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Delito de Opinião

O legado de Mário Soares

Pedro Correia, 07.12.24

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Soares na manifestação da Fonte Luminosa (19 de Julho de 1975). Também Lopes Cardoso, Salgado Zenha, Sottomayor Cardia, o advogado F. Sousa Tavares, a actriz Lurdes Norberto e o jornalista Vítor Direito. Em fundo, à direita, António Guterres (de bigode)

 

Em democracia, só existe uma forma legítima de mudar os titulares das instituições políticas: pelo voto. E quem nos ensinou isto, numa sucessão de actos exemplares durante os anos de brasa da revolução, foi um homem chamado Mário Alberto Nobre Lopes Soares, cujo centenário hoje se assinala.

Um homem que no Portugal pré-constitucional, quando a guerra civil esteve por um fio, enfrentou insultos e ameaças com notória coragem física e um desassombro cívico que a História (com H maiúsculo) registará. A espuma revolucionária, agitada pelo Partido Comunista e pela ultra-esquerda, não valia afinal mais de 15% nas urnas, como muitos concluiram com espanto ao fazer-se a contagem dos primeiros votos.

Personalidade cheia de contradições, como em regra sucede às figuras que deixam a sua impressão digital nos acontecimentos históricos, Mário Soares acertou no essencial. Ao fracturar a esquerda, isolando a sua ala mais sectária. Ao evitar um novo conflito religioso no Portugal revolucionário, demonstrando ter aprendido as traumatizantes lições da malograda I República. Ao apontar a Europa como novo destino português em alternativa às crepusculares rotas do império e sem demasiadas ilusões sobre as veredas da "lusofonia".

Mas o que mais lhe devemos foi ter participado na primeira linha do combate pela instauração no nosso país de uma democracia autêntica -- aquela que assenta no sufrágio livre, periódico e universal.

Com argúcia e ousadia, Soares disputou a rua aos comunistas, demonstrando-lhes no megacomício da Fonte Luminosa -- como De Gaulle fizera ao promover o gigantesco desfile dos Campos Elíseos na ressaca do Maio de 68 -- que o espaço público não é coutada particular das forças extremistas. E nunca deixou de fazer a indispensável pedagogia da vontade popular expressa nas urnas, mesmo quando isso ia contra o ar do tempo, como sucedeu no histórico frente-a-frente televisivo com o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, em 6 de Novembro de 1975.

Esse é o Soares que a História recordará.

Happy birthday, Mr. President

Jimmy Carter, nascido em 1 de Outubro de 1924, é hoje centenário

Pedro Correia, 01.10.24

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James Earl Carter Jr. - popularizado como Jimmy Carter quando foi governador da Geórgia, antes de chegar à Casa Branca - festeja hoje cem anos. É o primeiro antigo chefe do Executivo norte-americano a atingir tão bonita idade. Até agora os mais idosos tinham sido George Bush, falecido em 2018 aos 94 anos, Gerald Ford, falecido em 2006 aos 93, e Ronald Reagan, também desaparecido aos 93 anos, em 2004. Todos estes, curiosamente, do Partido Republicano - ao contrário de Carter, personalidade eminente do Partido Democrata.

«Jimmy Who?», titulou um influente diário no final de 1974, quando este filho de um cultivador de amendoins anunciou a intenção de concorrer à presidência. Dele se diz ter sido um dos piores presidentes dos EUA no século XX. Devido a factos tão diversos como a espiral da inflação, a grave crise energética, o acidente na central nuclear de Three Mile Island e o assalto de extremistas islâmicos à embaixada dos EUA em Teerão, fazendo 53 reféns num humilhante cativeiro que durou 444 dias.

 

Iniciou funções em Janeiro de 1977, mas ficou excluído de um segundo mandato. Sofreu derrota esmagadora contra Reagan na eleição de Novembro de 1980: só obteve 49 votos no colégio eleitoral, contra 489 do seu concorrente. O republicano sagrou-se vencedor em 44 estados, enquanto Carter apenas triunfou em seis, além do distrito federal. 

O melhor na sua carreira política aconteceu após sair da Casa Branca. Com as iniciativas que promoveu em prol dos direitos humanos, da educação, da justiça social, do desenvolvimento económico e do combate às doenças endémicas um pouco por todo o mundo. Sob o lema «Aliviar o sofrimento».

Em 1982 fundou o Centro Carter, respeitado organismo não-governamental que tem acompanhado diversos processos eleitorais - e que recentemente denunciou a vergonhosa fraude eleitoral na Venezuela

 

Em 2002 foi justamente galardoado com o Nobel da Paz. O mesmo que em 1978 havia distinguido Anwar Sadat e Menachem Begin pelos Acordos de Camp David que selaram o estabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e o Egipto, velhos inimigos, abrindo uma luz de esperança no Médio Oriente. 

Marco histórico que hoje nos parece sem paralelo, face aos tristes acontecimentos registados em 2024. Carter foi o grande promotor deste processo de paz. Também se destacou pelo histórico tratado assinado em 1977 com o Panamá que determinou a devolução a este país da plena soberania do canal do mesmo nome, então sob domínio norte-americano.

Já figura histórica ainda em vida. Facto raro, que merece ser assinalado. Como cantava Marilyn Monroe, Happy birthday, Mr, President.

 

ADENDA

Jimmy Carter: a vida em imagens. Excelente desfile de fotografias editadas pela CNN.

Ler (13)

No centenário de Agustina (1922-2022)

Pedro Correia, 15.10.22

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Faz hoje cem anos, nascia Agustina Bessa-Luís. Uma das nossas mais importantes prosadoras do século XX - com Aquilino Ribeiro, José Rodrigues Miguéis, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago e António Lobo Antunes.

Há exactamente dez anos, vivia ela ainda, escrevi aqui umas linhas indignadas com a forma como o seu espólio literário estava a ser tratado. Reclamei contra a editora que à época a representava - sua chancela durante décadas, que mudara de proprietário pouco antes - e considerei indigno da grande autora esse tratamento que a afastava de antigos e novos leitores: «Não há títulos seus em livros de bolso, a preços acessíveis. E, muito pior, a assumida divulgação das suas obras completas não passou afinal de um projecto abortado.»

Agustina morreu em Junho de 2019, aos 96 anos, sabendo que a sua obra voltara a ser acarinhada. Com nova editora - a Relógio d'Água, de Francisco Vale - e sua filha, Mónica Baldaque, cuidando com esmero do legado da mãe. Nos anos mais recentes, vários títulos há muito fora do mercado regressaram às livrarias, em versões valorizadas por impecável grafismo e capas apelativas. E, mais importante ainda, com notáveis prefácios escritos de propósito para a ocasião. Aliás até já originaram uma obra adicional: O Livro dos Prefácios à Obra de Agustina Bessa-Luís (2022). Se pudesse recomendar um, que serve de admirável introdução à leitura do conjunto dos seus romances, sugeria o que António Barreto (duriense, como ela) escreveu para As Pessoas Felizes

As obras vêm ressurgindo a um ritmo regular - não apenas as mais consagradas, desde logo esse marco do romance português que é A Sibila - mas outras que já só estavam disponíveis em bibliotecas, públicas e privadas. Aguardo ainda, por exemplo, a reedição de A Crónica do Cruzado OSB (1976). 

 

Mas o que hoje quero sublinhar é o pulsar da vida que se extrai das páginas redigidas por Agustina. Visão, audição, olfacto, paladar e tacto estão sempre presentes - seja em paisagens campestres, seja em quadros de matriz urbana; seja em cenas contemporâneas, seja em digressões pelo passado, mais próximo ou mais longínquo. 

As suas personagens desfrutam sem remorsos dos prazeres da mesa - facto raro na literatura portuguesa.

Basta ler este delicioso excerto de Fanny Owen

«Faziam-se bolachas de amêndoa e de cidrão, assim como refrescos de violeta e de bergamota. Servia-se peru à Cardeal, colorido com cascas de camarões pisados e assado no espeto, receita que só era ainda aviada nas cozinhas de Mesão Frio, assim como a empada de lombo de lebre, assim como leitão de javali com molho picante.»

Ou este, de Os Incuráveis

«Na lareira havia sempre essas caldas que se remexem com uma gadanha, se fazem correr do alto com uma colher de pau e esperam a massa das marmeladas ou de chila; ou é a canja que recoze cheia de olha amarela, ou o caldo de cinza onde se banham as passas, ou o cozimento de vinho do Porto onde se temperam fiambres.»

Ou este ainda, de As Pessoas Felizes

«A casa dos Torri era, senão pantagruélica, pelo menos duma abundância flamenga. Os almoços de domingo impressionavam pela fartura, e Góia Torri constituía um espectáculo a comer grandes quantidades de trutas, perdizes, lebres e vitela assada. Havia quem se introduzisse na sala de jantar com o pretexto de dar um recado, só para a ver servir-se de feijão-branco com orelheira.»

Sem as raquíticas côdeas de pão omnipresentes em dezenas de obras dos seus confrades das letras. 

 

Tenho a certeza que Agustina gostaria de ser evocada assim, neste dia do seu centésimo aniversário: como alguém que fez da literatura uma celebração da vida.

O que é outra forma de enaltecer a arte.

O triunfo do espírito

Laura Ramos, 26.01.12


Não gosto de preconceitos.
O preconceito é uma das mais letais armadilhas da inteligência.
Dirão que é uma tarefa difícil essa de reflectir, alimentar convicções e não cair no logro da opinião apriorística, conseguindo manter a equidistância dos puros e a frescura do primeiro olhar. E no entanto é esse o verdadeiro desafio da mente: conhecer-se tão bem a si própria que não se deixe perturbar no exercício pleno que se segue, o de pensar. Pensar os outros, pensar a vida. O que é dizer, as ideias dos outros e a vida dos outros. A isto se resume tudo.
Não gosto de preconceitos.

E é por isso que não me agradam pedestais e altares em vida. Além disso, deve ser tremendo ser santo ou herói, mesmo para quem mereça a libertação da lei da morte de que falava Camões.
O que eu gosto, sim, é de justiça, aquela que se faz do reconhecimento entre iguais. E da vénia que devemos aos outros (e a nós próprios) quando apontamos o dedo a um exemplo vivo de dons de humanidade.
Maria Adelaide de Bragança é uma mulher extraordinária. É o triunfo do espírito. É a racionalidade que vence o azar de nascer numa família ostracizada e marcada pelo estigma, às mãos de um Portugal inculto, provinciano e tacanho. É a racionalidade tão sábia que procura o anonimato. É a racionalidade que faz do dever muito mais do que um destino ditado pela educação, que sempre lhe estaria reservado mas, porém, não necessariamente assim.

«Resistiu ao nazismo, que a condenou à morte por haver acolhido em sua casa muitas pessoas perseguidas pela Gestapo. Dedicou décadas à promoção da ciência e da investigação médica, antes de se consagrar, até ao limite da entrega, aos excluídos. Foi uma mãe para milhares de crianças: recolheu-as das ruas, vestiu-as, alimentou-as, educou-as; em suma, foi assistente social, foi enfermeira, foi cozinheira, foi lavadeira...»

Nunca esquecerei quando contou que não punha cortinas nas janelas: -Para quê? Só acumulam pó e eu não tenho tempo para as limpar.
A sua condecoração vai passar-nos ao lado e não vai encher os salões nem as igrejas.

- Mas qual é o espanto? Caricatos e arrogantes somos nós. E afinal não é estranho que nos seja indiferente  o caso de alguém que demonstrou um sentido extremo do dever, neste país afogado na cultura obsessiva dos direitos.

Um Telefone à Janela

Ana Cláudia Vicente, 18.10.11

Não é difícil figurar a ocasião: apeada em Katowice como correspondente do Daily Telegraph, uma rapariga de quase vinte oito anos cumpria os primeiros dias da tarimba jornalística. O Verão de 1939 não iria durar. Hospedada pelo cônsul britânico, seu patrício, a dita rapariga haveria de ganhar à-vontade suficiente para pedir um dos automóveis do serviço diplomático (dos poucos que ainda tinham direito de  passagem entre a fronteira germano-polaca) para uma caça à notícia e avio de víveres. Do lado de lá traria velas, vinho, muitos rolos para a máquina e aquele que estava destinado a ser o primeiro dos 'furos' da sua vida: o avistamento de um aparato militar massivo no sentido polaco, sinal claro de uma manobra de invasão em curso. De volta a Katowice, conseguiria horas depois linha para a embaixada em Varsóvia de maneira a reportar o que vira. Sabemos hoje que começou por não ser levada a sério: ninguém - nenhuma autoridade militar ou diplomática - tinha ainda relatado tal iminência. Mas o tempo tinha passado, por isso Clare percebeu que restava esticar a corda, ou melhor, o fio do telefone até à janela - a ocupação já estava a acontecer. Em menos de quarenta e oito horas o Reino Unido e a França entrariam no conflito. O resto é História.

Ms. Hollingworth saiu ilesa desse e vários outros palcos de guerra, continuando a trabalhar até muito recentemente; reformou-se lá pelos oitenta, e só porque os olhos lhe começaram a falhar. E qualquer perfil biográfico é pródigo em mostrar o quanto fez após aquele primeiro scoop. Cem vezes parabéns, Clare Hollingworth.