwana incluído no seu célebre "Nós Matámos o Cão-Tinhoso" (e até porque andei anos a botar uma coluna chamada Ao Balcão da Cantina, que juntei aqui, e até usei o mesmo nome para um outro conjunto de crónicas, exactamente por influência desse magnífico conto). Para além disso o novo "Nhinguitimo" será acompanhado da projecção do "A Colheita do Diabo", filme de Licínio de Azevedo e Brigitte Bagnol (1987, 54 minutos) que é agora uma raridade. Ou seja, uma sessão imperdível.

A dupla "Nhinguitimo"/"A Colheita do Diabo" será projectada numa única sessão, terça-feira, 11 de Outubro, às 19 horas, na Sala Félix Ribeiro da Cinemateca Portuguesa.

O "Margot" terá uma dupla projecção: também na terça-feira, 11 de Outubro, às 19 horas, no Auditório Emílio Rui Vilar, Culturgest. E no domingo, 16 de Outubro, no Pequeno Auditório da Culturgest, às 22 horas - um tardio horário presumo que destinado a  punir os desprovidos do dom da ubiquidade.

A Animação é para crianças (ou não) - 10

João Campos, 24.06.22

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O Cristal Encantado
Título original: The Dark Crystal
Realização: Jim Henson e Frank Oz
Argumento: David Odell, com base numa história original de Jim Henson
Produção: ITC Entertainment e Henson Associates
Ano: 1982
Duração: 93 minutos
País: EUA

O Cristal Encantado é um dos mais originais filmes de fantasia alguma vez feitos.

Começo por pedir desculpa aos leitores pela batota, a primeira de duas que cometerei ao longo desta série de textos sobre cinema de animação (a segunda ainda poderá ser discutível, mas esta é descarada): O Cristal Encantado não é um filme de animação, mas um filme de marionetas. A sua produção envolveu a construção de cenários reais e a manipulação dos bonecos do Jim Henson Creature Workshop. Dito isto, se ao cinema de animação já custa livrar-se do estigma de desenhos animados serem infantis, para os filmes (cada vez mais raros) de marionetas essa tarefa será ainda mais difícil (sim, eu sei dos Marretas, obrigado), pelo que me parece encaixar bem aqui. E, claro, as marionetas têm uma característica em comum com a animação, para além da vida que ganham com o desempenho de voz: não envelhecem. 

Claro que o motivo verdadeiro é outro: simplesmente apetece-me escrever sobre O Cristal Encantado, sem dúvida um dos meus filmes preferidos, que em 93 minutos mostra um breve momento de um mundo secundário fascinante, e que continua a ser uma revelação quarenta anos volvidos sobre a sua estreia. Aquele mundo, e as criaturas maravilhosas que o habitam, saíram da imaginação prodigiosa de uma das pessoas que mais admiro, e que perdemos demasiado cedo: Jim Henson. Da sua mente fértil saiu a Rua Sésamo, de longe a série mais importante da minha vida, saíram bonecos que se tornaram ícones mundiais, e saíram dois filmes magníficos: O Labirinto, com Jennifer Connely e o grande David Bowie, e este, O Cristal Encantado.

Mas O Cristal Encantado é de alguma forma um corpo estranho na obra de Henson: não só pelo detalhe da construção do universo ficcional de Thra, mas também pela trama mais adulta e mais sombria - a história, afinal, tem como ponto de partida um genocídio que não vemos mas que sentimos presente. Jen, um dos últimos Gelflings vivos, recebe dos enigmáticos Místicos com quem viveu desde criança uma missão: encontrar Aughra, recuperar o fragmento do Cristal Encantado e regenerá-lo, resgatando Thra do domínio cruel dos Skeksis e reestabelendo assim o equilíbrio natural do mundo. 

É essa demanda que serve de fio condutor a O Cristal Encantando, levando o ingénuo Jen a descobrir todo um mundo de criaturas maravilhosas - algumas inocentes, outras nem por isso. A imaginação de Henson encontrou um par à altura no talento de Brian Froud, que elaborou a arte conceptual que está na base de Thra, e o talento do Jim Henson Creature Workshop deu vida aos pachorrentos Místicos, aos tenebrosos Skeksis (decerto as marionetas mais assustadoras de Henson, a par dos Garthim que eles usam em combate), aos inocentes Gelflings, aos efusivos Podlings, à rabugenta Mãe Aughra (com o seu assombroso planetário), ao maravilhoso Fizzgig - enfim, podia continuar a adjectivar cada uma das criaturas de Thra, e mesmo assim não faria justiça ao trabalho notável de Henson e Froud. Afinal, como esquecer a Mãe Aughra, ou o sinistro Chamberlain?

Este mundo, ao mesmo tempo tão detalhado e deixando adivinhar tanto que fica por mostrar, é que faz de O Cristal Encantado um filme tão singular: podemos reconhecer aqui e ali as suas várias influências, mas o todo que Henson, Oz e Froud construíram é absolutamente original, e a mestria técnica que lhe deu vida talvez não tenha ainda hoje paralelo, quarenta anos passados desde a sua estreia. Não há ali grandes efeitos especiais, tirando um ou outro efeito de luz (que envelheceram mal, ao contrário do resto): todos os cenários foram construídos, todas as marionetas foram montadas e animadas. É certo que a trama do filme encaixa com facilidade na clássica jornada do herói, mas as personagens que Jen encontra dão à sua aventura uma textura muito particular, conduzindo a um desfecho que, podendo ser algo previsível, não deixa de ser ousado. E se é verdade que há muito no filme que espectadores mais novos possam apreciar, também é possível que os Skeksis, e uma ou outra cena do filme, possam impressionar um pouco, fazendo de O Cristal Encantado um filme menos "familiar" do que o resto da sua obra.

Henson ainda chegou a imaginar uma sequela, mas as ideias que tinha partiram com ele, na sua morte prematura em 1990. O filme, porém, teve poder suficiente para perdurar, e o seu mundo secundário tem sido alargado ao longo dos anos por outros meios e noutros formatos. Em 2019 estreou na Netflix O Cristal Encantado: A Era da Resistência, uma série maravilhosa que combina efeitos digitais com marionetas extraordinárias, infelizmente só com uma temporada. Olho para as minhas estantes e encontro livros de ilustração, álbuns de banda desenhada e até uma Mãe Aughra a espreitar a um canto. E sei que regressarei ao filme, uma e outra vez, com o mesmo encantamento da primera.

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A minha caixa de Pandora

Maria Dulce Fernandes, 17.06.22

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Tinha eu talvez 6 anos de idade, quando o meu avô Américo chegou uma tarde a casa com uma caixinha escura com um arame rertorcido por cima a que chamavam antena. E à caixa escura, chamavam televisão. Não era novidade para mim ver figuras a preto e branco movimentarem-se a pé, a cavalo, de carroça, de bicicleta, de carro ou até de avião dentro duma janela minúscula, pois acompanhara bastas vezes a minha madrinha a lanches à Provinciana, pequena pastelaria que além das torradinhas tinha uma daquelas caixinhas na parede, para onde a minha madrinha olhava embevecida, seguindo avidamente as aventuras do Mascarilha, o Lone Ranger e seu fiel amigo Tonto, faladas numa linguagem compreensível mas estranha, que era o Português do Brasil. Eu aguardava que, a todo o momento, uma pequena porta se abrisse e as pequenas figuras saíssem após acabar o episisódio, mas para grande desapontamemto o meu as longas esperas foram sempre em vão.

Aquela caixinha escura abriu-me a grande porta do mundo mágico e hilariante que continha as tropelias do Charlot, as burrices do Bucha e Estica, os desenhos animados do irreverente manda Chuva, as ursadas do Zé Colmeia e Catatau, os calhaus dos Flintstones… dezenas, centenas de hora de riso e diversão.

Foi pela mão do meu pai que aos 9 anos de idade vi o meu primeiro filme: a Música no Coração. Não era dobrado, precisei que o pai fosse explicando, mas penso que percebi bem, pois fartei-me de chorar no fim. Mas foi um choro feliz, aliviado, de completa realização. Ainda agora, e seguindo os velhos hábitos do pai, que era um sentimentalão, quando preciso descarregar, vou ver a Música no Coração, a Fuga para a Vitória, o ET ou o Campo de Sonhos; acabo lavada em lágrimas, mas com o espírito muito mais leve.

Há filmes intemporais. Adoro bons argumentos, bons personagens, bons actores e sobretudo bons realizadores.

Adoro Hitchcock: Vertigo, O Homem que Sabia Demais, A Janela Indiscreta, Os Pássaros. De John Houston, O Falcão de Malta; Casablanca, de Michael Curtiz; Até à Eternidade, de Fred Zinnemann; Ben-Hur, de William Wyler; E Tudo o Vento Levou, de Victor Fleming... Muitos, dezenas, centenas, da chamada era de Ouro de Hollywood, e alguns carismáticos, mais recentes, como o Milos Forman, que tornaram imortais personagens como R.P. McMurphy, em Voando Sobre um Ninho de Cucos.

Qualquer Spielbergada é excitante. Os melhores, são sempre os menos divulgados como Amistad, A Cor Púrpura ou Encontros Imediatos do 3.º Grau. A geração mais nova só conhece o Tubarão, o E.T., os Indiana Jones, os Parque Jurássico... muito bem feitos, muito divertidos, muito comerciais, mas A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan ou o recente War Horse são espectaculares e precisos, bons filmes de época, e que sendo também blockbusters, juntaram o útil ao muito agradável.

Depois, vêm todos os filmes de ficção científica, alguns dos quais considero de culto: Star Trek, Star Wars, LOTR, X-Men & Cia da Marvel e DC Comics (os meus favoritos foram os Hell Boy, vá lá saber-se porquê...) e mais recentemente o Avatar, do Mr. Titanic, que não apresentando nenhum argumento sui generis, foi muito bem conseguido.

E todo o universo Marvel e DC, de que eu devorava os comics e agora devoro filme atrás de filme com a mesma devotada excitação. Os Hellboy, por exemplo, foram ambos de uma precisão insuperável.

Há tantos e tão bons, que podia passar dias inteiros a falar sobre eles. Por isso vou rematar com chave de ouro: adoro Tim Burton. Todos os filmes do Tim Burton são fantásticos e têm a capacidade de serem sempre inovadores e de me surpreenderem. Tem uma maneira estranha e sombria de retratar o seu imaginário, o que o torna sonhador, irreal e tétrico em toda a sua grandiosidade. O universo de Tim Burton é povoado de magia criada a partir da matéria de que são feitos os sonhos e os pesadelos e que estranhamente nos catapulta para a bizarra realidade:

“Boys and girls of every age

Wouldn't you like to see something strange?

Come with us and you will see

This, our town of Halloween”…

Este país pode não ser Halloweentown, mas é sem dúvida Holloweenland, e o pior é que o Pesadelo não é só de Antes do Natal, parece que veio para ficar e lamentvelmente por muito tempo.

A Animação é para crianças (ou não) - 9

João Campos, 17.06.22

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Divertida-Mente
Título original: Inside Out
Realização: Pete Docter e Ronnie Del Carmen
Argumento: Pete Docter, Meg LeFauve e Josh Cooley
Baseado numa história de Pete Docter e Ronnie Del Carmen
Produção: Pixar Animated Studios, Walt Disney Pictures
Ano: 2015
Duração: 95 minutos
País: Estados Unidos

Inside Out* é o pináculo criativo da Pixar.

Tenho uma relação algo ambivalente com a Pixar. Por um lado, é-me impossível não reconhecer a enorme qualidade dos seus filmes, da animação aos guiões (e recordo-me sempre do impacto de Toy Story). Por outro lado, sempre que vejo as imagens promocionais dos novos filmes fico com a sensação de que os estúdios estão muito confortáveis com o estilo e o registo que lhe são habituais, não precisando por isso de arriscar muito. E talvez tenham razão: os seus filmes caem bem junto do público e os prémios que interessam estão assegurados à partida. Se formos ver a última década da Pixar, encontramos filmes algo esquecíveis (The Good Dinossaur, Onward), algumas pérolas (Coco, Soul), temas algo batidos (Brave) e um sem número de sequelas que não vou nomear. Neste caldo, Inside Out destaca-se desde logo pela sua absoluta originalidade.

Sim, já vimos em inúmeros filmes, animados ou não, as dores de crescimento das personagens na transição da infância para adolescência. O que até 2015 não tínhamos ainda visto era essa transição a partir do ponto de vista das próprias emoções. É esta a premissa brilhante de Inside Out: seguimos a mudança da jovem Riley e da sua família do Minnesota para São Francisco, e a perturbação emocional que isso lhe causa, através a Alegria, da Tristeza, da Raiva, da Repulsa e do Medo - as emoções que vivem na sua mente e assumem o controlo combinado das suas acções. Perante o impacto da mudança, a Tristeza começa a ganhar preponderância, e perante a ameaça de alterar a carga emocional de várias memórias nucleares de Riley, a Alegria vê-se obrigada a agir. E o resultado dessas acções é desastroso, lançando a Alegria e a Tristeza para uma aventura nos confins da mente da jovem rapariga.

E é na representação da mente humana que Inside Out se revela prodigioso, pela forma como representa de forma tão simples e eficaz conceitos tão abstractos como emoções e memórias. Se aquelas são as protagonistas, estas são um dos principais ganchos narrativos, e o filme em momento algum receia explorar a abstracção e a subjectividade que lhes são inerentes (por exemplo, a noção de que uma memória pode ser diferente dependendo da emoção que nos domina no momento em que a recordamos, o que faz de cada recordação não algo estático, fixo no tempo e no espaço, mas algo fluído e incerto). E ao colocar as emoções no centro da narrativa, Inside Out consegue demonstrar, com uma maturidade surpreendente, como todas as emoções são necessárias para uma existência equilibrada, e que as emoções de carga mais negativa (digamos assim) não só têm o seu lugar, como são absolutamente indispensáveis.

Convenhamos que o que não falta é filmes adultos que não conseguem um décimo da carga emocional que Inside Out alcança nos seus 95 minutos.

A animação colorida, vibrante e expressiva da Pixar é perfeita para Inside Out, dando uma vida singular à mente de Riley e contribuindo de forma decisiva para tornar cada uma das emoções numa personagem única - com Pete Docter e Ronnie Del Carmen a usarem a cor de forma muito engenhosa, com as cores garridas da vida interior de Riley a contrastar com os tons mais esbatidos da sua vida familiar e social. Não há grande volta a dar aqui: para este tema e para este conceito, a animação é o formato artístico superior; nenhuma realização convencional (à falta de melhor termo) conseguiria contar esta história com a mesma eficácia e com o mesmo encantamento. 

*Uma vez mais, recorro ao título original do filme - como é bom de ver, quem quer que tenha adaptado o título da versão portuguesa de Inside Out fez um péssimo trabalho. O título português consegue não só ser um trocadilho desinspiradíssimo, como é também um bom (mau) exemplo do tal preconceito que reduz o cinema de animação aos desenhos animados infantis da manhã e às sessões de cinema da tarde. Enfim, é um título infeliz que está longe, muito longe de fazer justiça àquele que será talvez o melhor filme saído dos estúdios da Pixar até agora.

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A Animação é para crianças (ou não) - 8

João Campos, 10.06.22

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Cidade Assombrada
Título original: Kôkaku Kidôtai (Ghost in the Shell)
Realização: Mamoru Oshii
Argumento: Kazunori Itō
Baseado no manga homónimo de Masamune Shirow (1989-1991)
Produção: Production I.G., Bandai Visual, Manga Entertainment
Ano: 1995
Duração:113 minutos
País: Japão

Ghost in the Shell* será talvez a melhor sequela não-oficial que Blade Runner alguma vez terá.

Trouxe este filme ao Delito pela primeira vez há doze anos, quando publiquei uma série com os meus 15 filmes preferidos de ficção científica - à época, claro. Se repetisse hoje o exercício faria uma lista muito diferente (excepto os três primeiros, que se mantêm, e decerto se manterão por longos anos). Mas dela não retiraria Ghost in the Shell, um filme extraordinário que condensou várias influências do cyberpunk dos anos 80 e 90 para se tornar, também ele, um filme marcante e influente. Voltaria a incluí-lo, e o conhecimento acumulado de mais doze anos de muita ficção científica permitir-me-iam escrever mais algumas linhas.

Referi-o como uma sequela não-oficial de Blade Runner de forma muito livre. Antes de qualquer outra coisa, Ghost in the Shell é a adaptação para cinema de animação da banda desenhada homónima de Masamune Shirow. Será sem dúvida um dos meus três títulos favoritos da Nona Arte, uma história cyberpunk vertiginosa que quebrou algumas das tradições do género, afastando-se das cidades nocturnas e sombrias e de protagonistas criminosos para mostrar uma Newport diurna e futurista, vista pelos olhos de uma força policial de elite. Mas o mangá de Shirow e o filme de Ridley Scott percorrem territórios temáticos similares - a definição de consciência, a relevância da memória, e do que significa ser humano num mundo com corpos artificiais indistinguíveis; e ao adaptar aquelas pranchas densas e detalhadas, Oshii decidiu manter os temas centrais e recuperar o carácter melancólico e soturno (mas nem sempre nocturno) da Los Angeles de Scott.

E tal como Scott, Oshii teve o mérito de entender que adaptar um texto - uma banda desenhada, neste caso - não significa transpor o texto de um formato para outro, exercício que de resto só muito raramente resulta. Assim, a Motoko Kusanagi de Shirow atrevida e bem humorada de Shirow deu lugar à enigmática e introspectiva Major Kusanagi de Oshii, mais adequada à cidade soturna onde a trama de Ghost in the Shell tem lugar. A Secção 9 de Segurança Pública é reduzida aos seus elementos essenciais - Batou, parceiro de Kusanagi, inconfundível com os seus olhos artificiais; Togusa, novato e sem qualquer implante cibernético; e Aramaki, chefe do departamento e profundo conhecedor dos meandros políticos daquele Japão futurista. E a vasta trama do livro é condensada na narrativa do “Puppetmaster”, um hacker com um talento impossível e um segredo impensável. 

O resultado é um filme notável pela forma como gere sequências vertiginosas de acção, momentos de violência quase grotesca, e passagens mais introspectivas com um ritmo perfeito - nada ali está fora do sítio, tudo faz sentido, cada momento alimenta o seguinte sem falta ou excesso. A banda sonora tornou-se icónica, desde o coro do genérico inicial até às batidas minimalistas que pautam o filme (a sequência de planos da cidade à chuva é magnífica e inesquecível). Ghost in the Shell é em simultâneo como thriller, como filme de acção e como trama filosófica, suscitando mais perguntas do que respostas - e em momento algum esses elementos deixam de funcionar.

Que não se pense pelas minhas palavras que Ghost in the Shell se limitou a ir buscar influências ao textos, às pranchas e aos filmes que o antecederam - tal como Akira anos antes, Ghost in the Shell foi uma pedrada no charco da animação japonesa, tornando-se num fenómeno de culto no Japão e no Ocidente, abrindo caminho ao anime na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. As Wachowskis referiram o filme de Oshii como uma das principais influências de The Matrix, e mesmo James Cameron assumiu a inspiração para Avatar. E a Motoko Kusanagi do filme ter-se-á tornado talvez na versão mais conhecida da personagem: nas várias (e excelentes) séries televisivas que se seguiram, a Major está mais próxima da interpretação de Oshii do que da personagem concebida por Shirow. O que demonstra, mais uma vez, como uma boa adaptação pode - deve - ser muito mais do que uma mera transposição.


*Excepcionalmente, não me refiro ao filme pelo seu título em português, por a tradução não fazer qualquer sentido. Percebo a dificuldade de traduzir ou adaptar “ghost” e “shell” dado o significado que assumem no filme - “ghost” como consciência ou até mesmo alma, e “shell” como corpo, sobretudo se artificial. Mas alguém poderia ter feito algum esforço, sei lá.

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