Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Cidadania da boa

José Meireles Graça, 06.11.21

Henrique Pereira dos Santos, aqui, e Luís Aguiar-Conraria no Facebook, pronunciaram-se sobre o caso do pai de Famalicão cujos filhos foram chumbados por faltas à disciplina de Cidadania. Diz o segundo:

"É extraordinária a incapacidade de tanta gente de separar dois assuntos. Uma coisa é a sua opinião sobre se uma disciplina na escola deve ser obrigatória ou não, outra é a autonomia que um pai deve ter para impedir que uma criança não frequente uma disciplina obrigatória. Vá, esforcem-se, são dois assuntos diferentes. É possível ser contra que uma dada disciplina (História ou Cidadania, por exemplo) seja obrigatória e mesmo assim considerar inaceitável que um pai impeça os filhos de a frequentar". 

Nunca ouvi falar de ninguém que se opusesse ao ensino de História. É claro que um historiador marxista acentua no processo histórico aspectos diferentes, e deduz causalidades diferentes, do que aquele que o interpreta sem a obsessão da luta de classes, do  materialismo dialéctico e dos outros versículos da bíblia marxista; que um clássico se baseia mais nas acções de personagens ilustres e um moderno em factores geo-estratégicos ou climáticos ou de evolução tecnológica, ou, ou, ou – as combinações são infinitas; que constantemente aparecem novos dados, documentos e contributos de ciências ancilares, que originam novas interpretações; e que o esforço de interpretação nunca está inteiramente esgotado, desde logo porque é um exercício quase inacessível despir a pele das nossas convicções, interesses e conhecimentos ex post facto para vestir a dos contemporâneos e imaginar-lhes as motivações e intenções, para não dizer que boa parte dos historiadores usa a História para ilustrar os seus preconceitos, e actualmente, com frequência, para ajustar contas com ela, corrigindo reais ou imaginários tortos do passado.

Estas e outras dificuldades fazem com que a História de Portugal e a Universal que se ensinam hoje não sejam a mesma coisa que se ensinava há 40 anos, nem a que se ensinará daqui a 20.

O que tudo junto, porém, não obsta a que o ensino da História seja uma necessidade pacífica, já porque só podemos entender o que somos e o que os outros são se conhecermos o que fomos e foram eles, já porque quem não conhece os erros do passado se condena a repeti-los, e um imenso etc. – a justificação vem às vezes no princípio dos manuais de História e quase toda a gente aceita o seu estudo e ensino como fazendo parte do acervo mínimo dos conhecimentos do cidadão alfabetizado.

Daí que a comparação seja infeliz: a História, as línguas, a Geografia ou as Ciências da Natureza, a Matemática ou o Desenho, enfim, o conjunto das disciplinas que compõem o ensino básico e secundário, não comporta a conflitualidade política que a disciplina de Cidadania inclui necessariamente nem abre descaradamente a porta à formatação das cabeças dos meninos em mundividências que, no caso, calha serem com frequência de esquerda.

O próprio Aguiar-Conraria diz algures que não vê a necessidade da disciplina, e por isso sistematicamente, na esgrima verbal em que se deleita por vezes nas redes (como eu) cascou a este propósito em quem quis ver nas palavras dele a defesa dela, e não a das crianças que resultaram prejudicadas. Um bom argumento, que contestei num comentário que fiz no mural onde estava uma grande balbúrdia comentarial, e que transcrevo a final.

Já Henrique Pereira dos Santos defende o pai com excelentes argumentos, como é costume dele, no texto lincado acima, mas diz a certo passo que

“O relevante aqui é que a limitação do direito à asneira dos pais deveria, em primeiro lugar, ser decidida por escolas que deveriam ter autonomia para aplicar modelos educativos que, respeitando um conteúdo escolar mínimo que se entende que é o que respeita o direito à educação das crianças, poderiam ter uma grande diversidade.

Ora neste caso o conflito é entre uns pais que têm a coragem de afirmar os seus valores, tendo contra si todo o Estado, incluindo o seu sistema escolar, podendo estar a fazer uma enorme asneira (é um direito que lhes assiste) e um Estado cobarde que tem medo de lhes retirar a tutela dos filhos por entender que estão a prejudicar irremediavelmente o direito à educação dos filhos”.

Em parte, não o acompanho. Para mim, o sistema de ensino deve fornecer um selo de garantia de um certo conjunto de conhecimentos, o que implica programas e exames iguais em sucessivos graus, com classificações e correcções atribuídas e feitas por professores diferentes dos dos próprios alunos, ainda que os estabelecimentos devam ter a liberdade de adoptar os métodos pedagógicos que entendam, em escolas que deveriam estar, mas não estão, em concorrência por “clientes”, isto é, alunos. O que quer dizer liberdade na escolha do estabelecimento e, provavelmente, vantagem para os alunos oriundos de famílias com meios, pelo que fórmulas de intervencionismo correctivo seriam necessárias.

Mas isto não é a mesma coisa que defender a liberdade das escolas na aceitação ou rejeição de miúdos provenientes de famílias com idiossincrasias familiares de índole religiosa, política ou outra: tal escola é só para miúdos católicos, ou judeus, ou muçulmanos, ou comunistas, ou anti-touradas, ou pró-toiro, ou fanáticos da igualdade de género (come on, a propósito: o género é homo sapiens, o masculino e o feminino são sexos. Logo, a igualdade de géneros não existe senão por construção demencial de engenheiros sociais) ou das alterações climáticas? Então ꟷ não. Numa escola católica ou de outra denominação cristã, a existirem, o ensino religioso pode ser ministrado, desde que não seja obrigatório e desde que isso não implique a exclusão, se baseada em razões religiosas, de alunos. Porque, se não se entender assim, não se perceberá a que título é que amanhã não poderemos ter madrassas a formar terroristas e cidadãos inassimiláveis. E que se dane o multiculturalismo suicidário.

Não sei portanto qual a extensão da autonomia das escolas que HPS defende, mas parece ser bem maior do que a minha. De resto, nisto como em outras coisas, não sou adepto de localismos nem regionalismos: o meu Estado é pequeno mas forte, não local porque se o for não pode ser pequeno. Nem a liberdade se acrescenta pelo efeito de o Estado vir para mais perto.

No mais, sobre o caso de Famalicão, até podia demitir-me de acrescentar o que fosse. Mas como abundei em considerações no café do Facebook abaixo  transcrevo uma delas porque quem teve a paciência de ler até aqui pode bem sofrer o resto:

O motivo por que há tanta gente (da variedade que pensa; a maioria aceita qualquer coisa desde que corresponda a uma opinião maioritária e esteja vertida no DR) que entende que a disciplina nem sequer devia existir (e gente que não é suspeita de acolher opiniões delirantes ou crenças esotéricas) é que reconhece que a disciplina tem, e não pode deixar de ter, um conteúdo programático que implica fatalmente escolhas em matéria de ordenação social. Essas escolhas têm um conteúdo ligado aos fundamentos civilizacionais da nossa sociedade e do lugar em que estamos no mundo, e não precisam de ser ensinadas nas escolas sob a forma de moralidade oficial; ou reportam a matérias objecto de controvérsia e lutas políticas e são portanto uma escolha partidária em que os militantes de determinadas correntes, no caso maioritárias, reivindicam o direito de formatar os filhos dos outros. Separar as duas questões, isto é, achar que a existência da disciplina é uma coisa diferente da sua obrigatoriedade, é o mesmo que dizer que a leis iníquas é devida obediência. Mas não, a leis iníquas não é devida obediência. E este pai, ao dar esse exemplo aos seus filhos, está-lhes a ensinar cidadania. Da boa.

Todo um padrão

Pedro Correia, 20.07.21

                                                  images.jpg

 

Desta vez, felizmente, não houve atropelamentos. Mas não deixou de haver passa-culpas ministerial: é todo um padrão do Governo Costa.

Apanhado pela TVI em evidente transgressão dos limites legais de velocidade enquanto se deslocava na viatura oficial, o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, acaba de produzir esta extraordinária declaração: «Não era eu que ia a conduzir e não me apercebi do que estava a acontecer.»

Faz lembrar o miúdo queixinhas da escola primária, pronto a apontar o dedo aos outros meninos. Como se alguém acreditasse que o condutor do ministro fosse de pé na tábua - a 160 km à hora na estrada nacional e a 200 km na A2 - por livre iniciativa, sem consentimento do chefe máximo. 

Agora diz-nos também que já recomendou ao motorista para não voltar a ultrapassar o limite de velocidade, garantindo que isso não irá repetir-se. Deve ser isto que alguns consideram "ética republicana": é preciso ser apanhado em transgressão para jurar que a partir de agora irá cumprir a lei.

Que belo exemplo de cidadania num país onde, entre 2011 e 2020, se registaram 5072 vítimas mortais em desastres rodoviários. Nem o trágico atropelamento do cidadão Nuno Santos a 18 de Junho pela viatura oficial em que seguia o ministro Eduardo Cabrita serviu de lição aos seus colegas de Governo. 

Todo um padrão nisto também.

O Estado que desconfia dos cidadãos

Pedro Correia, 07.05.21

images.jpg

 

Passam as décadas, passam os governos, mas algo nunca muda: a problemática relação entre o português que cumpre as obrigações de cidadania e o Estado que tantas vezes nos ignora. Proporcionando serviços de péssima qualidade, transportes públicos caóticos, protecção civil que deixa arder metade do património florestal do País, uma educação pública que não chega a todos, saúde sem meios físicos nem humanos capazes de corresponder às crescentes necessidades de uma população envelhecida, justiça insuficiente e caracterizada por uma lentidão exasperante. Ao contrário do que sucede nos países nórdicos, por exemplo, os portugueses dificilmente encontram retorno dos impostos que pagam em melhorias efectivas da qualidade de vida.

O zelo que o Estado - através do Governo - dispensa aos seus funcionários não tem paralelo na forma como se relaciona com o cidadão comum, encarado essencialmente como contribuinte. E, nesta óptica, considerado culpado até prova em contrário, numa inaceitável inversão do princípio constitucional da presunção da inocência, como há dois anos se verificou em operações stop realizadas pela Autoridade Tributária em parceria com a GNR para apanharem supostos infractores fiscais na via pública. Esquecendo-se o próprio Estado da sua condição de grande devedor: só as dívidas aos fornecedores e credores do Serviço Nacional de Saúde totalizavam 2,9 mil milhões de euros em 2017, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas divulgada em 2019.

Em Portugal, ao contrário do que sucede nouros países, a regra não é o Estado confiar nos cidadãos. A regra é o Estado desconfiar dos cidadãos. Como se existisse para servir-se de nós e não para nos servir, como é nosso direito e seu dever.

Penso rápido (98)

Pedro Correia, 26.11.20

Demasiadas pessoas passam um ano sem ler um livro, seja de que género for. Há gente que se gaba até de nunca ter aberto um livro desde os bancos escolares. Há indivíduos que nunca folheiam sequer uma revista, excepto nas salas de espera dos consultórios médicos. Muitos eleitores presumem andar informados e esclarecidos passando ao lado de conteúdos certificados pela deontologia jornalística: preferem imaginar o que se passa espreitando tuítes da trincheira mais próxima, vídeos acéfalos na Rede ou o primeiro boato que lhes é remetido através de compinchas no WhatsApp. 

Alguém que jamais trocaria o cirurgião pelo curandeiro, o hotel pela pensão manhosa ou o produto de qualidade pela quinquilharia do chinês prefere "informar-se" recorrendo às versões digitais da intriguista do prédio, do bisbilhoteiro do bairro ou do tasqueiro fala-barato.

Quando se fala na degradação da cidadania, não podemos culpar só os políticos. Há que começar a apontar o dedo a quem anda desinformado e ainda se orgulha disso.

O dia da metadona

Paulo Sousa, 24.09.19

A entrada do estado na esfera individual no nosso país é uma tendência ainda em crescimento mas que um dia terá de ser travada.

A invasão começou sem esse propósito e era então justificada pela vontade de limitar as assimetrias sociais que existiam em proporções diferentes entre as regiões do país. O aumento dos impostos foi vestido com um fatinho domingueiro de forma a acrescentar ao estado a responsabilidade de tratar dos pobres e desvalidos. Quem é que de boa consciência humanista poderia questionar tal propósito?

A esquerda, à falta de operários, adoptou os pobres e fez-se dona da assistência social, e passou a classificar as ajudas organizadas pela Igreja como caridadezinha, como se quem recebesse ajuda se preocupasse de onde ela vem.

Até um certo ponto tudo funcionou dentro do benevolente espírito inicial, mas ano após ano as garantias dadas a todos e a cada um foram sendo alargadas. Era preciso ser-se criativo e fazia sentido alargar a caridade pública ao ritmo da frequência das eleições. Pouco a pouco chegou-se a pontos em que os encargos (e regulamentos) a quem cria riqueza e a quem cumpre horários, e dessa maneira alimenta financeiramente o sistema, eram tais que deixou de compensar correr riscos e a ser a pontual, e passou a ser mais racional mudar da coluna dos que contribuem para a dos que recebem. Alguns passaram a ser exclusivamente contribuintes e outros exclusivamente beneficiários.

Ao longo dos anos os exclusivamente beneficiários tem aumentado significativamente. No nosso país mais de 50% da população aufere de transferências directas do estado.

À minha volta isso demorou a ser notório, ou então fui eu que demorei a reparar. Sabia que no interior do país, num mundo social e economicamente deprimido, era o estado que ia mantendo a permanência de pessoas. Sabía que no interior havia menos empresas e negócios e por isso o peso do estado era superior ao das zonas mais dinâmicas. Câmaras e Juntas eram ali os principais empregadores. Aqui no centro do país e perto da costa, graças às cerâmicas, fábricas de moldes e outras industrias, tudo era diferente.

Ano após ano a relação de dependência ao estado foi-se aprofundando. Os políticos para sobreviver precisam de se mostrar agradáveis e os cidadãos reagem positivamente a estímulos positivos. Esta simbiose manteve-se mesmo quando o ponto de equilíbrio foi ultrapassado, e no caso português já foi ultrapassado tantas quantas vezes falimos nos últimos 40 anos.

Tudo isto já era para mim um facto, mas no passado dia 10 voltei a aperceber-me da dimensão da coisa. E é nesse dia que são pagas as pensões e, por isso, é também nesse dia que a economia local acelera com a nova injeção de liquidez. No dia 10 os balcões bancários estão apinhados de gente desde a abertura até ao final do expediente. O quadro de pessoal não pode tolerar folgas e, mesmo assim, as filas chegam à porta. Neste dia, por mim batizado pelo dia da metadona, não se pode ir ao banco por outro motivo que não seja ir levantar a reforma. De inverno chegam a tremer de frio, tal como tremem os drogados na fila da metadona.

Numa segunda linha de efeito é o comércio local que acelera para fornecer os bens essenciais a um ritmo que só voltará a fornecer no mês seguinte. Talvez em Lisboa e nos grandes meios urbanos seja menos notório mas não será muito diferente.

Isto é real, silencioso e é uma forma de pobreza. Nos telejornais despejam-se baldadas de alegria pelo crescimento PIB mas o país continua refém de um estado omnipresente que tudo quer controlar e taxar, para poder engordar e as sobras distribuir. Quem recebe, tal como antigamente, sabe que não pode morder a mão de quem o alimenta e, sem dar conta, continua a trocar dignidade por côdeas. Ao fim e ao cabo os vizinhos, primos e enteados também recebem e isso alivia o eventual ónus da desconsideração social. Soube há dias que ter um filho com astigmatismo visual dá direito a subsídio. Mas recebê-lo não dá estigma social aos seus pais. Se o filho da vizinha recebe, porque é que eu não tenho direito?

Será possível interromper este ciclo?

As mudanças que resultaram do dinheiro descarregado na economia após adesão à UE não alteraram a relação do cidadão com o estado. Antes não se podia afrontar porque fazia doer, e agora porque dá de comer. A subserviência mantém-se.

A liberdade é uma música que põem a tocar no 25 de Abril, mas se antes não existia, agora está refém dos donos do regime.

A liberdade de escolha não está interiorizada no modo de agir dos portugueses. Tal como a sobrecarga que se colocava nos selos quando se mudava de regime, e ainda não se tinha tido tempo de fazer uma nova emissão, a liberdade ainda se esgota num carimbo da Constituição.

Quando é a maioria que decide, mais de 50% dos eleitores escolherá sempre de forma a que as transferências directas de que aufere não sejam interrompidas. O benefício imediato é um apelo lógico de quem quer maximizar o seu bem-estar. Arriscar as formulas que criaram riqueza noutras paragens é demasiado diferente, e os portugueses arrojados partiram de caravela há muito e nunca mais regressaram.

De que forma se poderá interromper esta trajectória? Será mesmo este o nosso fado?

Nas próximas eleições só não votarei Iniciativa Liberal porque o nosso sistema eleitoral foi feito para complicar a vida às ideias diferentes. Espero sinceramente que consigam eleger pelo menos um deputado num dos círculos eleitorais mais populosos onde há mais opções eleitorais. O nosso sistema eleitoral precisa de ser revisto. Portalegre, por exemplo, elege dois deputados. Que opções têm os seus eleitores? A nossa democracia é diferente por isso em Portalegre, em Leiria e em Lisboa. Não duvido que se aos actuais círculos eleitorais fosse acrescentado um circulo nacional a abstenção diminuiria.

Independentemente dos resultados que venha a conseguir, a Iniciativa Liberal tem o mérito de apresentar um alternativa ideológica ao marasmo do socialismo que nos governa desde 1974. Sem o dinheiro da UE seríamos hoje uma Venezuela sem petróleo.

No dia em que deixar de haver dinheiro, favores, cargos e prebendas para distribuir regime cairá. Será possível reforma-lo antes disso?

A praia ou o sofá

João Campos, 27.05.19

Passaram mais umas eleições, com a inevitável abstenção estratosférica e com os não menos habituais comentários, oficiais ou oficiosos, a tratar os abstencionistas como leprosos. Ouve-se e lê-se de tudo. Que a culpa é do sol e da praia (ou da chuva e do sofá, se estamos no Outono). Ou da bola, quando rola. Que falta "educação para a cidadania", o que quer que isso signifique. Que quem não vota não tem direito de se queixar. Que isto ia lá era com o voto obrigatório e com multas pesadas para os malandros dos incumpridores - passe a lei de Godwin à portuguesa, o nosso salazarito colectivo emerge sempre nestas situações.

(já agora: não, o voto não devia ser obrigatório - haver países em que o é não justifica coisa alguma, o voto é um direito que se conquistou e não um dever que foi imposto, e consigo pensar em vários motivos perfeitamente válidos para não se ir às urnas que não poderiam ser justificados perante uma "Autoridade Eleitoral". Já nos basta a Tributária e as suas derivas kafkianas.)

Tanto se fala e escreve, e poucos arriscam explicações mais simples. Se calhar a meteorologia, a bola, a cidadania ou falta dela, ou apenas a preguiça, não são tanto causas como pretextos. Dito de outra forma: é possível que os portugueses não votem porque os candidatos, escolhidos de forma opaca e com méritos na sua maioria duvidosos, por partidos mais virados para dentro do que para fora, não entusiasmam ninguém. Rigorosamente ninguém. Nem antes da campanha, quando ainda estão mais ou menos calados e se pode pensar que têm algo interessante para dizer, e muito menos durante a campanha, quando abrem por fim a boca e se percebe que dali não sai nada de jeito - e o pouco que sai, regra geral, sai num português sofrível. Olhe-se para o PS: levou para a Europa Pedro Silva Pereira, esse Sócrates da loja dos 300, numa lista liderada por Pedro Marques. Pedro Marques: um homem com o carisma, a personalidade, e a eloquência de uma tábua de contraplacado (a sério: uma estante "Billy" da Ikea dá mais vida a uma sala*). E a lista dele foi a mais votada, pelo que ninguém das outras listas se ficará a rir com propriedade.

É-me mesmo muito difícil criticar alguém que diga "eu até ia às urnas, mas para votar no Pedro Marques ou no Nuno Melo mais vale ir à praia." Ou alguém que, após um debate televisivo de umas eleições europeias onde ninguém fala da Europa e do qual não se retira nada para além de uma bela dor de ouvido, decida que ficar em casa a ver um jogo da segunda liga checa num canal do cabo é capaz de ser mais interessante. Eu, gostando pouco de praia e cada vez menos de futebol, percebo perfeitamente o impulso.

Sim, há a opção de ir e votar branco (para a qual devia mesmo haver um quadradinho no boletim) ou de anular o voto rabiscando qualquer coisa no papel. Mas o autismo dos comentários aos abstencionistas (esses malandros) não deixa antever interpretações especialmente sagazes ao fenómeno, caso tivesse relevância. Com toda a probabilidade, os partidos vencedores diriam: "rejeitaram os outros". E os vencidos responderiam: "a maioria dos eleitores não vos escolheu". O Presidente, tal como agora manifesta (manifesta?) preocupação pela abstenção, congratular-se-ia pela afluência às urnas. E tudo ficaria na mesma.

Mal por mal, venha a praia ou o sofá.

(Já agora, e em jeito de declaração de interesses: fui votar nas Europeias do último domingo, e se a memória não me falha desde os dezoito anos apenas faltei a um acto eleitoral; possivelmente as Europeias de 2004. Terá sido a bola, lá está.)

*Garanto que os suecos não me pagaram para dizer isto.

A maldição endogâmica

Diogo Noivo, 26.02.19

Há muitos anos, quando estudava os sistemas políticos dos países lusófonos, o docente da cadeira enquadrava os males de São Tomé e Príncipe numa moldura demográfica. Com cerca de 120 mil habitantes, dizia, a endogamia era inescapável. O problema reflectia-se na vida política, mas não só. Num tribunal, a elevada probabilidade de juiz e réu se conhecerem tanto podia jogar a favor como contra o acusado, mas nunca jogava em benefício da Justiça. A reduzida dimensão populacional era, portanto, uma maldição.

Mais tarde conheci um pequeno país, também insular, chamado Islândia. Não chega aos 350 mil habitantes. Por razões geográficas e climatéricas, o país é feito de concentrações demográficas, o que, em teoria, deveria acentuar a predisposição para os males que advêm da endogamia. Contudo, e independentemente das razões que o justificam, a realidade é outra: há lisura na condução da vida pública e cuidado com os potenciais conflitos de interesses. Quando uma linha vermelha é cruzada, os mecanismos legais e a vontade popular repõem a normalidade democrática.

O que separa estes dois Estados é a cultura política e a noção de cidadania plena. Qualquer outro argumento não passa de uma desculpa.

Jornalismo e cidadania

Alexandre Guerra, 28.11.18

O jornalismo confronta-se com novos fenómenos de erosão que o empurram por caminhos tortuosos. Os cidadãos das sociedades livres e democráticas, com menos tempo e paciência para se dedicaram a grandes exercícios de leitura jornalística e reflexão, vão encontrando novos focos de “distracção”, inspirando-se em fontes pouco credíveis para construir as suas percepções sobre quem os governa e administra a polis. Aos preconceitos e ódios, inerentes à própria natureza humana, junta-se a instrumentalização dos títulos noticiosos enviesados que se propagam nas redes sociais – sem que alguém tenha uma verdadeira preocupação de ler o seu conteúdo –, os tweets incendiários, os posts populistas e demagógicos, as imagens adulteradas e as tão badaladas fake news. Tudo isto ajuda a sedimentar essas percepções nefastas que se vão metamorfoseando em falsas realidades e narrativas alternativas, onde tudo vale (ou nada vale). Cada qual constrói uma espécie de play list de soundbites de acordo com as suas crenças e convicções.

 

A comunicação é hoje um processo perverso, em que uma evidência objectiva, como dois mais dois serem quatro, se tornou num exercício criativo, dando lugar a inúmeras “realidades” fantasiosas, tantas aquelas em que cada um quer acreditar. No fundo, é uma questão de crença e não de aceitação da realidade como ela, efectivamente, é. Se antigamente as notícias eram referenciais de verdade, hoje, aos olhos das pessoas, o jornalismo perdeu muita da força que tinha para impor na comunidade a versão impoluta dos factos e acontecimentos.

 

Na visão mais pessimista, o jornalismo deixou de ter capacidade para se sobrepor ao ruído das “redes”, porque, infelizmente, e devido a vários factores, deixou-se fragilizar, descredibilizar e, especialmente em Portugal, acantonou-se num círculo vicioso de elites e gabinetes. Passe o exagero, diz-nos a experiência empírica mais recente que o jornalismo deixou de ter o poder para fazer cair ministros quando surge a “cacha” com evidências cabais de uma violação do “contrato social” firmado entre o governante e o governado. E isso é muito preocupante.

 

O definhar do jornalismo não pode ser única e exclusivamente imputado às contingências económicas e ao desinteresse das chamadas “massas”, por terem deixado de consumir hard news provenientes de fontes válidas. Há inúmeras responsabilidades que são partilhadas pelos profissionais do jornalismo: seja quando são os próprios meios de informação tradicionais a importar para as suas agendas e editorias o tom displicente da “conversa de café” e o registo incendiário das redes sociais; seja quando são os comentadores e opinion makers, que têm responsabilidades cívicas muito importantes junto da opinião pública, a ignorarem a natureza intrínseca das coisas, para porem em prática agendas próprias ou para assumirem o papel de activistas ou pregadores da moral.

 

Paradoxalmente, nunca se consumiram tantos conteúdos como agora, mas sabemos que os meios noticiosos mainstream vão perdendo o seu público, a sua influência junto da comunidade. A cada dia que passa fica-se com a sensação de que o jornalismo vai morrendo um pouco. Vai abdicando dos seus princípios e valores, vai violando o seu código deontológico e vai delapidando o seu capital de instituição de referência na sociedade.

 

Como em todas as profissões, há bons e maus jornalistas, há uns que se deixaram cegar pela arrogância dos tempos gloriosos, outros que se acomodaram na secretária, há ainda outros que se esqueceram do que é ser jornalista e foram consumidos pelo seu ego. Porém, a maioria dos jornalistas, de forma séria e profissional, fazem o seu trabalho em prol do bem comum, muitas vezes enfrentando inúmeras contrariedades, algumas delas vindas das suas próprias estruturas empregadoras.

 

Nutro o maior respeito e gosto pelo jornalismo, já que cresci nesse ambiente, ainda no tempo das máquinas de escrever. Lembro-me de quando era criança, nos anos 80, depois de o jornal estar “fechado” madrugada adentro, ir com o meu pai, jornalista desportivo desde sempre, ver se estava tudo bem com a impressão nas rotativas da gráfica que havia em frente à Escola de Música do Conservatório Nacional, no Bairro Alto. Já o meu avô tinha sido tipógrafo no Diário Popular (na verdade, linotipista). Como não podia deixar de ser, após ter concluído a universidade, comecei a minha carreira profissional precisamente como jornalista na secção de política internacional, onde estive durante alguns anos, tendo depois transitado para a área da consultoria de comunicação, na qual me mantenho desde então.

 

Por interesse pessoal, mas também por motivos profissionais, gosto de acompanhar os debates que se fazem lá fora (cá dentro, menos) sobre o futuro do jornalismo. Contacto quase diariamente com jornalistas e, sempre que se proporciona, gosto de trocar ideias sobre o estado da profissão em Portugal e no mundo. Na generalidade dos casos, percebe-se que existe, da parte dos seus profissionais, a consciência dos problemas e da deriva editorial que se verifica genericamente nos meios de comunicação social. Constata-se que existe a vontade de encontrar um caminho sólido, que devolva a essência primária ao jornalismo, mas ao mesmo tempo, sente-se uma espécie de resignação perante uma tendência que parece imparável.

 

Sobre o jornalismo pairam ameaças, incertezas e indefinições, não apenas a propósito do modelo de sustentabilidade económica, mas no âmbito da sua própria essência e papel fulcral na defesa da democracia. Ora, um exercício pleno de cidadania deve estar assente nos direitos políticos, sociais e cívicos de cada cidadão, o que pressupõe duas coisas: conhecimento da realidade que nos rodeia e escrutínio a quem exerce o poder.

 

Que ninguém se iluda, o declínio do jornalismo é também o declínio da cidadania e da democracia. É por esta razão que, na minha opinião, são indignos da confiança do Povo aqueles que vêem no jornalismo uma ameaça aos seus projectos de poder e de “governance”. Além disso, são tolos e irresponsáveis os que acham que o jornalismo pode ser substituído pelas “verdades absolutas” que emanam das redes sociais. É importante nunca esquecer que uma sociedade democraticamente saudável e forte exige como requisito obrigatório um jornalismo virtuoso e de referência.

 

Texto publicado hoje no Público.

Clube do Bolinha na cozinha

Pedro Correia, 27.11.18

Clube-do-Bolinha---capa_1[1].jpg

 

A todo o momento se debate, nos mais diversos espaços de opinião, a necessidade de combater assimetrias e desigualdades entre cidadãs e cidadãos. Justíssima causa, ainda com muitos passos a trilhar, e a que dou todo o meu apoio - da igualdade de oportunidades no acesso às carreiras profissionais à urgência em equiparar salários, sem discriminações de género.

Há que reconhecer os progressos registados, nesta matéria, em quase todos os domínios da sociedade portuguesa - incluindo aqueles que outrora permaneciam vedados à participação feminina, como a magistratura, a diplomacia, as corporações policiais e as forças armadas. Se há meio século, por exemplo, era residual o número de mulheres nos cursos de Direito, hoje elas estão ali em esmagadora maioria e já predominam em todos os níveis da magistratura excepto nos tribunais superiores.

Para espanto de alguns, até o futebol feminino está em franca expansão entre nós, com um número crescente de praticantes federadas. Havendo até já jogos que congregam cerca de dez mil adeptos nas bancadas, como aconteceu num recente Sporting-Braga.

 

Mas há um domínio que lhes permanece escandalosamente interdito sem uma palavra de reprovação das figuras bem-pensantes. Refiro-me aos chefes de cozinha, onde parece prevalecer o lema do Clube do Bolinha: "Menina não entra."

Ainda agora registaram-se unânimes coros de júbilo a propósito da atribuição de quatro novas "estrelas Michelin" a chefes de cozinha portugueses. Todos homens. E ninguém parece reclamar por isso, o que muito me admira.

Consulto a lista integral dos chefes galardoados com as referidas estrelas em Portugal: António Loureiro, Vítor Matos, Louis Anjos, Rui Paula, Joachim Koerper, João Rodrigues, Miguel Rocha Vieira, Óscar Geadas, Heinz Beck, Henrique Leis, Sergi Arola, Miguel Laffan, Tiago Bonito, Alexandre Silva, Pedro Almeida, Pedro Lemos, Leonel Pereira, João Oliveira, Luís Pestana, Willie Wurger, Henrique Sá Pessoa, José Avillez, Benoît Sinthon, Hans Neuner, Ricardo Costa e Dieter Koschina.

Caramba, não se vislumbra uma cozinheira num sector tão emblemático e com tanta projecção mediática. Elas só servirão para lavar os tachos?

 

É algo que me indigna. Quase tanto como o silêncio cúmplice das feministas que passam ao lado deste tema. Algumas, se calhar, até frequentam sem sobressaltos de consciência os restaurantes desta tribo que goza de tão boa imprensa e se mantém irredutível como reduto da desigualdade.

Carlos Silva e Sousa

Sérgio de Almeida Correia, 23.02.18

Carlos-Silva-e-Sousa-2.jpg

 (créditos: Sul Informação)

Esta tarde, no final de mais uma viagem, entrei no terminal do aeroporto e desactivei o modo de voo. Liguei o telemóvel e a notícia caiu de chofre. Fulminante como um raio vindo sabe-se lá de onde. Desta vez não houve tempo para nada. Nem um abraço. Apenas distância.

Conheci-o por intermédio de um casal de amigos comuns que haviam sido seus contemporâneos em Coimbra, na Faculdade de Direito. Há muito que me falavam dele, mas nunca se proporcionara. E quando nos conhecemos foi pelas razões mais estúpidas.

Eu era arguido. Um fulano que exercia (ou exerce) funções no MP, usando o seu soslaio olhar, formalmente correctíssimo, deduzira contra mim uma acusação. Devido ao modo, note-se, como o mandato fora exercido num processo findo. Por puro acinte, o que quem gere a corporação na altura não conseguiu vislumbrar. Não sei se ainda será assim, mas naquele tempo aconteceu.

Daquela vez calhara-me a mim. Acusado de difamação, se bem me recordo. Na contestação, como se impunha, mais a mais estando em causa um fulano que fora acusado de desde a década de Oitenta — altura em que teria aí uns cinco anos de idade — ter participado na constituição de uma associação criminosa, eu fora duro para com a instituição a que ele pertencia, verberara o simulacro de investigação que havia sido conduzido pelas polícias e, como não podia deixar de ser, fora contundente durante o julgamento para com quem patrocinara aquele espectáculo. Quando esse julgamento chegou ao fim, e o meu constituinte foi absolvido das magnas acusações que sobre si impendiam, sobrou para mim.

Houve quem tomando as dores de terceiros se tivesse queixado, para assim se desencadear o processo contra mim, o advogado. E eu lá tive que me ir defender, entrar em despesas, incómodos e chatices, pois claro.

De imediato recebi o apoio do então Bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, logo depois seguido pelo do seu sucessor. E no meu julgamento lá estiveram arroladas como testemunhas, entre outras, um magistrado do MP, entretanto jubilado, aquele que foi o juiz-presidente do tribunal colectivo no tal julgamento do sujeito que fora o meu constituinte — que foi lá para dizer que sim, que era verdade, que eu tinha sido advogado naquele processo, que o meu constituinte fora absolvido e que o vertido nas peças processuais, onde descobriram a pretensa ofensa depois do processo concluído, até fora depois confirmado no acórdão final —, mais o presidente do Conselho Distrital de Faro da Ordem dos Advogados, o meu estimado António Cabrita, e mais uns quantos, entre companheiros de profissão, colegas de curso e amigos.

No dia das alegações finais o senhor procurador que me acusara resolveu não aparecer. Envergonhou-se. Quem veio em representação do MP foi um magistrado mais jovem, novo na comarca, que não acompanhara o processo nem o julgamento, mas que tendo lido o processo e sabendo da prova que havia sido produzida teve a hombridade de pedir logo a minha absolvição. Fui, evidentemente, absolvido. E na sentença lá estava, preto no branco, a afirmação de que fizera, é certo, uma defesa veemente, dentro dos limites, respeitando escrupulosamente as regras deontológicas, actuando como qualquer “bom advogado” se comportaria se colocado perante a mesma situação. Isto é, perante a falsidade, o agravo, em suma, fazendo um uso adequado da toga e dos instrumentos jurídicos, pugnando pela justiça, com arrojo, com dignidade, com frontalidade.

Naturalmente que fiquei satisfeito com o que se apurou. E com dúvidas não fiquei de que, apesar das despesas e dos incómodos por que passei, essa decisão honrou a magistratura portuguesa, reconhecendo o profissionalismo e a seriedade do mandato exercido.

O meu advogado nesse processo, logo a seguir à instrução e por impedimento do primeiro mandatário e nosso comum amigo que o indicara, acabou por ser o Carlos Silva e Sousa, que embora acompanhado pelo Paulo Freitas fez todo o julgamento e as alegações finais. Podia perfeitamente ter recusado o patrocínio. E tinha todas as razões para isso. Era um homem muito ocupado, com uma vida profissional intensíssima, desdobrando-se entre o trabalho no escritório, no partido e na autarquia, sem esquecer os assuntos ligados ao(s) consulado(s). Além de que na altura não me conhecia de lado nenhum e o processo era uma estopada. Nem no dia da leitura da sentença me deixou pagar-lhe o almoço.

Graças a esse episódio por que passei — triste no início, feliz na conclusão — ficámos amigos. Depois disso fiz vários julgamentos em Albufeira. O Carlos tinha aí o seu escritório, do outro lado do Tribunal e da Câmara Municipal. Na altura, creio, já era também o Presidente da Assembleia Municipal. Não obstante, estive com ele muitas vezes. Arranjou sempre tempo para tomar um café comigo, para dois dedos de conversa, para discutir a actualidade política, muito embora soubesse que eu na altura era activo numa agremiação concorrente. Comentava, ria-se, piscava o olho, puxava de um cigarro. E sorria, o Carlos sorria muito, serenamente (entre homens de bem não é a política nem o futebol que os separa porque o carácter é mais forte, é o carácter que os motiva e cria laços).

Foi assim com o Carlos Silva e Sousa. Falou-me dos seus vinhos, das propriedades para os lados de Tavira e da Fuzeta, do processo de regeneração das vinhas, do seu amor à terra e ao que esta produzia, do seu gosto em andar de botas aos fins-de-semana, campo fora, sem preocupações, sentindo os cheiros que chegavam avermelhados na imensidão do azul e da serra. O Carlos Silva e Sousa produziu alguns magníficos néctares. Um dia encontrei-o num pequeno expositor da Feira de São Brás, promovendo os vinhos que ele próprio produzia. Lá estivemos à conversa. Perguntava-me pelos amigos comuns que não via há anos. Comprei-lhe umas caixas de vinho, que o filho me ajudou a transportar até ao carro. Ficámos de combinar uma almoçarada, na quinta dele, com mais alguns. Acabou por nunca se proporcionar.

Ainda nos encontrámos nalgumas outras ocasiões. Tomávamos um café, às vezes, quando eu ia a Albufeira, subia a escada, do outro lado da rua, e passava pelo escritório dele. Ocupado como era raramente estava. E eu também não podia ficar à espera. Falávamos à distância. O abraço ficava adiado. Até hoje. Quando me chegou a notícia do seu falecimento.

O Carlos Silva e Sousa era um tipo de uma correcção extrema, com um humor corrosivo, de sorriso sempre aberto, de uma disponibilidade total para o trabalho, aliando a argúcia e a inteligência do advogado com o equilíbrio e o bom senso dos bons juízes, talvez fruto da herança paterna. Hoje perdemos todos. O Algarve perdeu um cidadão exemplar. E eu fiquei a dever um abraço ao Carlos Silva e Sousa. Um abraço fraterno. De gratidão. A um homem de bem. Um grande abraço.

Medina Carreira

Sérgio de Almeida Correia, 04.07.17

Unknown-4

(14/1/1931- 3/7/2017)

Advogado, militante socialista, depois independente, fiscalista, homem de Estado, professor, comentador televisivo, cronista, acima de tudo um cidadão interveniente. Com o correr dos anos tornou-se visceral, mais amargo, mas as suas preocupações eram as de sempre: Portugal e os portugueses. Lutou como pôde, sempre com lealdade e frontalidade, de forma corajosa e desassombrada por aquilo em que acreditava. Em Portugal, no mundo, fazem sempre falta homens como ele. Que o seu exemplo cívico, numa terra de gente acomodada, bem comportada e onde não abundam os exemplos possa perdurar. E que descanse em paz.  

Pelo Aeroporto Sacadura Cabral

Pedro Correia, 11.04.17

84591_6[1].jpg

 Artur Sacadura Cabral (1881-1924)

 

Corre de momento por aí uma petição pública para que o futuro aeroporto do Montijo, adaptado a voos comerciais, receba o nome de Artur de Sacadura Freire Cabral, um dos pioneiros da aviação portuguesa. Contrariando o impulso do Presidente da República, que sem consultar ninguém se apressou a sugerir o nome do antigo Presidente da República Mário Soares.

Estou plenamente de acordo com esta homenagem a Sacadura Cabral, que com Carlos Viegas Gago Coutinho fez em 1922 a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, unindo Portugal ao Brasil. Aliás os brasileiros preservam com carinho a memória destes dois aviadores, que tão esquecidos têm sido cá na terra - sobretudo Sacadura Cabral, que em Lisboa dá apenas nome a uma artéria secundária, entalada entre o Campo Pequeno e a Avenida de Roma.

"O futuro Aeroporto do Montijo, situado na actual Base Aérea N.º 6 da Força Aérea Portuguesa, do ponto de vista histórico terá toda a lógica chamar-se de Aeroporto Sacadura Cabral, pois aquando do tempo da Aviação Naval (1917-1952) que aqui operava chamava-se a nível oficial Centro de Aviação Naval Comandante Sacadura Cabral. O planeamento e as suas obras foram conduzidos pela nossa Marinha desde os anos 30, que culminaram na sua inauguração e baptismo com o nome deste intrépido aviador naval. (...) Assim, perante os factos históricos, seria de boa justiça dar novamente o seu nome inicial de Sacadura Cabral ao futuro Aeroporto do Montijo", refere o texto da petição.

Que naturalmente já subscrevi.

 

e102a22abf61edacb806bef5eeb093e2[1].jpg

Monumento de homenagem a Gago Coutinho e Sacadura Cabral no Recife (Brasil)

rasto

Sérgio de Almeida Correia, 19.01.15

G7ZldVehtYY.jpgQuem se recorda deles, dos ricos de Roma ou de Atenas? Que se recorda deles? Tirando um ou outro que é referenciado nos livros de história, a maioria viveu e partiu. Sobraram algumas pedras que hoje muitos usam para escolher a luz, o melhor plano, enquanto olham para uma câmara fotográfica. Há outros de quem se sabe o nome e de quando em vez nos recordamos ao folhear um livro. Lá está a citação, uma referência, às vezes também no Borda d'Água. Nada mais. Foram.

Um tipo pode levar a vida a trabalhar, enriquecer, deixar uma prole imensa, uma caterva de livros, como o Paulo Coelho ou o Rodrigues dos Santos, um apelido, escolher uma vida faustosa ou simples, confortável ou estóica, percorrer os caminhos da sombra ou as luzes da ribalta, deixar um monte de tralhas, uma memorabilia. E não deixar nada. Não deixar um rasto. Ou, então, deixar um rasto que se apaga mal o Sol se ponha.

Que pode valer um caminho sem rasto, uma vida sem rasto, quando os outros, os que ficarão, não conhecem os caminhos que foram percorridos, as rotas por que optámos, as veredas por onde nos equilibrámos, por onde espreitámos o ribeiro e tememos a aurora? Que pode isso valer quando não se tem um rasto por onde os que ficam nos possam seguir? Um rasto que diga aos outros por onde andámos, o que fizemos, o que escolhemos. O porquê de uma vida.

O único rasto que vale a pena deixar tem de ser útil. Tem de servir a quem fica. E aos que vierem depois, e depois, e depois, para que não se perca na espuma dos dias ou numa mesa de gamão. O rasto da participação cívica, do trabalho em prol da cidadania, do investimento na educação, a longo prazo, pode não trazer resultados imediatos mas é o único que marca. Como um ferro em brasa. O único que engrandece, o que diz aos outros por onde andámos. O que perdura na prole. Na do próprio. Na dos outros. O que perdura nunca será pó.

 

(editado: graças ao oportuno reparo de um Anónimo desconhecido)

Civilidade e cidadania

Helena Sacadura Cabral, 07.07.14
Os que me conhecem sabem que tenho pouca paciência para querelas partidárias, sejam elas de que natureza forem. Não posso, não consigo. Só tenho uma cabeça e só por ela me guio, embora goste muito de ouvir opiniões diferentes das minhas.
Mudo muito? No básico, bastante pouco. Mas no olhar que lanço sobre o mundo que me rodeia mudo sempre que reconheço aos outros a capacidade de me convencerem. Não tenho qualquer pejo em me declarar errada e dar conta pública disso - se for o caso -, porque duvido que alguém se mantenha inalterável ao longo dos anos.
Mas procuro sempre não qualificar, não apelidar, não fazer juízos de valor sobre o adversário, que tento não considerar um inimigo. Enfim, sou o que se apelida de uma pessoa educada.
Aprendi isto ao longo da vida com a diversidade ideológica que caracterizou sempre a família onde nasci. Do lado materno nove irmãos, do lado paterno doze. Tudo gente que pensava por si e deu exemplo de respeito pelas cabeças dos outros.
Lembrei-me disto a propósito das quatro décadas passadas sobre o 25 de Abril e da actual querela no PS. Muitos já nasceram depois da primeira e o que sabem dela é o que lhes transmitem os seus, o ensino ou a investigação. Os restantes, os que a viveram, continuam, quarenta anos depois, a usar, para qualificar os que não pensam como eles, termos cujo significado já pertence à história da carochinha.
De facto, quem em 1974 tivesse 20 anos, terá agora 60. Haverá alguma lógica em epítetar estas pessoas pelo que eram na sua juventude? Será que em quatro dezenas de anos não teremos todos mudado muitíssimo?
Fico sempre muito impressionada quando leio a opinião de gente que ocupou cargos de responsabilidade, qualificar da forma mais deselegante, quem não pensa do mesmo modo. Mas se alguém quer levar o outro a mudar de opinião, será pela agressão verbal que o conseguirá?
O PS está numa campanha interna que devia ser esclarecedora daquilo que está em causa para o partido e para o país, uma vez que pretende governa-lo. Já estão todos engalfinhados e ninguém percebe onde está a verdadeira diferença entre Costa e Seguro. Talvez, mesmo, só, o estilo de cada um.
Os portugueses podem não ser os mais instruídos da Europa, podem não ser muito politizados, podem até ser instrumento partidário. Mas a maioria deles tem um enorme bom senso e sabe o que quer. Sabe castigar e sabe louvar. Basta que pensemos neles e no país, muito antes de pensar na ambição política. E isto vale tanto para o governo como para a oposição ou para as crises intestinas partidárias.
Por isso, sejam educados, por favor. Dêem um exemplo de civilidade e de cidadania!

Será isto o que nos espera?

Sérgio de Almeida Correia, 06.02.14

Em quaisquer circunstâncias, a indiferença foi sempre um estado de espírito ou uma atitude que me assustou. Somos feitos de matéria, temos vontade, aparentemente pensamos e somos seres capazes de tomarmos decisões, o que nos distinguiria de outras espécies que ocupam o mesmo espaço neste planeta onde habitamos. As imagens do vídeo que aqui trago, divulgado pelo La Reppublica, não devem ser vistas como um mero caso de violência urbana numa cidade que tem fama, injustamente para muitos dos seus cidadãos, de ser um dos locais de acolhimento dos camorristas. O roubo por esticão vulgarizou-se por todo o lado, a falta de segurança não é um exclusivo de Nápoles, a violência faz parte do quotidiano de muitos países, Portugal não foge à regra. Os relatos diários de alguma imprensa confirmam-no. Fosse por isso e não vos traria aqui estas imagens. O que me leva a convocar-vos para as verem é o facto de perante uma cena como a que foi filmada e presenciada por algumas dezenas de pessoas, a única que saiu em defesa da vítima foi, imagine-se, um jovem emigrante. No caso tratou-se de um pedinte de origem africana, aquilo a que muitos entre nós chamam um "sem abrigo". De todos os que ali estavam naquele momento talvez fosse aquele que tinha mais a temer pelas consequências, pela origem, pelo estigma da cor da pele. Porém, foi ele o único que se levantou, que ofereceu resistência, que se indignou, que cumpriu um dever de cidadania sem que esta lhe seja conferida. Para tantos que hoje gritam contra a emigração, contra a presença de estrangeiros, que culpam os outros pela crise, pela falta de empregos, pelos salários baixos, e que insistem em fechar as fronteiras enquanto olham de soslaio e com desdém para os que fogem a um destino de miséria e tentam encontrar na Europa o que lhes foi negado na terra de onde provavelmente nunca teriam querido sair, estas imagens devem obrigar a uma reflexão. Sei que esta não mudará quase nada no nosso dia-a-dia, mas talvez possa ajudar-nos a olhar para alguns que connosco se cruzam com outros olhos. O outro somos nós. A vítima também.    

Petição para permitir a candidatura de grupos de cidadãos independentes à Assembleia da República

Rui Rocha, 08.11.12

(...)

Urge por isso permitir que grupos e movimentos de cidadãos tenham a capacidade e a possibilidade de estarem representados na Assembleia da República, fora do âmbito tradicional dos partidos, já que estes candidatos trarão à função de deputado uma nova dinâmica e responsabilidade políticas, pelo seu envolvimento em causas especificas e não partidárias. Esta mudança manteria a Constituição da República Portuguesa a par da mudança social a que o país assistiu nos últimos 30 anos e, estamos certos, contribuiria para aumentar a participação cívica em Portugal 

Assim, os portugueses abaixo-assinados, ao abrigo do direito de petição, solicitam que os deputados à Assembleia da República, aquando da abertura do próximo processo de revisão constitucional: 

Proponham a alteração do n.º 1 do artigo 151º da Constituição da República Portuguesa de modo a que este passe a permitir a candidatura de grupos de cidadãos independentes à Assembleia da República. 

  

Os interessados em consultar o texto integral e em subscrever podem fazê-lo aqui


"Ai, não percebo nada".

Luís M. Jorge, 14.01.12

É a confissão da semana nos blogs liberais. De um dia para o outro a direita portuguesa encheu-se de cheerleaders loiras e alheadas. Mas não faz mal, meninas, porque a Carla Quevedo explica:

(…) Sobre as nomeações recentes para a EDP, etc., António Lobo Xavier mostrou incómodo com aquilo que disse ser um problema de percepção. Ora, isto subentende que os factos estão bem, obrigada, o que estraga tudo é a altura em que as coisas se fazem. Lobo Xavier é mais inteligente do que isto. O problema real é haver gente a não fazer a mínima intenção de passar pela ‘necessidade de sacrifícios’ que leva a vida a pregar aos outros. Não é um problema de inveja. E a ganância é o menos, francamente. Sempre houve e sempre haverá. Só um louco é que se dedica à tarefa de mudar a natureza humana. O pior é ter de ouvir os pregadores na televisão, ter de lhes aturar o discurso do que os outros devem fazer, como devem viver. É assim que o cidadão mais pacífico dá por si a defender a revolução francesa. Há, contudo, um aspecto positivo nisto tudo. Por estranho que pareça, vejo o momento que estamos a viver como uma oportunidade de o País mudar para melhor. O tempo não está a nosso favor, mas também acontecem coisas boas quando as pessoas se fartam (…).

Haja paciência.