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Delito de Opinião

Kubrick e Polanski no Nimas

João Campos, 08.02.20

Boas notícias para cinéfilos: o Cinema Nimas, uma das poucas salas lisboetas que ainda sobrevive fora de centros comerciais e a exibir cinema mais alternativo, terá em cartaz três clássicos absolutos durante as próximas semanas: A Clockwork Orange (1971) e 2001: A Space Odyssey (1968), de Stanley Kubrick, e Rosemary's Baby (1968), de Roman Polanski. Cada filme contará com duas sessões.

Termos uma sala de cinema a passar Kubrick em 2020 é um privilégio. Como se viu em Dezembro, quando o mesmo Nimas passou Eyes Wide Shut: uma longa fila de espectadores à espera para entrar, e uma sala esgotadíssima. Será a primeira vez que poderei ver A Clockwork Orange numa sala de cinema, e não conto deixar passar a oportunidade (os bilhetes foram comprados há mais de uma semana). O mesmo não posso dizer de 2001: vi-o em cinema três vezes, e tenciono revê-lo mais uma vez (ou duas). Se há filme que pede uma sala de cinema, será sem dúvida este.

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"The Shape of Water", ou o ponto de vista da imaginação

João Campos, 06.03.18

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Sim, Guillermo, ganhaste mesmo - desta vez não houve engano no envelope 

 

Apesar de dar alguma atenção aos prémios norte-americanos do cinema, não costumo esforçar-me para ver todos, ou sequer a maioria, dos filmes nomeados ao Óscar para Melhor Filme. Boa parte dos filmes nomeados, sendo (regra geral) pelo menos bons filmes, ou não me despertam interesse ou não me despertam interesse suficiente para pagar o bilhete de cinema (ou não estrearam ainda por cá, como aconteceu neste ano com Lady Bird, que só chegará às salas portuguesas nos próximos dias). Por norma, acabo por ver um ou dois - os nomeados de ficção científica ou fantasia, quando os há, e um ou outro filme que me chame a atenção. Inevitavelmente, é bastante raro ganhar um filme que eu tenha visto e pelo qual estivesse a torcer. Aconteceu nos prémios de 2004, que finalmente distinguiram a extraordinária adaptação cinematográfica de Peter Jackson a The Lord of the Rings com 11 Óscares para The Return of the King. Aconteceu em 2015, com o  Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) de Alejandro Iñárritu, que não sendo exactamente um filme de género aproxima-se um pouco daqueles territórios temáticos e tem um carácter referencial intrigante (para além de um Michael Keaton inspiradíssimo). E aconteceu em 2018, com o único filme nomeado que vi a conquistar a estatueda dourada: o belíssimo The Shape of Water de Guillermo Del Toro. 

 

É uma combinação curiosa: uma fábula fantástica enquadrada numa trama de espionagem do tempo da Guerra Fria, onde Del Toro actualiza inúmeras referências do cinema que o maravilhou noutros tempos (Creature of the Black Lagoon) e de contos intemporais (A Bela e o Monstro, e as suas múltiplas variações) numa história sobre uma mulher muda e para todos os efeitos invisível e o monstro proverbial, profundamente alienígena e ainda assim mais humano do que os homens que o mantém cativo e o torturam. Mais do que uma história de amor improvável, The Shape of Water é um filme sobre o carácter decisivo dos pequenos gestos, sobre a irrelevância das diferenças, sobre a coragem, sobre a empatia - algo tão em falta nos dias que correm. Juntamos a isto uma grande banda sonora, interpretações notáveis de um grande elenco (o prémio para Melhor Actriz Principal também teria sido bem entregue a Sally Hawkins, e chegará o dia em que se dará o devido valor às interpretações de actores como Doug Jones, eterno colaborador de Del Toro), e o virtuosismo técnico a que os filmes do realizador mexicano já nos habituaram, e temos um digno vencedor do Óscar. 

 

Não será, é certo, o melhor filme da sua carreira - essa distinção caberá sem dúvida ao extraordinário El Laberinto Del Fauno, que nunca chegou à categoria principal dos Óscares por ser falado... em espanhol. Mas nem por isso The Shape of Water deixa de ser um excelente representante tanto de géneros habitualmente desprezados pela crítica como da filmografia e da iconografia inconfundíveis de Del Toro, onde o banal se encontra em constante diálogo com a estranheza. Será sem dúvida um dos realizadores contemporâneos que mais aprecio. Dele recordo HellboyHellboy 2: The Golden Army, duas transposições notáveis e visionárias da banda desenhada de Mike Mignola numa época onde alguns fracassos ruidosos nas adaptações de banda desenhada não deixavam antever o frenesim que se instalaria no género alguns anos mais tarde. E recordo o som e a fúria de Pacific Rim, talvez o mais divertido blockbuster dos últimos anos, que me fez sentir como um miúdo na sala de cinema. É pena que Del Toro nunca chegue a concretizar o derradeiro capítulo da trilogia Hellboy que planeou, e que Ron Perlman tanto queria fazer. Como é pena que tenha acabado por não realizar a adaptação de The Hobbit, como esteve previsto; é provável que tivesse dado uma interpretação muito própria à história clássica de Tolkien, algo que Peter Jackson, amarrado aos espartilhos dos estúdios e ao seu próprio legado na Terra Média, já não conseguiu fazer.

 

Mas ainda ouviremos falar muito dele; oportunidades decerto não faltarão para que Guillermo Del Toro nos encante de novo com as suas fábulas e os seus monstros. E para que volte a demonstrar, como demonstrou em The Shape of Water e como fez questão de sublinhar no seu discurso de Domingo à noite, que a grande ficção de género não tem de se resumir ao escapismo a que muitos a condenam sem a conhecer - ela olha antes para o presente a partir do ponto de vista da imaginação. 

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Que regras tem este jogo?

José Navarro de Andrade, 07.05.12

 

É altura de rever “La Règle du Jeu“ de Jean Renoir. Parece impossível, mas aprende-se muito com o passado. O filme foi estreado em 1939, o ano que hoje sabemos ter sido aquele em que a Europa morreu para o mundo e talvez por isso, pela desvairada ilusão em que todos viviam, literalmente todos, dos comunistas aos fascistas com tudo o que havia pelo meio, suscitou a execração geral.

Porque foi tão odiado então um filme que depois viria ser tão obviamente amado? Porque por exemplo há um estupefacto marquês que a dado passo tem a lucidez e a impotência de dizer: “O que é terrível nesta terra é que todos têm as suas razões”. Tinham, como nesse Outono de 39 se começou a perceber, ou seja, ninguém tinha razão nenhuma porque menos com menos só resulta em mais desgraça.

Rever “La Règle du Jeu” ajuda a desconfiar do poder e da virtude prometida pelo novo senhor que se sentou à mesa no château de França. Quando o marquês do filme se enfada de vez com a confusão instalada no castelo ordena ao criado: “faites cesser cette comédie”, ao que este, sonso e arguto como todos os servos, lhe contesta: “laquelle, Monsieur?”

Vejam como nos pusemos: de boné torcido nas mãos à espera de uma palavra do marquês de Hollande que nos mude o destino, que dele venha um gesto de compreensão e misericórdia com o nosso penar. E enquanto nos prostramos na soleira do portão, negligenciamos que ao fundo do quintal se vai armando uma patuleia de muito má índole. O que sucedeu na Grécia é bem mais feio e decisivo do que as prováveis hesitações do futuro Hollande, porque a barafunda, como se sabe e é patente, grassa sempre das periferias para o miolo.

Serão as ilusões de 39 outra vez? “lequelles, Monsieurs?”

Certos animais de escamas

José Navarro de Andrade, 01.04.12

 


Brilham os olhos de Rita no escuro aquático do medo.

Orson Welles era demasiado inteligente para gostar de metáforas. Com ele era tudo literal. Donde o medo dela, nem é bem medo, será ansiedade?, diante de uma parede de vidro. Sabemos que é azul porque já ali estivemos, mas o que deles vemos é contra uma luz líquida e branca.

“Sigamos o cherne, minha amiga! Desçamos ao fundo do desejo”, segreda-lhe ele, enquanto de costas para que não lhe vejam os olhos, ou os dentes.

E Rita vibra e vê circular o cação, tão esguio na sua pele malhada, num sossego de águas transparentes (foi mesmo assim!):

“Em cada um de nós circula o cherne, quase sempre mentido e olvidado.” Diz ela o que lhe vem à cabeça loira.

Só no fim concordam que se podem beijar sem receio. Entrega-se Rita, multiplicadas Ritas. Vitória literal de Welles. 

 

  

Os filmes da minha vida (31)

Pedro Correia, 19.03.11

 

Sydney Pollack: regresso aos clássicos

 

Por muito que isso hoje nos pareça quase impossível, nesta era em que se veneram os efeitos especiais por computador, houve uma geração de cineastas que acreditou profundamente no trabalho dos actores e valorizou ao máximo a arte da representação.
Foi a geração a que pertenceu Sydney Irwin Pollack (1934-2008).
Ele sabia bem o que era ser actor: os seus primeiros passos em Hollywood foram dados como intérprete de filmes e séries televisivas. Como aconteceu com Arthur Penn, Sidney Lumet, Clint Eastwood, Mike Nichols e Woody Allen, entre vários outros cineastas que começaram por ser actores.
No caso de Pollack, representar foi uma verdadeira escola: chegou até a subir às tábuas da Broadway, entre aplausos generalizados, em peças como A Stone for Danny Fisher (ao lado de Zero Mostel). Na televisão, ficou memorável o seu desempenho na adaptação de Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway (realizada em 1959 por John Frankenheimer). Já atrás das câmaras, ainda em televisão, ganhou experiência como realizador de episódios de Ben Casey, Alfred Hitchcock Hour e Bob Hope Presentes the Chrysler Theatre. Esta última série valeu-lhe um Emmy em 1996.
 
Na era da TV, sentia-se em Pollack a nostalgia da idade de ouro do cinema. Na linha dos cineastas clássicos, ele estava à vontade nos mais diversos géneros – do drama à comédia, do melodrama ao filme de acção. Em duas dezenas de longas-metragens, foi um dos cineastas que devolveram aos espectadores o prazer de olhar, associando entretenimento a obra de arte – lição dos pioneiros que fora esquecida por alguma da geração intermédia.
Contrariando também as tendências dominantes à época, os seus filmes foram veículos para o desempenho quase sempre brilhante da mais diversa gama de actores: ele sabia tirar o melhor partido de cada um. Começando por Robert Redford, que dirigiu em sete películas. Mas também Dustin Hoffman (Tootsie), Paul Newman (A Calúnia), Jane Fonda (Os Cavalos Também se Abatem), Barbra Streisand (O Nosso Amor de Ontem), Faye Dunaway (Os Três Dias do Condor) e Tom Cruise (A Firma).
 
O olhar de Pollack devolve-nos também a confiança na condição humana contra o cinismo dominante na nossa época. Era liberal na tradição americana: acreditava nas virtualidades do indivíduo e na capacidade de regeneração das instituições – também aqui seguindo a linhagem clássica de Hollywood.
Continuou a representar (vimo-lo no cinema, em filmes como Maridos e Mulheres, de Woody Allen, O Jogador, de Robert Altman, ou De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, e até na televisão, em alguns episódios dos Sopranos) e destacou-se ainda como produtor (de muitos dos seus filmes, começando por Os Cavalos Também se Abatem, e também de películas como Os Fabulosos Irmãos Baker, O Talentoso Mr Ripley, Iris, O Americano Tranquilo, Cold Mountain ou Michael Clayton).
Hollywood tratou-o bem: nomeou-o três vezes para o Óscar – por Os Cavalos Também se Abatem (1969), Tootsie (1982) e África Minha (1985). Ganhou com este último: 11 nomeações, sete estatuetas (melhor filme, realização, argumento adaptado, fotografia, direcção artística, som e partitura original de John Barry).
 
“I haard a faaarm in Aaafreekar” – a frase de abertura tornou-se instantaneamente uma das mais famosas do cinema neste inesquecível melodrama inspirado na vida da escritora dinamarquesa Karen Blixen que Orson Welles e David Lean já haviam planeado transpor para a tela.
Alguma crítica torceu o nariz, aludindo ao excesso de sotaque de Meryl Streep e à ausência de sotaque de Robert Redford. Mas o público aderiu sem reservas. Pollack foi, de resto, um cineasta que sempre teve melhor relação com o público do que com a crítica: é a sina de muitos grandes autores.
O Nosso Amor de Ontem (The Way We Were (1973), outro melodrama, recebeu vaias de muitos críticos, mas os espectadores aplaudiram a inesperada química no ecrã entre Katie Morosky (Streisand) e Hubbell Gardiner (Redford).
Como se tinham rendido ao desempenho de Jane Fonda em Os Cavalos Também se Abatem – retrato impiedoso da América de grande depressão que acabou por ser o primeiro filme norte-americano exibido na TV soviética. E viriam a adorar Tootsie, genial comédia sobre a identidade sexual e a fama televisiva, com um Dustin Hoffman em estado de graça.
Tootsie era o nome que chamavam a Dustin em miúdo – e foi dele a ideia para baptizar a personagem e o filme, inicialmente intitulado Would I lie to you?
 
É curioso lembrar os dez filmes preferidos de Pollack: Casablanca (Michael Curtiz); O Mundo a seus Pés (Orson Welles), O Conformista (Bernardo Bertolucci); O Padrinho II (Francis Ford Coppola); A Grande Ilusão (Jean Renoir); O Leopardo (Luchino Visconti); Era uma vez na América (Sergio Leone); O Touro Enraivecido (Martin Scorsese); O Sétimo Selo (Ingmar Bergman) e O Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder).
Escolhas de um cineasta versátil que ainda em vida se tornou um clássico.