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Delito de Opinião

Cecília

José Meireles Graça, 06.11.21

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Veio direita a mim, num passo decidido, e disse, o indicador professoral espetado no ar: Ó senhor dono papá, já lhe disseram que é um fogueirinhas? Após o que girou nos calcanhares, retirando-se com dignidade.

Na tarde ensolarada, junto ao tanque, ardiam detritos que carreara para o sítio onde, então como agora, quase quarenta anos mais tarde, os queimava. E fiquei meditabundo: tenho uma filha com quatro anos que me dá aulas? E dono o que é? – ah, já sei, é o masculino de dona.

Papá, como era no tempo da Revolução? A mamã diz que tiveste uns problemas. Mas estavas no PS, não estavas? Conta.

Contei, não sem inquirir de onde vinha o súbito interesse. Andava a ler umas coisas, disse, e pasmei: com treze anos a miúda lia muito e à bicicleta encostada ligava pouco, mas ler jornais que despertavam a curiosidade de ir escabichar o passado era, para mim, motivo de alguma perplexidade. O meu pai, morto então já há trinta anos, tinha o hábito, quando se zangava, de fazer algumas referências pouco lisonjeiras à minha costela de leitor ávido (o qual para os afazeres domésticos contribuía com zero), mas estava-me a começar a parecer que os genes, na transferência de mim para ela, tinham levado um polimento.

Aos 17: A tua filha gostava de ir assistir a uma conferência em Lisboa, na segunda-feira. Parece que é com Paulo Portas. O quê, a Lisboa, Paulo Portas? Diz-lhe que a levo.

(Esta agora, aqui vou eu em direcção a um Forum Picoas que não sei onde fica, assistir a uma conferência. O homem tem interesse, mas francamente.)

Foi sempre a melhor aluna até à Faculdade mas uma vez, zás, aconteceu uma desgraça: tirou uma nota menos boa e o desgosto envolto em lágrimas afligiu sobremaneira Aníbal, o cão familiar, que a cobriu de lambidelas. Inteirado do sucesso, devo ter dito qualquer coisa pouco simpática: aluno medíocre, adepto de atitudes estóicas, sobranceiro em relação a professores metidos a besta (e até aos outros) e com tolerância a sensibilidades femininas em quantidade diminuta, o episódio pareceu-me anómalo.

Na Universidade, em Coimbra, fui sabendo que se enfarinhara no CDS e que, por ocasião de frequências e exames, ficava em estado de ansiedade, invariavelmente injustificada porque nunca chumbou. Sempre ministrei conselhos inabituais, que incluíam a recomendação de frequentar discotecas, ligar menos importância a classificações, eventualmente admitir um chumbo como forma de consolidar conhecimentos, e outros em matéria de comportamento adequado para uma jovem, que não vou explicar. Acho que as amigas de alguma coisa estariam ao corrente, porque pelo menos uma confessou que eu era o pai que lhe conviria, mas pode ser que esteja enganado. De toda a maneira, já então sabia de ciência certa que os únicos conselhos que aceitaria, de mim ou qualquer outra pessoa, seria os que passassem o crivo do seu próprio critério. De modo que era mais pai e filha a falarem.

Acabado o curso, o estágio e o exame da Ordem, sugeri em determinada altura que fizesse um MBA. Fez, provavelmente porque já tinha essa intenção, e gostou – de gestão, de contabilidade, de finanças, porque a parte do cérebro alocada às humanidades e à juridicidade não inibia a intuição para a matemática e a economia.

O mais foi a carreira em lugares políticos, uma vocação, um vício e uma obsessão. E fui progressivamente pasmando: de cultivo interesseiro de relações com jornalistas e angústias com a imagem nada, de estudo, preparação e discrição muito; de calculismos apenas os legítimos, e temperados com fidelidades e amizades sólidas; escolha de políticas fundada em reflexão e conhecimento; discurso sereno, sem ademanes histriónicos mas com oratória inspirada nas ocasiões em que isso se requer; e brilho discreto sempre, o natural de quem nasceu sobredotado.

Abandonou ontem a carreira, acossada por gente que lhe deveria segurar o andor. E eu abandono a discrição que sempre me impus, a benefício dela por não lhe acrescentar nada o saber-se ser filha de quem é, para fazer votos, como cidadão, de que possa regressar quando os miasmas, que empestam o ar, se dissiparem.

Como pai, é claro que, na política ou fora dela, o que desejo é que reencontre a serenidade que merece.