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Delito de Opinião

Não precisa

Legislativas 2024 (15)

Pedro Correia, 02.03.24

CDS

José Meireles Graça, 27.10.22

Na IL conto não poucos amigos por proximidade ideológica, e destes alguns também pessoais. A Carlos Guimarães Pinto junto admiração porque cansou-se de, anos a fio, tecer considerações em blogues e redes sociais, tendo dado o salto (aliás com brilhantismo) para a política partidária, passo certamente mais difícil do que prosseguir uma carreira profissional que a actividade política não é ou, quando seja e não havendo corrupção, inçada de inconvenientes.

Quem vai para a política partidária abdica de uma parte da sua liberdade: os partidos são máquinas de conquista e manutenção de poder e isso não é compatível com dizer-se o tempo todo o que realmente se pensa porque se podem afastar uns eleitores sem cativar outros, criar fracturas irremediáveis dentro do próprio partido, ferir estratégias de alianças, e ainda porque com frequência se mostra necessário ceder e recuar no acessório para preservar o essencial.

Se o partido for um de poder (e que lá esteja ou pareça vir a estar) tem lugares para distribuir e isso coloca uma surdina na dissenção. Se não for, ela vem de divergências doutrinárias, que umas vezes agravam e outras simplesmente recobrem ambições de protagonismo, mais virulento se houver disputa de lugares elegíveis, por exemplo de deputado. E como raras são as pessoas, e por maioria de razão os políticos, que sejam tão boas como se julgam, fica aberta a porta a umas guerrilhas invariavelmente ácidas, e invariavelmente enjoativas.

É isso que se está a passar na IL, com contornos que ignoro (por exemplo, que diabo leva o líder a afastar-se, conservando todavia o seu lugar no Parlamento, o que é que realmente separa os candidatos a substituí-lo, e por que razão CGP não é candidato), e é um filme já visto in illo tempore no CDS.

In illo tempore, digo: Entre liberais e conservadores, ultramontanos e wokes, europeístas fanáticos e nacionalistas passadistas, sem esquecer detentores da marca registada da verdadeira democracia cristã, nunca houve falta de motivos para manobras e facadas. Faz parte e é por vezes espectáculo divertido ver egos insuflados, Mirabeaux de aldeia, ideólogos de mesa-de-café, oportunistas sortidos e aparelhistas incidentalmente com notórias dificuldades no domínio da gramática e do senso.

Ninguém acha que com esta convulsão a IL tem alguma coisa a ganhar, mas ela tem o selo da inevitabilidade: os partidos na orla do poder são lugares intranquilos. E de dissensões ideológicas é bom nem falar, que liberalismos há alguns, completos com o breviário de receituários diferentes e todos servidos de gurus citáveis, sendo que ficam de fora questões que não são predominantemente de ordem económica, onde a margem para divergências é ainda maior.

A IL pescou, pela sua natureza, sobretudo no CDS e no PSD, além de na abstenção (por ser novidade); e o outro partido de direita, o Chega!, recrutou no mesmo campo, além de no dos indignados virtuosos e sumários – quando houver dissensões sérias serão furibundas, que por lá doutrina e consistência não há muita mas a agressividade sobra.

Em suma: seria possível imaginar um país, que não é o nosso, em que o espectro partidário fosse do Chega! até ao PSD, as várias declinações de marxismos clássicos (como o PCP) ou reciclados em bandeiras de causas progressistas (como o BE), ou ainda o mastodonte do conúbio com o capitalismo dirigido (como o PS e, em parte, o próprio PSD) reduzidos à condição de seitas. O que temos, porém, é um país solidamente ancorado à esquerda, o que aliás explica que, não obstante a chuva de milhões sem precedente histórico salvo talvez o ouro do Brasil, o país esteja teimosamente na cauda do desenvolvimento – de onde os novos partidos o querem tirar, em particular a IL, que tem para esse efeito um programa mais consistente, que todavia retoma escopos já defendidos há muito e que frequentemente imagina inovadores.

Julgaram que fazer melhor do que o velho CDS era não apenas possível mas relativamente fácil e um partido novo, por o ser, ficava ao abrigo das vicissitudes que, aqui e em toda a parte, regem as vidas dos partidos.

A experiência está a mostrar que não é assim. Donde, a alegada morte do CDS talvez tenha sido uma declaração precipitada. Felicito-me por não andar a correr atrás das gajas novas no povoado e me conservar fiel a amores velhos – a experiência sobreleva-se bem a alguns atavios.

Momento Marcelo

Sérgio de Almeida Correia, 15.10.22

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Os helicópteros Kamov são há muito uma fonte de preocupações, de problemas e de despesas para os contribuintes portugueses. Que me lembre, desde 2006 que os ditos são notícia. Da falta de licenças à falta de peças, da ausência de manutenção à dificuldade de encontrar mecânicos e à falta de certificação, tem sido todo um folhetim. Os partidos da oposição, designadamente o PSD, têm questionado o Governo sobre os helicópteros, apesar de um deles estar inoperacional desde 2012, quando estava no poder com o CDS-PP.

Eu confesso que de cada vez que ouvia falar neles era porque havia problemas. Mas eis que surge a "oportunidade" de nos "livrarmos" dos aparelhos e dar-lhes alguma utilidade, colocando-os ao serviço das forças ucranianas que combatem o invasor russo.

A ministra da Defesa esclareceu que o Estado português, que os tem inoperacionais e não tem meios para os colocar a voar, que é para o que servem, iria doá-los à Ucrânia. Já o tinha dito em Bruxelas, reafirmou-o na terça-feira passada na comissão parlamentar de Defesa. A imprensa noticiou-o

Hoje, ao ler no Público as declarações de João Almeida, um antigo secretário de Estado da Administração Interna, fiquei sem perceber se ele desejava que os helicópteros cá continuassem. Das suas palavras depreendo que ficou zangado, no mínimo agastado, e que não queria que as aeronaves tivessem sido ofertadas à Ucrânia.

Desconheço quais sejam as qualificações de João Almeida, ou se conversou com algum major-general comentador da CNN, para dizer que mesmo que as aeronaves estivessem aptas para operar "não são adequadas às necessidades existentes"; que "não se percebe que utilidade poderão ter num cenário de guerra como o que existe na Ucrânia", e que "só se pode considerar o negócio como ruinoso". De igual modo, também não sei se da Ucrânia lhe disseram não haver peças nem mecânicos para aqueles helicópteros, pelo que fiquei com muitas dúvidas, e ainda mais questões, depois de ler a sua entrevista. 

Que o antigo governante do CDS-PP sabe de quase tudo, como aliás quase todos os antigos governantes, é normal. Os portugueses já tinham notícia e disso não tenho dúvidas.

Das questões da energia às finanças públicas, do ambiente ao poder local, sem esquecer o ordenamento do território, a educação, a ciência, a cultura, o trabalho, os assuntos sociais, a ética, a banca, a juventude, e, imagine-se, até o futebol e a arbitragem, que é coisa de quase ninguém fala em Portugal, sobre tudo isso João Almeida tem perorado. Sempre com o mesmo à-vontade, note-se.

Mas posto que na entrevista não esclareceu, pergunto se João Almeida preferia que os helicópteros continuassem em Portugal? Será que está convencido de que ninguém do governo português perguntou aos ucranianos se aceitariam os helicópteros? E que da Ucrânia disseram que não os queriam, por estarem obsoletos, e ainda assim Portugal decidiu enviá-los? Queria João Almeida que continuássemos a suportar os custos da sua guarda e manutenção? Vendê-los num leilão? Colocá-los em exposição no Estádio do Restelo?

Não sei qual destas últimas alternativas seria a mais conveniente para o Estado português, embora tivesse lido que o Estado espanhol ainda agora ofereceu à Ucrânia quatro sistemas de defesa anti-aérea de um tempo em que João Almeida ainda não era nascido. Detalhes. Que as forças russas utilizam helicópteros desse fabricante também é verdade, presumindo, que do assunto nada percebo, que sejam mais recentes e que os ucranianos terão meios para os fazerem voltar aos céus. 

No lugar do entrevistado, tendo sido membro de um governo da República (não conto o segundo porque só esteve onze dias em funções por circunstâncias supervenientes, não previstas nem previsíveis) que não resolveu os problemas dos Kamov, usaria de alguma contenção ao falar, já nem digo das outras coisas em que é uma sumidade, mas, pelo menos, de helicópteros. 

Espero que ele não me leve a mal; só de que uma pessoa com o seu currículo, que ainda hoje não sabe como perdeu as eleições no CDS-PP para o tal "Chicão", ninguém espera que venha nesta altura falar de helicópteros, de "cromos para a troca" do Mundial de Futebol ou de pistas de comboios a vapor.

Não lhe fica bem — nem a ele nem a ninguém — seguir os exemplos que nos chegam do Palácio de Belém de cada vez que ali se tem notícia de que vai um microfone a descer, sabe-se lá como, a Calçada da Ajuda. Chega de alvoroço.

CDS

José Meireles Graça, 16.07.22

Em Aveiro estava um tempo ameno e na esplanada de um snack, aí pelas 4 da tarde, senti por momentos um friozinho abençoado. Vinha esfomeado e satisfeito: receava um Congresso despido de pessoas, afastadas desconsoladamente pela concorrência de novos circos que estão na cidade da política, pelos maus resultados eleitorais e pela natureza burocrática dos assuntos que lá juntaram os congressistas. Tratava-se de alterar os estatutos num sentido que nem todos entenderam, incluindo-me. Por preguiça, não me dei ao trabalho de ler os textos – o líder queria alterações, e eu entendo que deve ter todos os meios que lhe possam ser dados pelos militantes para levar a sua cedeessística tarefa a bom porto.

Assim o entendeu também a sala, esmagadoramente.

Houve discursos muitos, bastantes chatos (faz parte), alguns veiculando pontos de vista, para dizer o mínimo, discutíveis (também faz parte), e os trabalhos foram conduzidos com decência e isenção, sem faltar o tradicional derrapar no cumprimento de horários – o CDS é um partido de tradições e nem todas são boas.

Partido moribundo? Algumas figuras gradas falaram no encerramento, percebendo-se que as posições de destaque que já tiveram não lhes caíram no colo por sorteio da farinha Amparo.

De modo que o doente parece que está no início da sua recuperação. Longa será, mas é como diz o povo: o que não nos mata engorda. E o CDS, que nunca foi obeso, parece que vai agora voltar a ganhar o peso que já foi seu.

A causa é justa

José Meireles Graça, 04.04.22

 

Confesso: houve muitos discursos no Congresso do CDS, no qual estive como convidado, que não ouvi.

Não por sobranceria: para muito militante é a oportunidade de se dirigirem aos seus camaradas (não gosto de “colegas”, que é paleio de putas, digo-o sem desprezo nem por elas nem pela profissão, nem de “companheiros”, que é coisa de sociais-democratas, t’arrenego) e significar que o partido devia fazer assim e assado, e o país deveria ir por aqui e por ali, e tudo isso em poucos minutos. Tanto pior se isto atira a duração pela noite dentro – a alternativa dos discursos alinhados e a coreografia severamente controlada não tem lugar no CDS e ainda bem.

Ouviria mais se se pudesse fumar lá dentro e as cadeiras não fizessem doer o rabo, mas sem ir ao extremo de me coibir de vir arejar – cá fora, ocasionalmente, encontro um ou outro amigo que aprecia, como eu, uma boa desconversa, e lá dentro a maior parte dos discursos são, fatalmente, chatos, faz parte.

À chegada, os convidados pagavam 20 Euros (os congressistas mais) e achei muito bem: se o partido está falido e já não tem subvenções públicas, só quem com ele simpatiza o pode aguentar. Incidentalmente, um congressista insurgiu-se contra a punção (portuguesmente: somos completamente a favor de sacrifícios desde que sejam outros a fazê-los), mas pouca gente aplaudiu.

Coisa curiosa e, creio, inovadora: um grande pavilhão cheio de gente que não tem, pela sua esmagadora maioria, esperança de conquistar ou manter lugares, e que paga para estar ali a defender, ou contribuir para a defesa, de uma certa ideia de país.

O CDS é o CDS e as suas três famílias apareceram, veementes, a liberal muito mal representada por vários dos seus corifeus ou terem abandonado o partido ou se terem posto à margem.

O discurso do líder cessante foi lamentável, por não ter resistido a um acertar de contas: por muitas razões de queixa que tenha da oposição interna – e mais surda ou menos surda nunca ela cessou de existir no partido – e difíceis as circunstâncias objectivas em que começou e viveu o seu mandato, sair com elegância implicava reconhecer esta verdade simples: perdeu nas urnas e explicar a derrota como uma consequência da oposição interna é o mesmo que dizer que o eleitor, porque é burro, não levou isso em conta. Francisco Rodrigues dos Santos, que teve assinaláveis méritos (recordo o surpreendente desempenho num frente-a-frente com Ventura, por exemplo), nunca deu sinais de perceber o eleitorado do CDS, que sempre julgou ser apenas o que cabe nos limites estreitos de uma democracia-cristã muito feita de proclamações, e muito centrada em questões sociais fracturantes. Nem, num momento crucial da vida do partido, entendeu que recorrer a pretextos jesuítico-jurídicos para se eximir a ir a votos só podia cair mal nos militantes e na opinião pública. É curto. Ademais, no campeonato das indignações sortidas, a fazer as vezes de um estudo cuidado de soluções a apresentar, o espaço já estava razoavelmente preenchido pelo condottiere Ventura.

Outros dirigentes apareceram, carregando na mesma tecla: ai que se os derrotados do Congresso de Aveiro se tivessem mantido calados o resultado eleitoral teria sido outro. E Cristas (a mesma que teve um resultado notável em Lisboa, in illo tempore, e que tirava, nos debates no Parlamento, Costa do sério), e até Portas, também chegaram a levar pela medida grande, este último porque parece que tem influência, e não a deveria ter. A compreensão do problema que representam o Chega! e a IL, ambos pescando no mesmo eleitorado que dantes era, em parte, cativo, foi pouco aflorada.

Este poder deposto vai agora renascer como oposição interna. E está muito bem assim, que isso faz parte da tradição do partido. Espera-se que Nuno Melo, se não conseguir levar água ao seu moinho, não sirva, na hora da despedida, o discurso da vitimização, nem se preocupe excessivamente com o que dizem ou deixam de dizer os defensores da linha justa. Estes tendem a achar que o CDS ideal é o que coincide com as suas ideias, nunca se dando conta que partidos bacteriologicamente puros há dois: o MRPP, que existe como curiosidade, e o PCP que, curiosamente, ainda existe.

Num excelente (como peça de oratória) discurso, Manuel Monteiro repescou os seus cavalos de batalha nacionalista e eurocéptico, a par de um programa económico que incluía coisas discutíveis como a recuperação do aeroporto de Beja, tudo envolto num dedo em riste algo prometeico. O Congresso aplaudiu, entusiástico: a qualidade do discurso, a figura que faz parte da história do partido que serviu e o apoio, algo contrafeito, a Nuno Melo. Eu também: receber condignamente um ex-dirigente é uma obrigação, a boa-fé e integridade da personagem inegável, e do bloco de ideias fixas alguma coisa compro.

Paulo Portas apareceu, de manhã, a horas em que eu ainda meditava no quente. E não deve ter sido pequeno sacrifício vir de Lisboa e regressar no mesmo dia, porque à noite tinha o seu programa habitual na TV. Deve ter achado que devia dar o seu contributo para que não lhe escaqueirassem de vez a herança, e deu.

Nuno Melo tem pela frente uma dificílima tarefa: os liberais dos quatro costados têm a IL, os indignados da democracia e que querem meter todos os parasitas, todos os corruptos, todos os maus condutores, e infiéis aos seus cônjuges, e drogados, e criminosos, na cadeia, o Chega!, de modo que as sobras ficam para o CDS. A gente que julga que o país se pode governar pela encíclica Rerum Novarum não é suficiente, e nada garante que o PSD de Rio, que é um socialista de boas contas, e que por isso afastou o eleitorado que preferiu o original ao sucedâneo, não venha a evoluir para a direita.

Porém. Porém. O sucesso da IL e o do Chega! são, a prazo, o seu insucesso, porque o tempo mostrará que ambos são partidos fatalmente sujeitos às mesmas vicissitudes dos outros, desaparecendo o encanto da novidade; e o PSD clássico, isto é, o albergue espanhol que está na sua natureza, nunca foi incompatível com a existência do CDS. Finalmente, a tribalização do espaço político à direita não é por si incompatível com o sucesso eleitoral e governativo. De modo que o CDS, a senhora madura que já passou por muitos assados, talvez tenha duas ou três coisas a ensinar a essas jovenzinhas cheias de tesão e com uma forte corrente de ar entre as orelhas. Veremos.

Amanhã refilio-me. Desconfio que a quota não será a miséria que era dantes, porque os tempos são outros. Mas a causa é justa.

Fé na ressurreição de um partido quase extinto

Nuno Melo

Pedro Correia, 21.02.22

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A cena teve uma triste simbologia, demonstrando aos incautos que também os partidos políticos podem morrer: bastaram poucos segundos para desaparafusar a placa que identificava o espaço reservado ao Centro Democrático Social na Assembleia da República. Uma força partidária que chegou a eleger 42 deputados, nas legislativas de 1976, e teve como líderes Diogo Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires e Adriano Moreira nos 15 anos iniciais parece hoje condenada ao eclipse total. Até o PAN e o Livre, etiquetas passageiras sem qualquer implantação no país, ultrapassaram o histórico CDS nas recentes legislativas. É um sinal dos tempos – em consequência da acumulação de erros primários numa agremiação que andou em busca da pureza identitária, fracturada por ódios tribais, característicos das claques de futebol.

Apesar de tudo, ainda lhe restarão hipóteses de sobrevivência? Nada mais natural que um partido de inspiração católica alimente a fé na ressurreição. Por agora, na vetusta sede do Largo Adelino Amaro da Costa – baptizado em homenagem ao malogrado co-fundador do CDS, um dos mais brilhantes oradores da história parlamentar portuguesa – os dias são de Quaresma antecipada. Com mortificação da carne e expiação dos pecados. Mas já um profeta se recorta no horizonte: João Nuno Lacerda Teixeira de Melo, 55 anos, advogado de profissão e político por paixão, há quase três décadas associado ao partido em que se inscreveu na idade adulta, sem cumprir qualquer peregrinação prévia pelas estruturas juvenis.

Ele anuncia que o CDS renascerá das cinzas, esperando ainda mobilizar uma militância quase extinta. Vai formalizar a candidatura à presidência neste sábado, fazendo-o com dupla legitimidade. Porque é o último deputado democrata-cristão que resta – não em São Bento, mas no Parlamento Europeu, onde tem assento desde 2009. E porque já manifestara essa intenção em Outubro, quando desafiou Francisco Rodrigues dos Santos a convocar de imediato um congresso electivo em que ambos seriam submetidos ao escrutínio das bases, anterior à corrida eleitoral no país. Desafio que lhe foi negado, com as consequências que sabemos.

Nuno Melo, minhoto nascido por acaso no Porto, diz-se «um combatente da direita moderada que luta pelas suas ideias» e não esconde que Paulo Portas é a sua «grande referência política em Portugal». Podia ter sido ele o sucessor de Portas, em 2016, mas optou por apoiar Assunção Cristas sem se envolver nas minudências políticas em Lisboa. Avança agora, no pior momento. Parte com um bom lema: «O CDS faz falta a Portugal.» E revela um desígnio louvável: chegou o «tempo de reconstruir.»

É fácil prever que será eleito por quem se dignar comparecer no congresso. Mais difícil é vaticinar-lhe sucesso nesta missão de nadador-salvador já tão fora de pé e tão longe da praia. Certamente leitor de Maquiavel, o eurodeputado não ignora este aforismo do mestre florentino: «A natureza criou-nos com a faculdade de tudo desejar e a impotência de tudo obter.»

 

Texto publicado no semanário Novo

CDS*

José Meireles Graça, 11.02.22

Anda por aí um quadro, que não conferi, que evidencia a quantidade impressionante de votos deitados a afogar por não terem servido para eleger qualquer deputado.

Mais: a concentração de votos em Lisboa permitiu que dois partidos, o Livre e o PAN, tivessem elegido, cada um, um deputado (no caso duas nulidades, uma palavrosa e outra nem isso, mas não é esse o ponto) quando o CDS, que não elegeu nenhum, ultrapassou um deles com 33.000 e o outro com 20.000 votos.

Ai que isto desequilibra o país a favor de Lisboa e Porto, desanima o eleitorado dos distritos em que o reduzido número de eleitos potenciais faz com que os pequenos partidos não elejam ninguém (e os votos respectivos não sirvam para nada) e favorece o voto útil, que é por definição a segunda escolha, falseando portanto a vontade do eleitorado.

Tudo verdade. Daí que nos vários projectos de revisão das leis eleitorais se contemple a solução para este problema (e outros, como o dos eleitos que dependem do líder que os escolheu e não dos eleitores, que não os conhecem), seja por um único círculo para todo o país (ao menos o continente), seja por um círculo extra que recupere os votos perdidos somando-os aos de cada partido e restaurando a verdadeira hierarquia partidária e a sua representação no Parlamento. Isto ou outras engenhosas combinações tributárias do “modelo” alemão, do britânico ou do da Cochinchina.

Céptico militante, e conservador (mais exactamente reacionário) por natureza, lembro que não há sistemas perfeitos; que naqueles países que têm a democracia no código genético (e que por isso nunca tiveram ditaduras), como os EUA ou o Reino Unido, os sistemas locais riem-se para a representatividade a tal ponto que normalmente há apenas dois ou três partidos, ajeitando-se as franjas extremistas dentro deles, em geral impotentes; e que a Constituição diz (e bem, na minha opinião) que os deputados representam o país e não a região pela qual foram eleitos, o que casaria mal com sistemas locais de winner takes all, para não falar da porta aberta ao tráfico de influências, num país em que ela faz parte dos costumes.

O que o legislador abrilino quis facilitar foi a constituição de governos, escarmentado pela lembrança da balbúrdia da I República. E é isso que explica a distorção que o método de Hondt (consagrado legalmente, creio, apenas para o continente) implica, mormente se aplicado distrito a distrito e não no todo nacional.

De resto, rever as leis eleitorais só é possível com uma maioria de 2/3, o que quer dizer que, em princípio, o reforço da proporcionalidade só terá lugar se os beneficiários do sistema actual não forem excessivamente prejudicados. De modo que me lembrei de imaginar como teria ficado a Assembleia da República se, por exemplo, existisse apenas um círculo nacional, com os resultados de 30 de Janeiro passado, mas com o mesmo método. Para o efeito, arranjei na internet um simulador em Excel (acho que da Porto Editora), excluí das contas votos brancos e nulos, considerei 226 deputados e não 230 (faltam os eleitos pela diáspora) e, quanto à imputação de mandatos nas coligações nos Açores e Madeira, fiz uma repartição 80/20. Ficaria assim:

PS 98

PSD 68

Chega 16

IL 11

BE 10

PCP 10

CDS 4

PAN 3

Livre 3

Outros 3

O PS não teria a maioria absoluta, nem a conseguiria apenas com o BE, ou o PCP, nem muito menos com o PAN ou o Livre; e continuaria a haver uma maioria de esquerda, não de 130 contra 96 mas de 127 contra 99.

É provável que o nível de griteiro na Assembleia da República crescesse, e crescesse também o cambalacho para assegurar o apoio ao governo em troca de legislação para contentar as idiossincrasias dos pequenos partidos. Mal por mal, peço licença para achar que não ficamos pior: o PS dará fatalmente com os burros na água, seja sob a forma de falência seja sob a forma de estagnação; e parece evidente que pensar em revisões eleitorais só se for para retoques (como, por exemplo, eliminar o dia de reflexão, tal como pretende Marcelo – este tem sempre um sentido infalível para ligar importância a questões adjectivas, das substantivas nem cogita).

É assim que estamos. O método de Hondt tem os seus óbvios defeitos mas há um expediente para lhe limitar as distorções, e esse é o mecanismo das coligações pré-eleitorais. Sucede que, do lado esquerdo do espectro, coligações não vai haver: o PS faz parte do arco democrático, o PCP não, o Bloco tem dias, e as demências sortidas mais à esquerda podem servir para governar, mas apenas acampamentos de manifestantes.

Coligação ao centro, em si mesma a negação da alternância, mesmo com este PSD, nunca esteve no horizonte – só a pós-eleitoral; e imaginar que a direita desunida chega ao poder é razoável, mas não no sentido de supor que o PSD (um novo PSD, sem rioísmos), sozinho, o consiga.

É cedo para pensar em arranjos, o PS tem um futuro próximo risonho a torrar fundos europeus em fantasias e elefantes brancos, a reforçar a colonização do aparelho de Estado e a fazer reformas de faz-de-conta. Mas não é cedo para concluir que um futuro governo de direita ou será de coligação ou não será.

A direita fraccionou-se identitariamente: indignados para um lado, liberais para outro, social-democratas que vão muito à missa para um terceiro e gente que não sabe bem o que quer, mas sabe que esquerda nem mo-lo digas, no PSD são, que é o que vai renascer. E, ao fraccionar-se identitariamente, enfraqueceu.

Sucede que havia um partido que era tão pouco identitário que foi arrombado no transe de dar à luz outros dois, que não se podem ver. E, não contente com isso, entrou alegremente no campeonato do purismo: a direita fofa não nos convém, nós detemos a marca registada da democracia cristã, do personalismo e outras coisas respeitáveis e vetustas, e damo-nos ao luxo de ser agressivos em relação a quem não pertence à linha justa.

No campeonato do chega-pra-lá eleitoral a linha foi reduzida ao seu tamanho, e com ela o partido. Contraditoriamente, porque este era historicamente o que continha em si uma coligação permanente de diferenças. Mas como as coligações são o futuro: manda a lógica que não se decrete que o partido em questão morreu porque já não tem espaço.

Tem: há quem não queira importar o código penal americano, nem ache que a nação é um conceito obsoleto, nem entenda que o país é uma tabula rasa na qual se vão escrever os princípios da gestão de Singapura, nem acredite que copiando a legislação da Dinamarca ficamos todos louros. A direita céptica cabe lá toda, como a confessional (que gosta de fingir que o não é) e a desencantada com as trombetas dos novos partidos, que com o devido tempo terão os mesmos vícios dos velhos.

Esse partido é o CDS: sem deputados, sem ânimo e falido – o seu único capital é o das desavenças cediças, inúteis porque o catolicismo de que muitos se reclamam não é tão forte que os leve a rezar um acto de contrição, e a outros a uma atitude de perdão.

O que quer dizer que, desde que exista um tipo com vontade de atravessar o deserto, apoiá-lo é coisa de que nenhum mal virá, e talvez venha algum bem.

Em Dezembro de 2020 resolvi poupar o insignificante estipêndio que o partido custava e, farto de tolices, bazei, o que mereceu o inexistente eco que a minha inimportância justifica. Com o mesmo à-vontade regresso, logo a seguir ao Congresso, para o efeito de pagar quotas.

Quixotismo? Será. Cinismo é do que não se precisa.

 

* Publicado no Observador

Acordo ortográfico e partidos políticos

Pedro Correia, 24.01.22

Li os programas eleitorais de quase todos os partidos. Em busca de alguns temas. Um deles é o acordo ortográfico.

Só no do CDS encontrei aquilo que gostaria de ler em vários outros: «Reverter o Acordo Ortográfico de 1990.» Consta das medidas previstas no compromisso eleitoral deste partido, nas áreas referentes a cultura e património. Escrito, aliás, na ortografia pré-acordística. Tal como o compromisso eleitoral da CDU. Que no entanto é omisso nesta matéria, pelo que percebi.

O PSD faz alusão ao assunto no ponto 9 do seu programa para as legislativas, na epígrafe "Cultura e conhecimento: uma ambição renovada". Inscrevendo isto: «A tentativa da uniformização ortográfica não constituiu qualquer vantagem face ao mundo globalizado, pelo que o PSD defende a avaliação do real impacto do novo Acordo Ortográfico.»

Parece-me muito bem. Mas vertem o programa em acordês: 165 páginas nesta insuportável grafia que admitem rever. 

E é só. Nada encontrei nos restantes, entre linhas e linhas e linhas de prosa quilométrica. Por vezes tão mal redigida que dá vontade de devolver os seus escribas ao ensino básico.

Santos vs Ventura

jpt, 13.01.22

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(Postal para o meu mural de Facebook)

Nesta madrugada li imensas referências ao debate entre o dr. Santos e o prof. Ventura, e muito elogiosas do presidente do CDS. Elogios esses plantados por gente de centro e direita, mas também por gente de esquerda, até personalidades públicas. Todos saudando não só a veemência aposta pelo dr. Rodrigues dos Santos como a cristalina distinção que fez entre uma direita democrática, comungando os "valores civilizacionais democráticos" e uma extrema-direita populista (e fascizante, também se diz), encabeçada pelo prof. Ventura - esse epifenómeno passageiro, como tanto insisto desde que o partido do prof. Rui Tavares, com o conúbio da "imprensa de referência" que lhe é tão simpática bem como ao PS, se quis através dele alavancar aventando escatologias. Tanto assim foi que, ainda enremelado, fui ver a gravação. Do debate ou, melhor dizendo, do embate retirei duas conclusões, uma abrangente e outra eventual: 

1 - Da questão abrangente: li imensas loas de gente de esquerda à democraticidade explicitada pelo presidente do CDS, que a reclamou ancorada no meio século de história do partido - e sabendo-se este como o tradicional partido da direita portuguesa (apesar do seu nome, marcado pelo ambiente ideológico nacional aquando da sua fundação). Dado esse coro de elogios será então de esperar que acabem as patacoadas que tantos botam regularmente (então nos aniversários do 25 de Abril torna-se um "meme") sobre o salazarenta direita, os fascistas do CDS e do PSD, enfim, que finde a constante invectiva demonizadora sobre aqueles (partidos e cidadãos) que não partilham nem ideário nem "imaginário" (como esteve na moda dizer) marxista ou "pós-marxista" (como é agora uso corrente). Que tenham aqueles que usam como escalfeta moral uma "identidade" de esquerda (por mais reaccionários clientelares que, de facto, sejam no exercício de cidadania e na luta pelo leite das respectivas crianças) consciência de que é uma estupidez execrável chamar "fascista" a Passos Coelho, Paulo Portas (ou Merkel, Bento XVI ou aos Borbón), como tanto gostam, e estar agora a saudar o tal "cristalino" apartar que Rodrigues dos Santos fez entre democraticidade doutrinária e a sua ausência. E julgo que alguns dos meus amigos-reais percebem que é deles que me estou a lembrar ("este Zezé está um chato do caraças, envelheceu mal, que o viu e quem o vê..."; "o Zé Teixeira é um ressabiado", "o José Teixeira é um.... fascista", já ouço). 

E para que não se pense que falo do passado, mesmo que recente, recordo que o socialista Ascenso Simões - a quem os académicos de vários centros de investigação e múltiplos intelectuais "decoloniais" tanto apreciarão dadas as suas propostas de teor urbanístico - acabou de fazer uma correlação cultural e moral entre as SS (nazis, para quem se esqueça) e Rui Rio. E é num partido que valoriza esta gentalha que eles se revêm (pelo menos como "facilitador" de subsídios). 

2 - Do eventual (événementiel, para ficar mais elegante): após o elogiado embate Ventura-Santos foi proclamado o KO técnico em favor do aguerrido lutador Santos. Enfim, cada cabeça sua sentença... É certo que Santos esteve bem, ao demarcar-se de codicioso Ventura, mantendo-se assim à distância dos seus lestos "punches". E mandou algumas "bocas" vigorosas, sonantes, tendo até havido "contagens de protecção" após dois ou três dos seus "cruzados" verbais (ficou-me na retina a sua excelente combinação do "desfile de cavalaria"). E, em especial, um impactante "gancho" (a alusão ao atrapalhado capitalista Vieira, de quem o prof. Ventura é, consabidamente, uma criatura), seguido de um poderoso "directo", na alusão à pantomina do catolicismo venturiano, que deixou o oponente encostado às cordas, atordoado e defendendo-se com frustres "jabs" sobre a vida interna do CDS enquanto gritava "maricón" ao adversário, tentando desconcentrá-lo enfurecendo-o. 

De facto Ventura surgiu com alguma petulância, típica do incumbente campeão desta categoria de pesos-leves, subvalorizando o jovem candidato, dono de um menor currículo pois no dealbar de uma carreira, e bastante preterido nas casas de apostas. Ainda assim algo se recompôs, readquiriu algum ritmo. E impôs um "directo", na alusão à participação sportinguista de Santos. Este, que seguia embalado no seu cadinho de golpes, coisa da sua inexperiência juvenil, foi ao tapete - acontecendo "contagem de protecção" -, e devido a golpe que teria sido de fácil defesa, do qual nem se protegeu nem foi assim capaz de ripostar (pois ao contrário do problemático "embrulho" Vieira, sobre a actual presidência de Varandas nada consta de ilegal, apenas uma saudável e louvável participação associativa numa instituição de utilidade pública). E, finalmente, Ventura aplicou, com mestria, um poderoso "uppercut" do qual Santos foi "salvo pelo gongo" no último assalto, naquela questão irrespondida sobre a proposta do CDS relativa à interdição dos responsáveis políticos transitarem para empresas das áreas que tutelaram (o CHEGA propõe um tonitruante impedimento perpétuo, que chama a atenção popular, o CDS uma sabática de dois anos, que ganha simpatia entre "quadros"). 

Mas dado que o combate foi decidido a pontos há que ter em consideração as penalizações. Pois Santos utilizou "golpes baixos" (abaixo da linha de cintura). Isso ao acusar Ventura de estar envolvido em casos de corrupção (tendo ilustrado com uma condenação por declarações, o que é outra coisa), o que é factualmente incorrecto. Será importante para todos aqueles agora laudatórios de centro e de direita, que enchem a boca com o "Estado de Direito", e para todos os de esquerda, que passaram (mais de) uma década a defender as tropelias do governamental PS sob José Sócrates (e com tantos destes actuais governantes e [euro]deputados socialistas), em nome da inexistência de processos, de provas e falando de "cabalas" da ressabiada "direita", apesar das óbvias e consabidas manigâncias socialistas de então, pensem bem se é aceitável este tipo de argumentação pugilista. 

Enfim, o meu voto? Renhida vitória por pontos do incumbente Ventura (a qual espero ter sido qual a de Pirro), devido às penalizações regulamentares sofridas pelo candidato Santos.

Cecília

José Meireles Graça, 06.11.21

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Veio direita a mim, num passo decidido, e disse, o indicador professoral espetado no ar: Ó senhor dono papá, já lhe disseram que é um fogueirinhas? Após o que girou nos calcanhares, retirando-se com dignidade.

Na tarde ensolarada, junto ao tanque, ardiam detritos que carreara para o sítio onde, então como agora, quase quarenta anos mais tarde, os queimava. E fiquei meditabundo: tenho uma filha com quatro anos que me dá aulas? E dono o que é? – ah, já sei, é o masculino de dona.

Papá, como era no tempo da Revolução? A mamã diz que tiveste uns problemas. Mas estavas no PS, não estavas? Conta.

Contei, não sem inquirir de onde vinha o súbito interesse. Andava a ler umas coisas, disse, e pasmei: com treze anos a miúda lia muito e à bicicleta encostada ligava pouco, mas ler jornais que despertavam a curiosidade de ir escabichar o passado era, para mim, motivo de alguma perplexidade. O meu pai, morto então já há trinta anos, tinha o hábito, quando se zangava, de fazer algumas referências pouco lisonjeiras à minha costela de leitor ávido (o qual para os afazeres domésticos contribuía com zero), mas estava-me a começar a parecer que os genes, na transferência de mim para ela, tinham levado um polimento.

Aos 17: A tua filha gostava de ir assistir a uma conferência em Lisboa, na segunda-feira. Parece que é com Paulo Portas. O quê, a Lisboa, Paulo Portas? Diz-lhe que a levo.

(Esta agora, aqui vou eu em direcção a um Forum Picoas que não sei onde fica, assistir a uma conferência. O homem tem interesse, mas francamente.)

Foi sempre a melhor aluna até à Faculdade mas uma vez, zás, aconteceu uma desgraça: tirou uma nota menos boa e o desgosto envolto em lágrimas afligiu sobremaneira Aníbal, o cão familiar, que a cobriu de lambidelas. Inteirado do sucesso, devo ter dito qualquer coisa pouco simpática: aluno medíocre, adepto de atitudes estóicas, sobranceiro em relação a professores metidos a besta (e até aos outros) e com tolerância a sensibilidades femininas em quantidade diminuta, o episódio pareceu-me anómalo.

Na Universidade, em Coimbra, fui sabendo que se enfarinhara no CDS e que, por ocasião de frequências e exames, ficava em estado de ansiedade, invariavelmente injustificada porque nunca chumbou. Sempre ministrei conselhos inabituais, que incluíam a recomendação de frequentar discotecas, ligar menos importância a classificações, eventualmente admitir um chumbo como forma de consolidar conhecimentos, e outros em matéria de comportamento adequado para uma jovem, que não vou explicar. Acho que as amigas de alguma coisa estariam ao corrente, porque pelo menos uma confessou que eu era o pai que lhe conviria, mas pode ser que esteja enganado. De toda a maneira, já então sabia de ciência certa que os únicos conselhos que aceitaria, de mim ou qualquer outra pessoa, seria os que passassem o crivo do seu próprio critério. De modo que era mais pai e filha a falarem.

Acabado o curso, o estágio e o exame da Ordem, sugeri em determinada altura que fizesse um MBA. Fez, provavelmente porque já tinha essa intenção, e gostou – de gestão, de contabilidade, de finanças, porque a parte do cérebro alocada às humanidades e à juridicidade não inibia a intuição para a matemática e a economia.

O mais foi a carreira em lugares políticos, uma vocação, um vício e uma obsessão. E fui progressivamente pasmando: de cultivo interesseiro de relações com jornalistas e angústias com a imagem nada, de estudo, preparação e discrição muito; de calculismos apenas os legítimos, e temperados com fidelidades e amizades sólidas; escolha de políticas fundada em reflexão e conhecimento; discurso sereno, sem ademanes histriónicos mas com oratória inspirada nas ocasiões em que isso se requer; e brilho discreto sempre, o natural de quem nasceu sobredotado.

Abandonou ontem a carreira, acossada por gente que lhe deveria segurar o andor. E eu abandono a discrição que sempre me impus, a benefício dela por não lhe acrescentar nada o saber-se ser filha de quem é, para fazer votos, como cidadão, de que possa regressar quando os miasmas, que empestam o ar, se dissiparem.

Como pai, é claro que, na política ou fora dela, o que desejo é que reencontre a serenidade que merece.

Centro Do Sumiço

José Meireles Graça, 01.11.21

Ao meu amigo João Távora parece não aborrecer excessivamente que tanta gente esteja a dar à sola do CDS. “O anúncio da morte do CDS foi um manifesto exagero, daqueles que receiam uma direita civilizada e afirmativa na corrida ao poder. Prefeririam sempre concorrer com palhaços inconsequentes. Será que chegou a nossa vez?”, diz ele.

Aparentemente, estes palhaços inconsequentes foram boa parte dos eleitos pelo CDS, e entre eles Portas, o Némesis da  corrente do CDS que João Távora integra.

Diz isto e já tinha explicado: “A propósito do mau perder de Adolfo Mesquita Nunes e de outros reputados militantes que agora fogem como ratos: ando há 14 anos minoritário no CDS onde fui obrigado a engolir os mais vis insultos e truques regimentais da malta do Portas para me calar. Nunca desisti de lutar”.

Já eu do CDS fui um militante distante até ao dia em que o partido apoiou Marcelo, passo que achei justificava passar-me ao fresco. As minhas razões expliquei-as publicamente e com elas, que me apercebesse, ninguém se afligiu, como aliás esperava: à vida interna do partido nunca liguei pevas e das raras vezes em que assisti a reuniões partidárias que não fossem no âmbito de comícios ou jantares fiquei pasmado com o nível, por demais pomposo e fastidioso, das intervenções. É assim em todos os partidos, ao que sei: a carne para canhão do activismo precisa volta e meia de orar, faz parte. Mesmo assim, nas últimas eleições fiz, como costumo fazer a benefício da minha empregada doméstica, que carece de conhecer a minha opinião para formar a dela, e da minha dúzia de seguidores, a recomendação habitual – votar CDS.

No CDS não se estava mal: a corrente democrata-cristã, designação elevada para social-democratas que vão à missa e supõem que nas encíclicas papais se encontram preciosos ensinamentos de governança; a corrente conservadora, isto é, thatcherista ou gaullista, bastante eurocéptica a um tempo e posteriormente euro-resignada; a corrente liberal, em geral composta de gente cujos modelos de raciocínio não deixam espaço para preocupações geo-estratégicas ou nacionalistas – tudo compunha um quadro de tolerância necessária, cujo cimento era a sobrevivência do partido e o contributo, ainda que ancilar, para soluções de governo que revertessem o estatismo sufocante que é uma das marcas de água do abrilismo.

Fora dos partidos, há a posição niilista dos que, por não encontrarem em lado nenhum a tradução partidária exacta do quadro de opiniões preciosas que lhes ornam as mentes esclarecidas, se abstêm; há a posição superior daquelas pessoas que, constatando que os partidos são máquinas de conquista e manutenção de poder cujos processos desprezam, se mantêm longe; e há os que, constatando que a acção individual de militantes anónimos pouca ou nenhuma importância tem no curso das coisas, dão o seu contributo unicamente na mesa do café, ou nas redes, onde peroram desconsoladamente sobre as insuficiências da democracia.

Mas, felizmente, havia militantes partidários, no CDS como nos outros partidos. E como, pela natureza das coisas, estes pertenciam a todas as direitas, visto que os restantes partidos eram de esquerda (o PSD, pelas razões que adiantei num dos textos lincados acima, só aparece reactivamente como de direita num país onde, por razões históricas, o espectro partidário está deslocado para a esquerda) a tolerância era necessária por razões de massa crítica.

Esta tolerância interna fraquejou sempre que a liderança foi de forma excessivamente incisiva marcada por uma das correntes. O negregado Portas sempre teve internamente inimigos, mas sempre teve o cuidado de permitir a ascensão a deputados, podendo impedi-lo, a corifeus das correntes internas depositárias, na opinião delas, do segredo do verdadeiro CDS, incluindo nesta tolerância José Ribeiro e Castro, que inapelavelmente derrotou.

O mesmo Ribeiro e Castro não se cansa de explicar (embora não seja fácil apurar, nos seus textos convolutos, o que realmente está a dizer) que o CDS do futuro é papista, ainda que no nevoeiro argumentativo fique por perceber se estamos a falar de S. João Paulo II ou do papa Francisco. E o que isto na prática significa é que os liberais fazem bem em ir lá para a capelinha deles e, presume-se, os indignados e raivosos sortidos para o Chega!. Assim depurado, e forte da sua reganhada consistência, o eleitorado, a prazo, fluirá.

Este CDS que nasceu no último Congresso, na ressaca do descalabro eleitoral de Assunção Cristas, quer curar as feridas do desastre, para o que entende que doses cavalares de intransigência (para dentro; para fora alojar-se numa barriga de aluguer não causa engulhos) são a cura indicada, visto que a derrota é atribuída aos ziguezagues doutrinários e tácticos da líder que se demitiu. A mesma que em fins de 2017 tivera em Lisboa, para a edilidade local, um resultado notável. Bem sei que são lisboetas, coitados, mas quand même: que se terá passado para uma tão grande queda de popularidade?

O que se passou foi a envolvência: havia mais palhaços na cidade, e eram eles a IL, o Chega! e o aparente sucesso da fórmula geringôncica – a mesma que agora se finou.

O que tudo deveria recomendar prudência: os vencedores de hoje são os derrotados de amanhã, a IL merece crescer mas nunca explicou como vai cortar na despesa pública, e o Chega! parece-se excessivamente com um furúnculo que, como é sabido, incha, desincha e passa. De modo que, travessia do deserto por travessia do deserto, não conviria abater cavalos, nem deitar fora os cantis da água que não seja puríssima.

Lobo Xavier, um senador que apoiou a eleição de Francisco Rodriguesdos Santos, tem muitas qualidades e muitos defeitos e eu, fiel às minhas pechas, nunca falei dele senão para o crucificar. Mas de falta de lucidez sobre ganhos e perdas é que não sofre. Pois diz: "Saem os melhores e ficam alguns dos piores", do que conclui: “Não tenho nenhuma vontade de aconselhar voto no CDS”.

Se eu fosse amigo das pessoas da Direcção do CDS como sou do João, dir-lhes-ia o que lhe digo a ele: De que te serve ser maioritário numa casa em ruínas?

E, é claro, a menos que um raio caia no Caldas e ilumine aquelas cabeças que se tomam por brilhantes e as leve a encontrarem uma solução para a sangria, com o meu voto, o da minha empregada e o dos meus doze leitores fiéis é que não contam.

Da irrevogável decadência

Pedro Correia, 30.10.21

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Se existe algo a que possa chamar-se "morte digna", encontra-se a muitas milhas de distância do CDS. Gerido como uma associação de estudantes desde que passou a ser dirigido pelo actual líder, oriundo da organização juvenil do partido de Adriano Moreira, Paulo Portas e Assunção Cristas, o Centro Democrático Social tem dado ao País uma deplorável imagem nestes dias que antecedem o seu funeral. Com "Chicão" a exibir pavor do confronto interno, desmarcando o congresso que fixara por sua iniciativa para os dias 27 e 28 de Novembro. Ao perceber que tinha sérias hipóteses de sair derrotado, ensaiou esta jogada palaciana no vetusto casarão do Caldas para silenciar os críticos internos. Entre os quais se incluem todos os sobreviventes daquele que já foi o mais brilhante grupo parlamentar no hemiciclo de São Bento.

"Chicão", que me garantem gostar de tourada à portuguesa, se integrasse um grupo de forcados só teria lugar como rabejador. Pega de caras não é com ele. Desconsidera o eurodeputado Nuno Melo - já quase com mais anos de militância no partido do que ele tem de vida - e todos quantos o apoiam. Transforma em letra morta as decisões do Conselho de Jurisdição Nacional, que funciona como tribunal interno. Faz coro com os socialistas exigindo agora eleições legislativas tão cedo quanto possível, sabendo que o seu mandato na liderança partidária termina em Janeiro. E reza pela bolsa marsupial de Rui Rio, pronto a transformar o CDS num satélite do PSD. Ser os "verdes" dos laranjinhas: eis, em poucas palavras, ao que se resume o programa de "Chicão".

Quando este miúdo foi confirmado como sucessor de Assunção Cristas, vai fazer dois anos, escrevi aqui um breve postal intitulado "De Amaro da Costa a Chicão", com fotografias de ambos: simbologia clara, hoje ainda mais evidente, da irrevogável decadência de um partido fundador da democracia portuguesa. 

Bloco de Esquerda e PCP têm sérios motivos para queixar-se de António Costa, que aproveitou o ciclo da geringonça para tentar suprimi-los do mapa eleitoral. No caso do CDS nem foi necessária a intervenção de Costa: o cangalheiro está sentado no cadeirão máximo do partido, entretanto reduzido à expressão mínima.

É preciso declinar muito para terminar assim.

Limianos

jpt, 26.10.21

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Paulo Portas, que desta poda muito sabe, já avisara. Os deputados PSD da Madeira poderão de "modo autónomo" (ou seja, em acordo partidário esconso) viabilizar o orçamento, coisa que o seu dirigente já veio confirmar.

Convirá recordar que numa época de "vacas gordas" (apesar do então celebrizado "discurso da tanga") o PS de Guterrres fez um acordo parlamentar esconso com o CDS de Portas, através do manuseio de deputado Campelo, que aparentemente tudo trocou pelo queijo Limiano. O presidente Sampaio muito hesitou em aceitar tal solução. Os seus conselheiros dividiram-se na opinião. Mas acabou por aceitar tal opção - que de facto foi uma violação do espírito da constituição e, como tal, um perjúrio presidencial. Morreu, em paz, sem que tivesse sido efectivamente escrutinado por tal cedência.

O arranjo "limiano" - cujo vero conteúdo se comprovou, para quem pudesse ter dúvidas, quando o deputado Campelo, apesar de ter sido temporariamente sancionado pelo seu partido, veio a ser chamado para o governo quando Portas a ele acedeu - foi pestífero. Provocou um bamboleio tal que o governo caiu dois anos depois, apesar do PS ter exactamente metade dos deputados. Nesse trambolhão promoveu ao poder uma inconsequente direcção do PSD e causou uma atrapalhada sucessão no PS que desembocou numa incompetente direcção que logo se veio a desagregar, em rumo espúrio. Disto tudo brotou o longo consulado do pérfido José Sócrates - que as pessoas das lideranças políticas já bem conheciam, por mais vestais que se queiram continuar a afirmar. 

Toda aquela marosca, repito, foi no tempo "das vacas (europeístas) gordas". E teve o deletério efeito de longo prazo que teve. Agora, neste estado endividado, (quase) pós-pandémico e diante da crise internacional anunciada, não há espaço para tais artimanhas. E temos o pior presidente da república da história do regime, o mais volúvel e superficial, homem desprovido da gravitas que Sampaio tinha. Incapaz de pensar o país para além da sua vácua vaidade. Só podemos exigir a Rui Rio que não se ponha com brincadeiras destas. E a Costa que tenha tino. E vice-versa.

De trambolhão em trambolhão

Pedro Correia, 17.03.21

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O PSD continua a cair nos barómetros e sondagens: vai de trambolhão em trambolhão. Atrelado ao CDS, partido hoje quase inexistente - assim, ao menos, amparam-se um ao outro na queda irrevogável. 

A sessão pública de ontem, em que Rui Rio e Rodrigues dos Santos (outrora conhecido por "Chicão") anunciaram uma plataforma comum para as autárquicas, tinha uma atmosfera menos animadora do que muitos funerais. Com um a falar em alhos e o outro a falar em bugalhos. Sintonia zero. Nem podia ser de outra maneira: é uma soma de derrotados.

Um ano após o início da pandemia, e no quarto ano do exercício de Rio à frente dos laranjinhas, o PS alarga a vantagem: tem agora mais 14 pontos percentuais do que o PSD. 

E o que faz o alegado "líder da oposição"? Vai de dislate em dislate. Apresentou uma lista de cem candidatos a presidências de câmaras com 97% de homens, queixando-se de haver «muito poucas mulheres disponíveis». Colou-se (pela enésima vez) ao PS, desta vez para dificultar ao máximo as candidaturas independentes nas autarquias. E agora vai a reboque do PAN, apresentando uma iniciativa legislativa para obrigar os titulares de cargos públicos a declarar se pertencem a «organizações ou associações de carácter discreto». Velha obsessão do seu guru José Pacheco Pereira.

Os lesados da pandemia agradecem estas prioridades legislativas de Rui Rio. Os mais de 600 mil desempregados portugueses devem congratular-se com tanta sensibilidade social revelada pelo presidente do PSD num país que sofre a maior contracção económica de sempre e a quarta maior queda actual do PIB ao nível da União Europeia.

Os resultados vão ver-se. Na próxima sondagem.

Presidenciais (17)

Pedro Correia, 25.01.21

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AS ESQUERDAS GOLEADAS

Três candidaturas presidenciais assumidamente "de esquerda", assim se proclamando perante o eleitorado com os chavões próprios de quem vê o mundo a preto e branco diabolizando a outra metade do hemisfério.

Estas três candidaturas, somadas, só recolheram 21% dos votos ontem expressos nas urnas. Menos do que Sampaio da Nóvoa isolado há cinco anos. O equivalente ao que Manuel Alegre obteve em 2006, também sozinho.

Quase quatro quintos dos portugueses que compareceram nas mesas de voto deixaram evidente a sua preferência por outras opções, situadas em território da não-esquerda. O das direitas, para usar o rudimentar léxico político importado da geometria. A direita social, a direita liberal, a direita autocrática. 

À luz desta lógica de arrumação política, as esquerdas personificadas em Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias acabam de sofrer uma goleada histórica nesta eleição presidencial de que sai um claro vencedor: Marcelo Rebelo de Sousa, reforçando o seu triunfo de 2016 com mais cem mil votos e quase mais nove pontos percentuais do que alcançou há cinco anos.

Sendo também o primeiro Presidente, na história da democracia portuguesa, a vencer em todos os concelhos do País.

 

Nada fica igual: este escrutínio ocorrido no auge da gravíssima crise pandémica que só ontem causou mais 275 vítimas mortais produzirá efeitos sísmicos na política portuguesa. Forçando reconfigurações em vários tabuleiros, como se verá a curto prazo.

A primeira consequência é a morte do CDS, apesar da patética tentativa do seu ainda presidente de colar-se ao grande vencedor da noite. Merece exéquias dignas. Paz à sua alma. 

Mas muito mais vai mudar. Com legitimidade revalidada, Marcelo não perdeu tempo. No discurso de vitória, na Reitoria da Universidade de Lisboa, acaba de dizer com total transparência que um dos seus objectivos, no segundo mandato a iniciar em Março, será contribuir para uma «alternativa forte» ao actual Governo «para que a sensação de vazio não convide a desesperos e a aventuras».

Recado que segue direito para Rui Rio. O ainda presidente do PSD nunca poderá dizer que não foi avisado.

Adeus

José Meireles Graça, 13.12.20

Ontem reuniu-se o Conselho Nacional do CDS e, soube-se ao fim do dia, o partido apoiará Marcelo nas próximas eleições presidenciais.

É um gravíssimo erro. Explico porquê:

O CDS chegou, por razões circunstanciais, tarde à distribuição de cargos no aparelho de Estado, incluindo autarquias, o que, num país clientelar como é o nosso (aliás crescentemente) explica, em conjunto com outras razões que não vou esmiuçar, a sua condição de parente pobre do poder democrático.

Durante muito tempo albergou toda a direita democrática. O PSD, que tem uma génese e uma história muito diferente, foi sempre um partido equívoco por em vários momentos ter encabeçado a reacção à estatização do país e aos sucessivos desastres da governação socialista, o que consolidou a ideia de se tratar de um partido de direita. Mas aprovou a Constituição, cripto-cubana na sua versão inicial, foi sempre ferozmente europeísta, ainda antes do estado de necessidade que tornou qualquer veleidade de condução dos destinos nacionais, em certos aspectos, uma quimera, e nunca pôs verdadeiramente em causa, salvo no consulado de Passos Coelho, a irreversibilidade da crença no papel central do Estado, que é o pano de fundo do inelutável deslizar do país para os últimos lugares do desenvolvimento. Servido embora de pessoal tecnicamente mais qualificado, e sem algumas das máculas que tornam o PS a mão negra que se abateu sobre o país, só por distorção de conceitos se pode considerar um partido de direita, ainda que tenha não poucos votantes e dirigentes que estariam igualmente bem, se não fosse o quererem atrelar-se a carros vencedores, no CDS.

Albergar toda a direita sempre quis dizer democratas-cristãos, liberais, nacionalistas e tutti quanti não fossem socialistas. Este era o cimento, e cada uma das capelas convivia com as outras com algum desconforto, vários próceres defendendo que o verdadeiro CDS era o da sua, e as outras equivocadas. Os sucessivos líderes, por sua vez, navegavam conforme podiam no meio das “sensibilidades” e tendiam a ter a autoridade que o seu perfil, e a percepção da aceitação pelo eleitorado, lhes permitia.

Este cimento abriu brechas com os novos partidos, um liberal e o outro troglodítico-oportunista (com perdão a muitos militantes que conheço, e que não cabem nessa qualificação). Nem um nem outro, porém, têm a curto-prazo mais aspiração (e se a tiverem estão a nanar) do que fazerem parte de uma futura solução encabeçada pelo PSD, no caso provável de o pavio do PS se extinguir.

Entram aqui os cálculos marcelófilos. Este é encarado como um facilitador de uma futura solução ao actual estado de coisas pantanoso.

Mal. Porque Marcelo não tem nem nunca teve nenhuma ideia para o país que fosse além da democracia, europeísmo e o resto da vulgata de ideias consensuais e pacíficas. Não tem estratégia, apenas táctica; não lidera a multidão, apenas quer saber para onde ela quer ir, para a encabeçar cavalgando num trote risonho e, com frequência, ridículo; diz todas  as verdades, se forem agradáveis; leu todos os livros, se tiverem sucesso; lisonjeia todas as costelas patrioteiras, se isso não implicar mais do que discursos de chacha e gestos vácuos; e, sobretudo, aprecia a estabilidade, que é invariavelmente a da sua permanência num poder fátuo com geral aprovação, sem jamais lhe ocorrer que ela só é útil ao serviço de políticas profícuas, que de toda a maneira não sabe quais são.

Pense-se o que se pensar sobre Costa (e eu devo ter escrito dispersamente um livro de dimensão média a execrar o homem), é inegável que é um sobrevivente, um mestre da propaganda e manipulação, e um escravo consistente de ideias deletérias, que são as da esquerda que sufoca o país. Pois Costa apoia Marcelo e os senhores 153 conselheiros do CDS acham que não sabe o que está a fazer – eles é que sabem e Costa, em devido tempo, descobrirá que enfiou um grande barrete.

Não enfiou. Porque Marcelo só não o recompensará se a relação de forças no país mudar e a opinião pública, e a comunicação social, deixarem de carregar o andor socialista.

Isso sucederá, dependendo do tempo que levarem os patrões europeus a quererem começar a puxar a brida da dívida. Mas, quando suceder, não é imaginável que o concurso de Marcelo, com os poderes limitadíssimos que tem, o seu característico conjunto de convicções de plasticina, que passa por habilidade florentina, e a sua obsessão com a popularidade, sejam verdadeiramente úteis.

De modo que vender a alma ao diabo, se é justificável em tempos de guerra ou perigos mortais, não o é agora; ajudar a ganhar uma batalha, que aliás já está ganha com ou sem CDS, não é a mesma coisa que ajudar a ganhar a guerra; uma futura coligação de direita far-se-á em torno de um menor denominador comum, mas os equívocos não ajudam; e o CDS que votou contra a Constituição ou tinha um candidato próprio para ser derrotado com honra ou não apoiava ninguém porque nenhum candidato merece o seu apoio.

É certo que noutra maré o CDS se coligou com o PS, com a habitual retórica do interesse nacional e pé-ré-pé-pé – durou sete meses. Nessa época não era filiado, agora sou.

Sou mas vou deixar de ser. Nunca ninguém me censurou por pensar pela minha cabeça e dizer sempre o que me parece, e não estou certo de que seja apenas a minha irrelevância que sempre me protegeu – também a cultura partidária, de há muito habituada a conviver com vozes dissonantes.

Mas. Mas. Marcelo pode vir a fazer parte de uma solução para o país, se não houver outro remédio, mas não é por ser apoiado agora que se ganham créditos seja para o que for; não quero ser associado a soluções pastosas e oportunistas; não tenho nem nunca tive problemas em conviver com gente mais ou menos liberal do que eu, mais europeísta do que eu, mais ou menos nacionalista do que eu, até mesmo com quem julga que o manual para governar o país é a encíclica Rerum Novarum. Mas com nevoeiros onde difusamente se percebe o apelo do poder sem princípios, cálculos sem consistência e ambições sem tino – não.

Regressarei quando o tempo clarear.

A morte do CDS

jpt, 03.12.20

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Tenho alguns amigos simpatizantes, e até militantes, do CDS. Este postal é para lhes expressar solidariedade. A ligação é para um filme de 1 minuto, a reportagem da visita do presidente do CDS, Santos, aos grevistas de fome do sector de restauração. O comportamento dele é pungente, a coisa mais lamentável que já vi. Nem convoco a memória dos grandes políticos portugueses de antes, como Soares, Eanes, Sá Carneiro, Cunhal, Zenha. Nem a dos grandes vultos do CDS, Amaro da Costa, Adriano Moreira, Lucas Pires. Ou do habilíssimo Portas e do em tempos popular Freitas do Amaral. Pois não é preciso esse tipo de comparações para se aquilatar o que agora ali se passou, seria até cruel ... Um rapazola, apatetado, ali completamente humilhado, sem qualquer noção de si mesmo, do seu papel (para o qual concorreu). Sem qualquer auto-respeito e pelo que aparenta representar. Seria ridículo se não desse dó.

Este breve minuto televisivo seria, noutras eras, o fim de uma carreira política. Hoje em dia se calhar até não o será. O que é o pior de tudo, já ninguém liga ...
 
Mas que vergonha horrível. Uma vergonha pelo alheio.