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Delito de Opinião

50 anos após Pinochet

jpt, 11.09.23

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Hoje é dia de (tristes) efemérides. Passam 50 anos sobre o golpe de Pinochet, que marcou a minha geração - e as anteriores. Fui ler os chilenos que tenho. Mas mantenho-me nada atreito a Neruda. Por isso virei-me para este nicho de Luís Sepúlveda, que o meu pai me legou. Reli "O Velho que Lia Romances de Amor", a história de António José Bolívar Proaño, num livro bonito, com um grande começo, "O céu era uma inchada barriga de burro, pendendo ameaçadora a escassos palmos das cabeças". Gostei mais do que antes gostara - então havia resmungado com a antropomorfização final da onça, com o tom "new age" que havia naquela novela antropológica, com o muito Hemingway que pressentira, pois aquilo é uma espécie de "O Velho e a Selva" - e agora leio em vários textos Sepúlveda a convocar a admiração que tem por Hemingway, a confirmar, se necessário fosse, essa filiação. Mas é óbvio que baixei a crítica, estou mais sensível, velho - mas continuo a resmungar que um romance "amazónico" se espeta quando chama insecto a um escorpião (ou será que estou errado?).
 
Li depois "O General e o Juiz", textos de opinião de quando o juiz espanhol Baltazar Garzón tentou prender o já velho Pinochet, não só sumarizando a malvadez do ditador como irando-se contra os obstáculos que foram sendo levantados pelos Estados a esse julgamento - e o vieram a inibir. E mais três colectâneas de textos de opinião e algumas crónicas - "Histórias Daqui e Dali" (o mais interessante, em minha opinião), "Crónicas do Sul" e "Uma História Suja" -, mostrando o escritor empenhado e de verve solta. Mas com grande défice na ironia, pois constantemente a escorregar para o sarcasmo, furibundo quantas vezes, até cruzando o que se poderia antever - como quando resumiu Colin Powell a um "escurinho" que cantaria "spirituals" na Casa Branca ("Uma História Suja", pp. 115-116). São textos nos quais apresenta laivos de memórias do regime de Allende e a (triste) história chilena desde o golpe, entre factos da ditadura e protestos contra a urdidura constitucional que enquadrou a subsequente democratização do país, salvaguardando os implicados na repressão. Mas também as suas opiniões pessoais sobre o estado do mundo.
 
Entretanto comecei hoje o "A Sombra do que Fomos", romance com belo ritmo inicial, que me parece ser uma memória ficcionada dos tempos de Allende - mas vou mesmo no início, não posso afiançar. Promete... E depois seguir-se-á o último que tenho, "A Lâmpada de Aladino", conjunto de contos.
 
Antigo membro do PC chileno, miliciano de Allende, guerrilheiro sandinista, exilado na Europa, Sepúlveda tem nestes textos, escritos até cerca de 2010, um anti-americanismo -- anti-gringuismo, se se quiser -, típico da sua região de origem. É mesmo um olhar típico de região e de era: nas centenas de páginas que percorri em que vitupera EUA, a UE, os democratas europeus que não sejam da esquerda profunda (e para todos estes vai usando epítetos como "fascistas" ou similares) - ainda que se deixe louvar, em voz indirecta, pois por interpostas personagens, a social-democracia sueca -, elide o mundo comunista, tendo eu notado apenas uma referência à STASI. E para a considerar similar ao governo de Bush Jr... Ou o mais liminar "julgávamos que o mundo ficava melhor com a queda do Muro mas ficou pior" (cito de memória). Um tipo vai lendo isto e não  diz "não acredito". Porque sabe que era assim, uma enorme franja de intelectuais (e não só) pensou assim: décadas passaram a lamentar as vigentes e passadas ditaduras, os sofrimentos, torturas (e Sepúlveda alude as que sofreu e assistiu), assassinatos, censuras, etc. E depois as mesmas sensibilidades esqueciam os sofrimentos, afinal, vizinhos, sob os jugos comunistas, "camaradas". Um tipo de facto sabe que era assim. E que, não se deve esquecer, ainda é entre os escombros das "Internacionais", agora muitas delas feitas "identitaristas". 
 
Mas, apesar de tudo isto, vale bem a pena correr os textos de Sepúlveda. Para que não se esqueça a barbárie de Pinochet e dos seus congéneres de então. E para que sempre se refute o malvado aforismo "os nossos ditadores são melhores do que os dos outros", ou coisa parecida, que norteou (e vai norteando, ainda que menos do que antes) a "política real" de tantos Estados democratas.
 
E, após todas estas leituras, mais uma coisa: Sepúlveda era visita recorrente em Portugal. E morreu de Covid, após ter sido contaminado nas "Correntes de Escrita" no início da pandemia. Nessa época vários o invocaram, nas habituais eulogias, dizendo-o um homem interessante, simpático, cativante. Um tipo lê-o, vai discordando, resmungando, de vários dos textos opinativos - mas noutros percebe-o bem pertinente... E, acima de tudo, fica com a sensação que deve ter sido um gajo porreiro.
 
(Agradeço à equipa da SAPO o "destaque" feito a este postal)

Pré-Natal

jpt, 22.12.21

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Isto de andar alheado do mundo, coisa que não é de um solstício pessoal mas sim do verdadeiro ocaso, dá azo a surpresas. Pois só hoje, e bem atrasado, me apercebo de três notícias que a muitos parecem relevantes:
 
1) no Chile houve eleições. A esse propósito vejo quem se reencarne como Victor Jara, e cante revoluções e amanhãs que cantam. E outros que clamam "os russos vêm aí", anunciando o descalabro daquele país, até do continente e, presumo, mesmo do mundo global - ainda que, permito-me, entre estes não abundem doutas reflexões sobre o destrambelhamento social dos últimos anos chilenos;
 
2) agentes da GNR em Odemira passaram anos a deleitarem-se torturando e insultando imigrantes, e com o desplante de filmarem os actos, decerto que "para mais tarde recordar". Vá lá que alguns foram apanhados pela PJ. Mas isto mostra mesmo, sem rebuço, um ambiente geral (uma "cultura institucional", se se quiser), pelo menos permissivo. Noto, com um sorriso, que no meu universo-FB (consagrado pelo omnipresente Algoritmo), e blogal sempre tão politicamente empenhado e até abrasivo, este assunto não foi um "must". Cheira-me que enviesei um bocado demais, e em rumo destro, as minhas ligações-FB e atenções blogais. Ainda assim, e como reflexo de outras minhas estações de vida, resmungo que se eu fosse professor convocaria muitos destes doutores liberais que para aqui andam em azáfama e ensinar-lhes-ia que o liberalismo não é baixar os impostos e contestar as vacinas estatais. Pois é muito mais combater, até à última, ambientes que minguem as liberdades individuais. Dos nacionais e dos estrangeiros. Mas nem eu ensino. Nem eles aprendem.
 
3) A artista Grada Kilomba, a qual pelas fotografias presumo ser mulata, foi excluída de uma exposição por um júri de selecção para uma exposição. E vai uma grande polémica. Tendo eu 57 anos durante os últimos 37 fartei-me de ouvir resmungos, mais ou menos irados, contra júris nas mais variadas expressões artísticas e literárias. E sabe-se que alguns "grandes vultos", com décadas como consuetudinários jurados, alguns sempre mui respeitados na hora da morte, fizeram vida de serem execráveis clientelistas nessas artes. Mas agora a polémica é enorme e deu azo a "Carta Aberta" denunciatória, subscrita por várias organizações de nomenclatura radical e personalidades estrangeiras instando-nos a bons comportamentos.
 
Mas o delicioso do documento é um excerto: "Parece também de grande importância referir que a comissão foi composta por quatro pessoas brancas, e entre elas três mulheres e um homem, (...), deixando-nos com a complexidade das estruturas patriarcais e coloniais do sistema". Ou seja, isto já nem é só estes activistas exigirem-nos que nos assumamos como mónadas raciais, qu'isso já é o "pão nosso de cada dia" destes curandeiros. É mesmo esta coisa de que se um júri tem três mulheres e um homem e não actua como os activistas querem então é fruto das "estruturas patriarcais"... Tralha, claro, que dá gáudio aos académicos "decoloniais"..., que não há nada que dê tanto jeito como argumentos "infalsificáveis", como antes alguém disse, um alguém que não lhes convém que se leia ou se recorde.
 
Enfim, face a este estado "da Nação" e "do Mundo", para além do meu próprio, nenhum dos quais se recomenda, cumpre-me uma súmula que dê alento aos compatriotas, nos seus respectivos ocasos. Por isso aqui partilho esta informação: adquiri no fronteiro Pingo Doce este tinto "Portal de São Braz" a 1,8 euro cada garrafa, dada a simpática "promoção" então em curso, o qual é muito bebível - ainda que connoisseurs e doutores ("quem rima sem querer é amado sem saber") que por aqui passem possam clamar "zurrapa" - e do vizinho Lidl trouxe a consagrada "Queen Margot", ainda abaixo dos 7 euros, apesar da inflacção natalícia. A estas associo o que belas mãos amigas, seguidoras dos conselhos da DGS, me ofertaram: uma compota de abóbora e laranja, uma marmelada, ambas de confecção caseira.
 
E a todos afianço que com esta conjugação, e apesar do referido estado geral das coisas, se não inverto o ocaso pelo menos imagino solstícios. Imaginai-os também, se vos for possível.

Post-it

Fernando Sousa, 07.11.18

Quando a vi agora na imprensa chilena percebi logo que tinha morrido, ela, Ana de Recabarren, que só os anos, 93, e a doença calaram. Conheci-a em 98, em Santiago do Chile, na sede da Associação dos Familiares dos Detidos Desaparecidos, de que fora uma das fundadoras, e nunca mais esqueci o seu olhar já seco e a sua voz apostada: "Vivos mos levaram, vivos os quero!" Em 1976, a DINA levou-lhe o marido, Manuel, dois filhos, e uma nora, grávida. Ana maldisse então tudo o que mexia na terra e no céu mas depressa secou as lágrimas e arregaçou as mangas.E nunca mais baixou os braços. Até há dias. São estas pessoas que são o sal da terra. 

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Mundial no sofá (5)

João André, 20.06.14

 

E ao segundo jogo, nem uma semana decorrida, os campeões do mundo vão para casa. O Pedro apresentou uma razão para isso: a falta de sede de vitória. É uma observação crucial mas que me parece redutora. Claro que o Pedro concordará comigo quando eu digo que existiu uma combinação de efeitos, mas mesmo a simplificação com a falta de ambição não chega.

 

Vejamos: o estilo de futebol espanhol, o tiki-taka, é baseado na retenção de bolas e no passe curto entre os jogadores a meio campo. Esta é a explicação rápida. Mas é também um estilo de jogo que depende do passe rápido; da noção constante da própria posição da dos colegas; e depende aí do movimento constante sem bola, de forma a criar linhas de passe simples. O Pedro tem toda a razão quando refere a falta de desejo. Sem essa vontade de ganhar, de jogar com intensidade, os passes tornam-se preguiçosos e a movimentação mais lenta. Isso viu-se contra a Holanda. Outro factor que pesa imenso é a idade. Xavi e Xabi Alonso não estão novos e isso torna os minutos que levam nas pernas ainda mais pesados que no passado. Além disso parece óbvio que a condição física especialmente dos jogadores do Barcelona decaiu depois da saída de Guardiola, primeiro, e Villanova, depois.

 

O problema poderia ter sido parcialmente resolvido com sangue novo e outras tácticas. Infelizmente algum do sangue novo ficou lesionado (Thiago, Jesé Rodriguez) ou não foi seleccionado (Isco, Carvajal, Ander Herrera). Já do lado das tácticas, a única modificação feita por del Bosque foi a introdução de Diego Costa. Este parecia ser a resposta aos problemas da equipa espanhola, mas não chegou a ter tempo de se adaptar a um estilo completamente diferente daquele que jogou ao longo da época (possessão em vez de contra-ataque).

 

A renovação de que fala o Pedro foi sendo feita de fase final para fase final. De 2008 para 2010, a Espanha adicionou Busquets, Pedro, Piqué, Navas, Llorente, etc. Para o Euro 2012 a Espanha surgiu com um estilo diferente (efectivamente um 4-3-3-0) e adicionou Silva, Alba ou Mata à equipa. Para este mundial adicionou Azpilicueta (que não foi um upgrade em relação ao fiável Arbeloa) e Diego Costa. Certo que no banco estava, por exemplo, Koke, mas este sabia que a sua participação seria reduzida.

 

Por outro lado, depois da guerra qualquer um é general. Não era difícil de perceber a lógica de del Bosque ao confiar na velha guarda que tanto lhe deu a ganhar. Foi um erro, sem dúvida, mas é prematuro falar na morte do tiki-taka, tal como tenho lido e ouvido por muito lado. Uma das razões para esses comentários, para além da eliminação da Espanha, é o declínio do Barcelona e a forma como o Bayern foi destroçado pelo Real Madrid este ano. O problema desses comentários é que não percebem o oposto: o Bayern de Munique foi este ano destroçado não por tiki-taka a mais mas por tiki-taka a menos. No próximo ano poderemos estar certos que Guardiola vai fazer subir os níveis de posse de bola. Por outro lado, a adopção do estilo de retenção de bola por parte de tantas equipas (o próprio Chile, a Itália, o Liverpool e o Manchester City em Inglaterra) demonstram que este é o estilo preferido do momento. O facto de haver antídoto não é de espantar: as tácticas mudam ao longo dos tempos e os sistemas evoluem constantemente para poderem neutralizar os adversários e poderem acrescentar armas ao arsenal.

 

A Espanha vai certamente continuar a ser uma favorita em Europeus e Mundiais. Prontos para entrar estão Koke, de Gea, Javi Martinez, Illarramendi, Isco, Herrera, Thiago, Deulofeu, Jesé, etc. E ainda se manterão Busquets, Piqué, Ramos, Alba, Fábregas, Iniesta, Costa, Silva, Mata e, talvez, Casillas, que em dois anos não desaprendeu de ser guarda-redes. Xavi poderá não ter sido necessariamente o melhor jogador da história da selecção espanhola (em termos de puro talento outros poderão reclamar também o manto), mas foi sem dúvida o mais importante. Por estes dias em que o seu tempo chega ao fim, seria uma homenagem muito pobre ao seu contributo tentar apagá-lo. Especialmente quando tantos há que estarão prontos a demonstrar que a luz de Xaci ainda os guiará pormuito tempo.

 

Da minha parte, e mesmo reconhecendo que considerei muitas vezes o futebol espanhol como chato, deixo a minha homenagem. Obrigado Espanha. Obrigado Xavi. Pelo futebol e pela nova forma de o pensar.

 

Mas afinal suicidou-se ou mataram-no?

Fernando Sousa, 08.11.13

 

Parece que Allende poderá não se ter suicidado... A dúvida volta a agitar o Chile. A tese de que o antigo Presidente preferiu pôr termo à vida do que entregar-se foi defendida durante anos por colaboradores próximos e a família. Em 2011, para acabar com zunzuns de que não fora nada assim, que o tinham era morto, um juiz ordenou que o exumassem. Terminada a peritagem, os médicos forenses puseram-se de acordo: matara-se mesmo, com um disparo da AK-47, que Fidel Castro lhe oferecera. E o cadáver voltou a ser sepultado, com a sua verdade. Mas dois jornalistas e um médico chilenos não ficaram convencidos, esburacaram no episódio e encontraram indícios de que muito, muito provavelmente foi mesmo morto pelos assaltantes de La Moneda, na manhã do dia 11 de Setembro de 1973. São dos títulos que mais estão a vender na Feira do Livro de Santiago, a FILSA, nos 40 anos do golpe de Pinochet. Um é assinado por Maura Brescia e o outro por Francisco Marín e Luis Ravanal (médico). Brescia por exemplo enumera contradições e inconsistências nas conclusões forenses, diz que o líder da Unidade Popular foi atingido por dois disparos na cabeça, tendo o segundo sido feito para encenar o suicídio. E que este não foi de nenhuma AK, espingarda que de resto nunca foi encontrada. Bom, se tiver sido assim, e não vai ser fácil prová-lo, os militares sairão bem pior da história. Para Allende e o mito será indiferente. 

Allende suicidou-se, e pronto!

Fernando Sousa, 30.01.11

 

Allende suicidou-se, e pronto. Qualquer que seja o resultado das investigações do juiz Mario Corrazo, nada alterará isso. Primeiro pelo peso das declarações da única testemunha da morte, um dos seus médicos pessoais, segundo porque as verdades que acompanham os mitos são, por natureza, indestrutíveis, terceiro porque, mesmo que se provasse que fora morto pelos prussianos que assaltaram La Moneda, a justiça chilena, demasiado pútrida, jamais encontraria os culpados, se os encontrasse nunca os processaria, se os processasse nunca os julgaria, se os julgasse nunca condenaria, e se os condenasse eles jamais cumpririam qualquer pena. Estamos portanto perante um caso encerrado antes de aberto – aliás aberto só por o nome do antigo Presidente constar na lista dos mais de 700 casos nunca investigados. O que está a acontecer é apenas uma performance político-jurídica. Allende suicidou-se porque tinha jurado que nunca aceitaria o exílio e que só abandonaria o cargo, para que fora livremente eleito pelos chilenos, com os pés para a frente – que foi o que aconteceu, no dia 11 de Setembro de 1973, pelo 80 da Morandé, a modesta porta de serviço do palácio por onde entrava e saía sempre. De qualquer modo se não se tivesse suicidado teria sido morto, leia-se neste sentido a Interferencia Secreta, de Patricia Verdugo, ou ouça-se o registo rádio da conspiração. Mas admitindo, por absurdo, que se descobriria que fora morto, à performance seguir-se-ia o teatro. O que é a justiça chilena, está bem ilustrado no Livro Negro da Justiça Chilena, de Alejandra Matus – que aliás teve de se exilar para não sofrer algum inesperado acidente. Ela não é toda igual, evidentemente, tem pessoas como Hugo Gutiérrez, o juiz Tapia, o próprio Corrazo, um juiz com provas dadas, e outros. Mas é só um pequeno grupo de gente asseada contra um esquema sujo, para mais agora com o poder ocupado pela mesma direita que há anos tenta branquear as atrocidades do regime militar e fazer dos tribunais, magistrados e leis uma paródia. Allende suicidou-se, e pronto. Viu-o Patricio Guijón; assegura-o outro dos seus médicos, Óscar Soto Guzmán, no livro El Último dia de Salvador Allende e nas declarações que voltou a fazer; garante-o Isabel Allende, numa entrevista que me deu, em 1998, em Santiago, e noutras; afirmou-o a antiga secretária, Miria Payitas; declarou-o Carlos Altamirano; reconheceu-o até Patrício Aylwin, mesmo da forma no mínimo despudorada que usou: “El suicidio de Allende podría explicarse por el curso frívolo y de autoengrandecimiento en el que se había embarcado el Presidente”. Esperemos então pela confirmação do suicídio. A justiça de que a justiça chilena é capaz, para não falar de como deixou escapar Pinochet, está aí, na maneira como está a tratar os assassinos de Victor Jara, um dos primeiros a cair nos primeiros dias do golpe, a mesma que afagou, como afagou, os que mataram Jécar Neghme, o último a ser abatido, por militares que agora andam tão libres como a pomba Libre da canção de Nino Bravo, nos últimos da ditadura. Salvador Allende suicidou-se, e pronto.

Y ganó Dios

Pedro Correia, 25.10.10

Esta é já, para mim, a frase do ano. Foi proferida por um dos 33 mineiros libertados por um prodígio de tecnologia após 69 dias de cárcere imprevisto 700 metros abaixo de terra. "Estuve con Dios y estuve con el diablo. Me pelearon y ganó Dios, me agarré de la mejor mano." É esta a frase, proferida pelo extrovertido Mario Sepúlveda, o segundo mineiro que regressou à superfície naquele já inesquecível 14 de Outubro, o primeiro de dois dias que fez colar mil milhões de pessoas aos ecrãs televisivos em todo o mundo. "La mejor mano" possibilitou que esta história, ao contrário de quase todas que nos vão chegando ao domicílio, tivesse um final feliz. Mais emocionante, mais empolgante, mais cheia de imprevistos e com muito melhor elenco do que a esmagadora maioria da ficção televisiva e dos reality shows que se produz actualmente. Foi uma espécie de fim de ciclo, completando a aventura espacial de há 40 anos. Nessa altura, o homem aventurou-se em direcção a outro planeta; agora desce às entranhas da Terra, como as personagens de Verne, e regressa para relatar o que viu.

Heróis do nosso tempo, estes mineiros: vamos ouvir falar deles através dos anos. A operação de resgate que os devolveu à luz do dia resgatou-nos também, de algum modo, o orgulho pela espécie humana, tão abalado tem andado por estes dias.

Uma notícia também exige adjectivos

Pedro Correia, 21.10.10

 

Durante anos, ouvimos repetir a ladainha: a escrita jornalística, de carácter noticioso, deve estar totalmente despojada de adjectivos. Esta defesa intransigente de uma prosa jornalística “pura", sem qualificativos, sob a inspiração da clássica escrita de agência noticiosa norte-americana, cede na prática à imposição dos factos. Uma prosa despida de adjectivos, ao contrário do que indicavam as regras clássicas, acaba por ser muitas vezes a negação do verdadeiro espírito jornalístico, que resulta de uma estreita cumplicidade entre o autor da peça e o leitor.

Querem uma prova? Veio na primeira página do passado dia 12 num dos jornais mais clássicos do planeta: o Times, de Londres. O texto da manchete, dedicada à odisseia dos mineiros chilenos, arrancou com este parágrafo: “After 69 agonising days, the dramatic rescue of 33 miners trapped far beneath Chile’s Atacama desert was finally ser to get underway last night.”

Reparem: dois adjectivos em quatro linhas deste curto texto. Que ficaria muito mais pobre sem os termos “dramático” e “agonizante”. O jornalismo não deve recear o adjectivo justo, claro, preciso, envolvente, apaixonante e apaixonado. Como esta destacada notícia do Times bem demonstra.

E como evitar a utilização de termos valorativos na narração desta história - uma das mais marcantes não só do ano mas também da década? Tudo está bem quando acaba bem. De respiração suspensa, o mundo acompanhou a inédita operação de resgate dos mineiros chilenos, que contou com o incentivo permanente do Presidente da República, Sebastián Piñera. Uma situação limite, que em circunstâncias normais conduziria à morte dos 33 trabalhadores encurralados a 700 metros de profundidade. Mais de dois meses depois do acidente que os deixou enclausurados numa mina de cobre, os 32 chilenos e o seu companheiro boliviano voltaram enfim a ver a luz do dia. Em ambiente de mobilização colectiva, numa altura da história do mundo tão marcada pelo individualismo galopante, em ambiente de solidariedade, numa fase em que os egoísmos nacionais pontificam, estes heróis dos nossos dias regressaram à superfície reconduzindo-nos de algum modo ao imaginário de Júlio Verne: a viagem ao centro da Terra é a última utopia possível neste planeta. Uma utopia que, numa escala limitada, estes homens concretizaram com sucesso. Inesquecível foi o momento em que o último mineiro, Luis Urzúa, cantou o hino nacional chileno abraçado a Piñera. Sem distinções sociais ou políticas de qualquer espécie – naquele minuto, eram apenas dois seres humanos partilhando um irrepetível instante de alegría.

Foi um dos momentos mais marcantes de um ano que já tinha sido tragicamente assinalado, a 27 de Fevereiro, por um brutal sismo no Chile. País mártir. País de esperança também. Um exemplo para a humanidade inteira.

Como escrever uma notícia destas sem adjectivos?

O popular Piñera, um anti-Chávez

Pedro Correia, 16.10.10

 

As crises revelam os homens: nada melhor do que um drama inesperado para conhecer a face autêntica de um político. A inédita epopeia dos mineiros soterrados a 700 metros de profundidade, acompanhada com emoção em todo o mundo, constituiu uma oportunidade ímpar para testar a capacidade de liderança de Sebastián Piñera, um homem assumidamente de direita que teve o pesado encargo de substituir a social-democrata Michelle Bachelet, dirigente muito querida dos chilenos, no Palácio de La Moneda.

Acusado por sectores da esquerda radical de nostalgia pela ditadura de Pinochet, Piñera triunfou nas urnas – à segunda volta – em Janeiro de 2010. Mas só agora se impôs verdadeiramente como dirigente popular e quase incontestado graças ao modo firme, convicto e determinado como conduziu o resgate dos 33 mineiros, dando ordem para que não fossem poupados esforços nem cifrões na concretização desse objectivo, cortando drasticamente o programa oficial das celebrações do bicentenário da independência do Chile e fazendo ver aos proprietários da mina que terão de respeitar integralmente os direitos dos trabalhadores.

Piñera é uma espécie de Hugo Chávez às avessas: defende a iniciativa privada e o pluralismo politico, sem transformar os adversários em “inimigos” ou “traidores”, como faz a toda a hora o Presidente venezuelano. Com menos retórica e muito menos bravatas, já consegue ser mais popular que ele.

 

Publicado no DN

 

ADENDA: Muitos mineiros enfrentam um destino trágico. Uma derrocada numa mina de carvão chinesa provocou 20 mortos, havendo 17 trabalhadores soterrados. Também na Colômbia há hoje dois mineiros encurralados, igualmente numa mina de carvão. E no Equador registaram-se quatro mortes numa mina de ouro. Piñera, e bem, ofereceu ajuda.