O legado de Mário Soares
Soares na manifestação da Fonte Luminosa (19 de Julho de 1975). Também Lopes Cardoso, Salgado Zenha, Sottomayor Cardia, o advogado F. Sousa Tavares, a actriz Lurdes Norberto e o jornalista Vítor Direito. Em fundo, à direita, António Guterres (de bigode)
Em democracia, só existe uma forma legítima de mudar os titulares das instituições políticas: pelo voto. E quem nos ensinou isto, numa sucessão de actos exemplares durante os anos de brasa da revolução, foi um homem chamado Mário Alberto Nobre Lopes Soares, cujo centenário hoje se assinala.
Um homem que no Portugal pré-constitucional, quando a guerra civil esteve por um fio, enfrentou insultos e ameaças com notória coragem física e um desassombro cívico que a História (com H maiúsculo) registará. A espuma revolucionária, agitada pelo Partido Comunista e pela ultra-esquerda, não valia afinal mais de 15% nas urnas, como muitos concluiram com espanto ao fazer-se a contagem dos primeiros votos.
Personalidade cheia de contradições, como em regra sucede às figuras que deixam a sua impressão digital nos acontecimentos históricos, Mário Soares acertou no essencial. Ao fracturar a esquerda, isolando a sua ala mais sectária. Ao evitar um novo conflito religioso no Portugal revolucionário, demonstrando ter aprendido as traumatizantes lições da malograda I República. Ao apontar a Europa como novo destino português em alternativa às crepusculares rotas do império e sem demasiadas ilusões sobre as veredas da "lusofonia".
Mas o que mais lhe devemos foi ter participado na primeira linha do combate pela instauração no nosso país de uma democracia autêntica -- aquela que assenta no sufrágio livre, periódico e universal.
Com argúcia e ousadia, Soares disputou a rua aos comunistas, demonstrando-lhes no megacomício da Fonte Luminosa -- como De Gaulle fizera ao promover o gigantesco desfile dos Campos Elíseos na ressaca do Maio de 68 -- que o espaço público não é coutada particular das forças extremistas. E nunca deixou de fazer a indispensável pedagogia da vontade popular expressa nas urnas, mesmo quando isso ia contra o ar do tempo, como sucedeu no histórico frente-a-frente televisivo com o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, em 6 de Novembro de 1975.
Esse é o Soares que a História recordará.