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Delito de Opinião

Cocktails Molotov contra a Porta dos Fundos

Paulo Sousa, 25.12.19

Tem sido notícia o ataque com cocktail molotov ao edifício da conhecida produtora humorística Porta dos Fundos, após a divulgação do seu Especial de Natal.

Trata-se de um ataque violento contra a liberdade de expressão, e esta frase não pode ser acrescentada com a conjunção “mas”. O ataque contra o Charlie Hebdo, com um nível muito superior de violência e que causou doze mortes, lançou um debate que utilizou demasiadas vezes a conjunção “mas”.

É um facto que é muito mais confortável e cómodo fazer humor sobre a Igreja e os seus membros do que sobre o Islão. A título de exemplo é fácil lembrar todas a imitações que o popular humorista português Ricardo Araújo Pereira já fez dos padres com sotaque beirão sem que isso nunca lhe tenha levantado qualquer problema. Podemos também contar pelos dedos de uma mão amputada quantas piadas é que ele já fez sobre muçulmanos, e isso não se deve à sua falta de talento mas, arrisco, a uma sensação defensiva que associamos normalmente a um determinado orifício corporal.

Essa escolha, consciente ou não, é humana e aceitável mas acaba por ser redutora das suas inegáveis capacidades. De quantas boas piadas sobre o Ramadão, ou sobre os restantes quatro pilares do Islão, já fomos privados apenas porque é mais seguro imitar um padre? Já o ouvimos várias vezes a elaborar sobre os limites do humor mas continuo à espera de uma boa piada sobre Meca.

No Brasil, a religião é vivida com uma intensidade bem superior à da Europa, ou da maioria dos países maioritariamente cristãos, e isso não justifica de nenhuma forma o ataque, embora possa explicar em que contexto ele aconteceu. A religião faz parte da equação da crispação que caracteriza a vida política brasileira dos últimos anos e este ataque não poderá ser desligado das posições políticas assumidas desde sempre pela Porta dos Fundos.

Mudar de canal, de página ou do café que frequentamos continua a ser a forma civilizada de lidar com o humor, bem ou mal conseguido, que possa apoucar as nossas convicções religiosas, políticas, clubísticas ou outras. Ninguém é obrigado a assinar o Charlie Hebdo, a ver os vídeos da Porta ou a ouvir o Mata Bicho do Bruno Nogueira, na rádio pública. Basta mudar de canal.

Gosto de enquadrar esta abordagem numa outra mais alargada e que consiste em não ambicionar reeducar outros sujeitos, especialmente adultos. O cepticismo prévio para com a capacidade dos humanos em agir com grandeza, permite-me ficar por vezes deliciado quando sou surpreendido com o sentido de dignidade, de generosidade e abnegação de algumas pessoas. Prefiro contar com tacanhez e descobrir grandiosidade do que contar com razoabilidade e tropeçar em grosseria.

Mas isto pode ser tratado noutro post.

Já ninguém é Charlie

Pedro Correia, 07.02.15

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Os bárbaros atentados de 7 de Janeiro em Paris, que vitimaram 17 pessoas (incluindo alguns dos mais conhecidos caricaturistas franceses), ocorreram faz hoje um mês. Mas parece ter já decorrido um ano. Durante alguns dias ouviu-se gritar "Je suis Charlie" em alta estridência um pouco por toda a parte: até o George Clooney achou "giro" exibir-se com um dístico desses numa festarola em Hollywood.

Sobre as cinzas do massacre logo tombou a lei do silêncio, impondo-se por toda a parte um pragmatismo amedrontado - enquanto o fanatismo islâmico continua a matar. Agora já quase ninguém é Charlie. Nem o Clooney, sou capaz de apostar.

Desnorte e hipocrisia

Rui Rocha, 24.01.15

Pelo visto, um gajo com 16 anos foi detido em França sob a acusação de defender o terrorismo. O delito que cometeu foi a publicação no Facebook do cartoon que podemos ver à direita. É preciso ser claro. O pior que pode acontecer na sequência da carnificina de Paris é trilhar de forma acéfala um caminho de restrição das liberdades. O lugar dos criminosos é na prisão. O dos idiotas, insensíveis, desbocados, escabrosos, blasfemos ou javardos, só por o serem, e por muito que o sejam, não.

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Mais um que mordeu o isco

Rui Rocha, 15.01.15

Pois é. Quando se admite que o terrorismo é desencadeado como resposta a uma provocação, em lugar de nos concentrarmos na condenação radical do acto, denunciando o seu desvalor absoluto e intrínseco, acabamos enredados numa discussão sobre a liberdade de expressão e os seus limites. Que desemboca sempre na racionalização do que não tem racionalidade possível e, nos piores casos, em atenuar a gravidade da agressão. Desta vez, quem se estatelou foi o Papa Francisco:

“Temos a obrigação de falar abertamente, de ter esta liberdade, mas sem ofender. É verdade que não se pode reagir violentamente, mas se Gasbarri [Alberto Gasbarri, responsável pelas viagens internacionais do papa], grande amigo, diz uma palavra feia sobre minha mãe, pode esperar um murro. É normal!”

Olhares sobre o drama de Paris

Pedro Correia, 15.01.15

David Brooks, New York Times: «Os jornalistas do Charlie Hebdo estão a ser justamente celebrados como mártires da liberdade de expressão, mas encaremos os factos: se eles pretendessem publicar o seu jornal satírico em qualquer universidade norte-americana das últimas duas décadas o projecto não teria durado 30 segundos. As associações de estudantes tê-los-iam acusado de fomentarem o ódio. As administrações universitárias ter-lhes-iam bloqueado o financiamento e encerrado a publicação.»

 

Nick Cohen, The Observer: «Temos em vigor uma lei contra a blasfémia. Não foi aprovada por nenhum eleitor. Nenhum parlamento a votou. Nenhum juiz decide sobre a sua aplicação e nenhum júri avalia eventuais culpas dos infractores. Não há direito a recurso. E a pena é a morte. Não é cumprida por intervenção de polícias sujeitos a códigos de conduta, mas pelo temor de quem nem se atreve a pronunciar-lhe o nome. E a cobardia é tão grande que até falta a coragem para admitir que se tem medo.»

 

Javier Martínez-Torrón, El Confidencial: «Se queremos erradicar o fanatismo religioso - e é essencial que o façamos - o caminho não passa por glorificar o insulto de quem pensa de maneira diferente da nossa, mas por um jornalismo mais consciente da sua responsabilidade social e mais sensível em relação aos valores das minorias.»

 

Jonathan Turley, Washington Post: «Se os franceses querem honrar a memória dos assassinados na sede do Charlie Hebdo, podem começar por revogar as suas leis que criminalizam o insulto, a difamação, o incitamento ao ódio, à discriminação ou à violência com base em religião, raça, etnia, nacionalidade, incapacidade física ou orientação sexual. Estas leis têm sido usadas durante anos para penalizar o jornal satírico e ameaçar os seus profissionais. As opiniões em França estão a ser circunscritas ao seu uso "responsável", sugerindo-se assim que a liberdade de expressão é mais um privilégio do que um direito de quem a exerce de forma controversa.» 

 

 

A armadilha

Rui Rocha, 13.01.15

Se pensarmos bem, é provável que tenhamos caído (quase) todos numa monumental armadilha. Chocados, voluntariosos, acabámos a contrapor a valentia dos caricaturistas do Charlie Hebdo à cobardia dos terroristas. Isto é, condenámos a carnificina, mas deixámos que a discussão orbitasse em torno de uma resposta (brutal e intolerável, é certo) a uma provocação. Mas isto implica admitir uma racionalização do comportamento terrorista a partir da conduta da vítima. Da mesma forma que o juiz num processo de violação racionaliza a agressão no momento em que refere que a agredida se vestia de forma provocante. A racionalização opera, num caso e no outro, e ainda que a condenação do comportamento se mantenha sem contemplações, como uma cedência à narrativa do agressor. A verdade, todavia, é que ninguém viola alguém por causa de uma minissaia. Da mesma forma que os terroristas não matam em resposta a provocações. Os que morreram no 11 de Setembro, ou em Londres e Madrid, não tinham provocado ninguém. Dizer que o ataque aconteceu porque foram publicadas as caricaturas implica reconhecer que os agressores teriam vivido pacatos e serenos se o Charlie Hebdo não as tivesse publicado. E isso vale por desenhar, pelo medo, uma mordaça na boca de cada um de nós. Mas o certo é que aqueles ou outros teriam sido atacados, mais tarde ou mais cedo, independentemente de desenharem ou não. Terror é terror e para um terrorista todos os alvos são legítimos. Que o digam os muçulmanos que são vítimas, diariamente, dos mais abjectos comportamentos. Terroristas e violadores não precisam de um motivo. Precisam apenas de um pretexto.

Da complacência do mundo muçulmano

Teresa Ribeiro, 11.01.15

A propósito do massacre do Charlie Hebdo, dos jihadistas que o perpetraram e dos extremistas islâmicos em geral, escreve Miguel Sousa Tavares:

"Deus é apenas a desculpa e o pretexto para a sua imensa cobardia. A deles e a de todos os muçulmanos, clérigos ou leigos que, pelo silêncio ou pela conivência ideológica, deixaram que a imagem do Islão esteja hoje irremediavelmente associada em muitos espíritos à da simples bestialidade humana"

(...)"O que temos de levar a sério é a complacência do mundo muçulmano para com aqueles que invocam a sua fé e a sua doutrina para espalhar o terror e minar os fundamentos das sociedades livres em que vivemos" - excertos da sua crónica da edição de ontem do Expresso

Um dia histórico para a Europa

Pedro Correia, 11.01.15

Blasfémia e liberdade

Rui Rocha, 10.01.15

Quando a carnificina do Charlie Hebdo já não for mais do que uma vaga memória, há uma questão que importará resolver. Há lugar, ou não, para a blasfémia numa sociedade civilizada? É, ou não, desejável que a crítica, a oposição, a discussão de ideias, se faça de forma polida, sem intenção ou necessidade de ofender as opiniões e os credos dos demais? A minha liberdade acaba, ou não, quando começa a liberdade do outro? De momento, é tudo muito claro. Somos ou dizemos (quase) todos que somos "Charlie". A blasfémia proclama-se, de forma mais ou menos autêntica, como direito irrenunciável. Mas depois, quando o distanciamento trouxer outra calma, em que ficamos? De momento, à falta de uma visão mais lúcida dos acontecimentos e de uma reflexão mais abrangente, há uma linha que me parece clara. Sempre que uma acção blasfema ou uma prática ofensiva tiverem a ameaça ou a concretização da morte ou de qualquer tipo de violência por parte de poderes ou grupos mais ou menos organizados como reacção provável ou real, precisaremos sempre de mais e mais blasfémia. Cada nova ofensa constitui, nesse caso, a ampliação do espaço de liberdade.

Estavam mesmo a pedi-las

Pedro Correia, 10.01.15

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Como ontem escrevi, não somos todos Charlie. Essa é uma ilusão perigosa, que nos faz desviar do essencial.

Ainda as 17 vítimas dos três dias de morticínio em França permaneciam por sepultar - e os cadáveres de algumas delas mal tinham arrefecido - já por cá se faziam ouvir as primeiras vozes apostadas em justificar o terror homicida do fanatismo islâmico. Não faltando até quem apontasse um dedo acusador ao Charlie Hebdo, ao jeito de quem diz "estavam mesmo a pedi-las".

Como num súbito passe de ilusionismo, por efeito deste discurso dos arautos da "interculturalidade" que sempre "compreendem" os assassinos quando têm armas apontadas a Ocidente, os criminosos transformam-se em vítimas e estas sucumbem ao peso dos pecados da civilização europeia.

Estavam mesmo a pedi-las.

 

«A guerra contra o terrorismo causa muito sofrimento injusto. (...) O Ocidente tem vindo a provocar um caldo de intolerância, um caldo de repressão e de ódio que não poderia ficar sem reacção.»

É o discurso de Boaventura Sousa Santos, por exemplo. Numa desassombrada intervenção ontem à noite, na RTP informação, o mais mediático professor de Coimbra insurgiu-se contra os mortos: «Uma das caricaturas do Charlie Hebdo mais aproveitada pela extrema-direita era um conjunto de mulheres islâmicas, grávidas, que indicando a barriga diziam: "Não estraguem o meu apoio social." Isto era uma estigmatização do Estado Social, uma estigmatização das mulheres, uma estigmatização do islão.»

Embalado nesta oratória, prosseguiu: «O Charlie Hebdo despediu um caricaturista famoso, o Maurice Sinet, por ele ter feito uma crónica que foi considerada anti-semita.»

Eis a mais notável das estigmatizações proferida por quem acabara de se insurgir contra elas: a estigmatização dos assassinados.

 

Não, não somos todos Charlie Hebdo. Não, não estamos todos do mesmo lado.

 

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O acto de bárbarie que vitimou o Charlie Hebdo foi mais do que um atentado à liberdade de expressão: foi uma advertência sangrenta - mais uma - de que toda a blasfémia contra o islão se paga com a morte, seja em que latitude for.

Mas também aqui não somos todos Charlie. Longe disso.

«O limite à liberdade de expressão não pode deixar de estar na nossa mesa. Muitas vezes também há muito fanatismo do nosso lado. Nós temos hoje na Europa muitas populações que não se reconhecem na laicidade total. A laicidade não podia ser negociada interculturalmente na Europa, de outra forma?», proclamou ontem o irrevogável professor Boaventura na sua prédica na televisão pública.

Noutro canal, outro professor universitário, Luis Moita, apontava na mesma direcção. «Neste caso concreto, é verdade que houve um atentado à liberdade. Mas não creio que se possa dizer que os dois irmãos quisessem protestar contra o Ocidente no seu conjunto, contra os nossos valores. Eles estavam a vingar uma blasfémia. É bom a gente não ignorar essa componente fundamental do problema», declarou na SIC Notícias.

 

É, portanto, neste contexto que alguns já vão sugerindo com falinhas mansas algo semelhante àquilo que os mais fanáticos exigem a tiro: a revogação de dois séculos de secularismo ocidental para ajoelharmos perante os inimigos de Voltaire, que antes usavam sotaina e hoje usam turbante.

Como se o crime compensasse. Como se aquelas 17 vítimas do terror em nome de Alá tivessem morrido em vão.