Cidadania da boa
Henrique Pereira dos Santos, aqui, e Luís Aguiar-Conraria no Facebook, pronunciaram-se sobre o caso do pai de Famalicão cujos filhos foram chumbados por faltas à disciplina de Cidadania. Diz o segundo:
"É extraordinária a incapacidade de tanta gente de separar dois assuntos. Uma coisa é a sua opinião sobre se uma disciplina na escola deve ser obrigatória ou não, outra é a autonomia que um pai deve ter para impedir que uma criança não frequente uma disciplina obrigatória. Vá, esforcem-se, são dois assuntos diferentes. É possível ser contra que uma dada disciplina (História ou Cidadania, por exemplo) seja obrigatória e mesmo assim considerar inaceitável que um pai impeça os filhos de a frequentar".
Nunca ouvi falar de ninguém que se opusesse ao ensino de História. É claro que um historiador marxista acentua no processo histórico aspectos diferentes, e deduz causalidades diferentes, do que aquele que o interpreta sem a obsessão da luta de classes, do materialismo dialéctico e dos outros versículos da bíblia marxista; que um clássico se baseia mais nas acções de personagens ilustres e um moderno em factores geo-estratégicos ou climáticos ou de evolução tecnológica, ou, ou, ou – as combinações são infinitas; que constantemente aparecem novos dados, documentos e contributos de ciências ancilares, que originam novas interpretações; e que o esforço de interpretação nunca está inteiramente esgotado, desde logo porque é um exercício quase inacessível despir a pele das nossas convicções, interesses e conhecimentos ex post facto para vestir a dos contemporâneos e imaginar-lhes as motivações e intenções, para não dizer que boa parte dos historiadores usa a História para ilustrar os seus preconceitos, e actualmente, com frequência, para ajustar contas com ela, corrigindo reais ou imaginários tortos do passado.
Estas e outras dificuldades fazem com que a História de Portugal e a Universal que se ensinam hoje não sejam a mesma coisa que se ensinava há 40 anos, nem a que se ensinará daqui a 20.
O que tudo junto, porém, não obsta a que o ensino da História seja uma necessidade pacífica, já porque só podemos entender o que somos e o que os outros são se conhecermos o que fomos e foram eles, já porque quem não conhece os erros do passado se condena a repeti-los, e um imenso etc. – a justificação vem às vezes no princípio dos manuais de História e quase toda a gente aceita o seu estudo e ensino como fazendo parte do acervo mínimo dos conhecimentos do cidadão alfabetizado.
Daí que a comparação seja infeliz: a História, as línguas, a Geografia ou as Ciências da Natureza, a Matemática ou o Desenho, enfim, o conjunto das disciplinas que compõem o ensino básico e secundário, não comporta a conflitualidade política que a disciplina de Cidadania inclui necessariamente nem abre descaradamente a porta à formatação das cabeças dos meninos em mundividências que, no caso, calha serem com frequência de esquerda.
O próprio Aguiar-Conraria diz algures que não vê a necessidade da disciplina, e por isso sistematicamente, na esgrima verbal em que se deleita por vezes nas redes (como eu) cascou a este propósito em quem quis ver nas palavras dele a defesa dela, e não a das crianças que resultaram prejudicadas. Um bom argumento, que contestei num comentário que fiz no mural onde estava uma grande balbúrdia comentarial, e que transcrevo a final.
Já Henrique Pereira dos Santos defende o pai com excelentes argumentos, como é costume dele, no texto lincado acima, mas diz a certo passo que
“O relevante aqui é que a limitação do direito à asneira dos pais deveria, em primeiro lugar, ser decidida por escolas que deveriam ter autonomia para aplicar modelos educativos que, respeitando um conteúdo escolar mínimo que se entende que é o que respeita o direito à educação das crianças, poderiam ter uma grande diversidade.
Ora neste caso o conflito é entre uns pais que têm a coragem de afirmar os seus valores, tendo contra si todo o Estado, incluindo o seu sistema escolar, podendo estar a fazer uma enorme asneira (é um direito que lhes assiste) e um Estado cobarde que tem medo de lhes retirar a tutela dos filhos por entender que estão a prejudicar irremediavelmente o direito à educação dos filhos”.
Em parte, não o acompanho. Para mim, o sistema de ensino deve fornecer um selo de garantia de um certo conjunto de conhecimentos, o que implica programas e exames iguais em sucessivos graus, com classificações e correcções atribuídas e feitas por professores diferentes dos dos próprios alunos, ainda que os estabelecimentos devam ter a liberdade de adoptar os métodos pedagógicos que entendam, em escolas que deveriam estar, mas não estão, em concorrência por “clientes”, isto é, alunos. O que quer dizer liberdade na escolha do estabelecimento e, provavelmente, vantagem para os alunos oriundos de famílias com meios, pelo que fórmulas de intervencionismo correctivo seriam necessárias.
Mas isto não é a mesma coisa que defender a liberdade das escolas na aceitação ou rejeição de miúdos provenientes de famílias com idiossincrasias familiares de índole religiosa, política ou outra: tal escola é só para miúdos católicos, ou judeus, ou muçulmanos, ou comunistas, ou anti-touradas, ou pró-toiro, ou fanáticos da igualdade de género (come on, a propósito: o género é homo sapiens, o masculino e o feminino são sexos. Logo, a igualdade de géneros não existe senão por construção demencial de engenheiros sociais) ou das alterações climáticas? Então ꟷ não. Numa escola católica ou de outra denominação cristã, a existirem, o ensino religioso pode ser ministrado, desde que não seja obrigatório e desde que isso não implique a exclusão, se baseada em razões religiosas, de alunos. Porque, se não se entender assim, não se perceberá a que título é que amanhã não poderemos ter madrassas a formar terroristas e cidadãos inassimiláveis. E que se dane o multiculturalismo suicidário.
Não sei portanto qual a extensão da autonomia das escolas que HPS defende, mas parece ser bem maior do que a minha. De resto, nisto como em outras coisas, não sou adepto de localismos nem regionalismos: o meu Estado é pequeno mas forte, não local porque se o for não pode ser pequeno. Nem a liberdade se acrescenta pelo efeito de o Estado vir para mais perto.
No mais, sobre o caso de Famalicão, até podia demitir-me de acrescentar o que fosse. Mas como abundei em considerações no café do Facebook abaixo transcrevo uma delas porque quem teve a paciência de ler até aqui pode bem sofrer o resto:
O motivo por que há tanta gente (da variedade que pensa; a maioria aceita qualquer coisa desde que corresponda a uma opinião maioritária e esteja vertida no DR) que entende que a disciplina nem sequer devia existir (e gente que não é suspeita de acolher opiniões delirantes ou crenças esotéricas) é que reconhece que a disciplina tem, e não pode deixar de ter, um conteúdo programático que implica fatalmente escolhas em matéria de ordenação social. Essas escolhas têm um conteúdo ligado aos fundamentos civilizacionais da nossa sociedade e do lugar em que estamos no mundo, e não precisam de ser ensinadas nas escolas sob a forma de moralidade oficial; ou reportam a matérias objecto de controvérsia e lutas políticas e são portanto uma escolha partidária em que os militantes de determinadas correntes, no caso maioritárias, reivindicam o direito de formatar os filhos dos outros. Separar as duas questões, isto é, achar que a existência da disciplina é uma coisa diferente da sua obrigatoriedade, é o mesmo que dizer que a leis iníquas é devida obediência. Mas não, a leis iníquas não é devida obediência. E este pai, ao dar esse exemplo aos seus filhos, está-lhes a ensinar cidadania. Da boa.