Cavaco nunca entendeu uma realidade que não se pudesse medir, daí que neste artigo diga que António Costa “tem um grau de coragem política muito baixo”. A gente pressente a vontade de atribuir uma classificação – talvez oito, numa escala de zero a vinte, na qual ele, Cavaco, teria um 19, por modéstia, e Medina talvez um 14 – a este atribui, pela sua ação na Câmara Municipal de Lisboa, “um grau médio de coragem política”.
Este elogio é de certo modo reconfortante porque com 14 dispensa-se da oral e portanto fica a esperança de que Medina venha a ser um ministro notavelmente silencioso. Se bem que a alegada coragem se tenha feito notar sobretudo pela fleuma perante a denúncia à embaixada da Rússia de opositores, episódio que Aníbal, aparentemente, encara com equanimidade.
Não percebeu, como de costume, nada do essencial mas, como habitualmente, diz muitas coisas de préstimo. Vamos ao asneirol:
A afirmação pressupõe que Costa sabe o que fazer para pôr o país a crescer, mas não empreende essa patriótica tarefa porque tem medo de “impopularidade no curto prazo”.
Sucede que António Costa tem dado abundantes provas de cultivar a popularidade, com tanto sucesso que em toda a sua carreira de autarca, deputado, secretário de Estado, ministro e comentador, sempre se distinguiu por agradar. Aliás, tirando o notório assassinato do camarada Seguro e outras picardias na sua triunfal marcha para a liderança do PS, não se lhe conhece pendor para granjear com facilidade antipatias. Mais: para as não ter sempre comprou adversários com blandícias, a opinião pública com bonomia, a comunicação social com manipulação, a parte da Oposição de que precisou, quando precisou, com cedências a suportar pelo contribuinte, e votos com propaganda eficaz, respeito por direitos adquiridos e desvelo pelo seu grupo social de eleição (é o caso de dizer) – os funcionários públicos.
O eleitor não vai muito em tretas e elegeu com louvável isenção o simpático António (como dantes o Mário), o antipático Aníbal, o trombudo Pedro, porque em cada momento qualquer daquelas avantesmas pareceu o que mais garantia que ia dar qualquer coisa, não retirando nada, excepto talvez o último, mas tinha desculpa. E isso no curto prazo. Porque projectos, como são quase sempre os que convêm ao país, que prometem um futuro melhor para os nossos filhos mas entretanto põem, ou podem pôr, o nosso presente de funcionários ou pensionistas em risco, t’arrenego.
Passos Coelho, levado pelo idiota Vítor Gaspar, o típico guarda-livros que se imagina gestor da empresa, não teve isto em conta, e por não ter tido feriu interesses de pensionistas quando podia ter lançado mão de expedientes mais hipócritas, mas menos deletérios para a popularidade, como por exemplo o aumento do IVA, o horroroso precedente a que recorreu in illo tempore a cavaquista Ferreira Leite, entre outros antes e depois (a taxa do IVA era, aquando da sua criação em 1986, de 16%, e já sofreu quatro aumentos).
A Costa ninguém faz o ninho atrás da orelha. E portanto no seu consulado tratou de passar irudoid nas pisaduras de todos os dependentes do Estado, directos e indirectos, processo a que chamou de “reversão”. De caminho, aumentou generosamente o número desses dependentes, tanto e tão bem que o partido do Estado, de que falava o saudoso Medina Carreira, é hoje em boa parte do PS. Com isso minou o caminho das oposições, destruindo ao mesmo tempo o módico de racionalidade que o governo Passos Coelho tinha imposto.
Gente ingénua como Cavaco julgará decerto que tudo isso foi apenas calculismo, que agora já não será necessário porque o PCP agoniza e o Bloco debate-se. Julga mal: Costa pensa coisas sobre o país, a Europa, o futuro, o crescimento, e delas nunca fez segredo: basta rever a sua longuíssima (três anos) participação na Quadratura do Círculo, onde hebdomadariamente se aliviava do entulho que em tais matérias lhe povoa a cabeça, para perceber que não foi só o maquiavelismo que lhe norteou a acção: ele acredita no papel central do Estado como promotor, mentor e agente do progresso material, com o sector privado a desempenhar um papel ancilar, e que consiste em navegar no meio das licenças, dos “serviços”, das regulamentações e dos apoios (estes apenas para “bons” projectos). E portanto não apenas encomendou um inenarrável programa para a década, com o qual vai torrefazer o maior bodo que a UE já teve a imprudência de para aqui enviar, como o apresentou de boa-fé ao Parlamento e convidou para ministro da Economia o visionário lírico que o elaborou. Este é, mas infelizmente apenas nas horas vagas, poeta, e já começou a exercer o seu importante múnus de maneira adequada: fala em novos impostos para empresas, uma coisa de que elas estão bastante carecidas.
Este vício básico de raciocínio (Cavaco não entende que, dispondo da mesma informação, não se chegue às mesmas conclusões que ele porque é incapaz de ultrapassar os limites estreitos da sua compreensão) leva a que elenque uma série de medidas para as quais seria necessária “coragem”. Em havendo “coragem” tomam-se as medidas que “economistas de reconhecida competência” (são os mesmos que debitam incansavelmente as mesmas banalidades que ele) recomendam; e em havendo cobardia não. Daí que saliente quatro áreas, a saber a Administração Pública, o sistema fiscal, a justiça e o mercado de trabalho, e em todos estes campos enuncie medidas meritórias, misturadas ocasionalmente com tolices menores (“qualificação e capacitação digital dos servidores do Estado”, a sério? É na prática o velho mantra da formação profissional, gente que finge que ensina gente que finge que aprende coisas que o mais das vezes resolvem alguns problemas criando outros enquanto se torram milhões).
Se fosse comentar as medidas uma por uma o limite da paciência dos leitores, que estimo em três páginas, seria largamente ultrapassado, e de resto abundaria no aplauso, que não me quadra nem com o feitio nem com o que penso da personagem. De modo que remeto para o artigo do Público lincado acima, sendo certo que um governo que tentasse traduzir aquele catálogo de intenções para a prática faria decerto um muito melhor serviço ao país do que este que foi eleito – que não fará nada disso.
Cavaco não responde porém, e nem sequer é provável que ela lhe ocorra, à seguinte pergunta: como se explica que tendo António Costa dado sobejas provas de ser incapaz de resolver o principal problema de Portugal, actualmente, que é ser ultrapassado paulatinamente por sucessivos países num continente que ele próprio se atrasa no mundo, tenha um sucesso esmagador?
Há um colega de Cavaco, Nuno Palma (ignoro se Cavaco acha que pertence ao grupo dos de “reconhecida competência”), que se tem dedicado a investigar as causas profundas do relativo atraso português, que começou algures no séc. XVIII e só começou a ser revertido a partir dos anos cinquenta do XX. O próprio explica esse atraso, entre outras razões, por causa da maldição dos recursos (para quem não conheça a tese: recursos a mais e não a menos), e por mim espero que o autor saia do âmbito universitário e do circuito de conferências para publicar as suas teses em livro sem o jargão da seita porque têm, para dizer o mínimo, muitíssimo interesse.
Por mim, lembraria a Cavaco que a sua autoridade decorre de uma receita de sucesso passado que assentou na novidade dos fundos, que já não existe, e na demolição da camisa de forças esquizofrénica da economia do PREC, há muito defunta. Hoje há uma dívida monstruosa, o hábito deletério de achar que todo o futuro vem do ouro de Bruxelas, como noutros tempos do Brasil, e que a reforma que vale a pena é a do Estado sem lhe tocar nem na dimensão nem na importância – coisas que, em parte, nasceram nos seus abençoados tempos. A que tudo se soma os velhos que duram cada vez mais e os novos que não nascem – coisas que, ao contrário de muitas outras, não são problemas que o sistema político tenha per se criado mas nem por isso deixam de reclamar uma resposta.
O programa de Cavaco é, comparativamente, bom, ainda que banal – o que não é necessariamente um defeito porque se a comunidade dos economistas, a que Cavaco pertence, e que imagina depositária de alguma espécie de lucidez que falha ao comum dos cidadãos, abundar nestas prescrições, alguma coisa sobrará para a consciência pública.
O que não é pequeno serviço. Seria maior se Cavaco explicasse como, num regime democrático que vale pelas liberdades que proporciona, e não pelo bem fundado das escolhas que os eleitores fazem, se convencem estes de que para distribuir riqueza é necessário criar as condições para que esta cresça?