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Delito de Opinião

O trambolhão

Paulo Sousa, 18.01.24

O texto de Cavaco Silva publicado ontem no Observador fez-me recordar um tempo que muitos jovens, que já votam, nunca viveram. Há dias, na conversa com uma jovem arquitecta que vai insistindo em não emigrar, ouvi-a dizer que desde que se recorda de acompanhar a actualidade que se lembra de se falar da crise. Uma amiga do meu filho, que está a terminar o curso de enfermagem, contou-nos que toda a sua turma já foi abordada por serviços públicos de saúde europeus no sentido de os atrair para o seu país. Ela já sabe que vai para Inglaterra.

Perante a estagnação económica deste início de século, em que a emigração dos nossos mais jovens será apenas mais um indicador, o texto de Cavaco Silva é especialmente elucidativo do trambolhão que demos.

Diz Cavaco: "Em Junho de 1995 (...) a OCDE escreveu: “Portugal realizou, desde 1985, um progresso económico notável, marcado pelo aprofundamento da integração na economia internacional, pela abertura dos sectores protegidos, pelo avanço na transformação estrutural da economia e por um acrescido aprofundamento financeiro". Ao longo dos anos do Cavaquismo foram demolidas cerca de 42.000 barracas e realojadas 48.000 famílias, Lisboa ficou finalmente ligada ao Porto por auto-estrada, foi negociado o arranque da construção da Ponte Vasco da Gama, foi lançado o concurso internacional para a introdução do comboio na Ponte 25 de Abril, arrancou a construção da barragem do Alqueva, teve início a requalificação da zona oriental de Lisboa que culminou com a realização da Expo’98, foi negociada a ligação por gasoduto desde a Argélia, foi lançado o programa das Aldeias Históricas de Portugal e, em Abril de 1995, foi inaugurado o Hospital Distrital de Leiria, o oitavo construído de raiz durante os seus mandatos como primeiro-ministro. Sem ter de recorrer a tratamentos de favor nem à prática de crimes de prevaricação, foi ainda inaugurada a AutoEuropa.

Nem tudo terá sido bem feito nesses tempos das farturas e do optimismo, mas comparando com o que temos vivido e a que temos sido sujeitos, a diferença é abissal. São compreensivas as crises de urticária sentidas pelo actual poder sempre que Cavaco publica mais um dos seus textos.

O Expresso de há dias revelou-nos que 30% dos nascidos em Portugal vivem fora do país, um terço das mulheres em idade fértil optou por emigrar e que 70% destes novos emigrantes têm menos de 40 anos. Este é apenas uma parte do legado de António Costa. Nesta rubrica do Pedro Correia podemos enumerar muitas outras faces da mesma realidade que incluem empobrecimento dos portugueses, a degradação dos serviços públicos e a que lhe podemos acrescentar o recorde de sempre da carga fiscal. Fora das estatísticas que abrem telejornais, temos ainda assistido a um enfraquecimento regular e contínuo das instituições que foram criadas para contrabalançar a separações dos poderes legislativo, executivo e judicial.

Sendo que a alternância do poder é a essência do regime democrático, questiono-me sobre até que ponto os portugueses estarão anestesiados da realidade em que vivem.

Cavaco*

José Meireles Graça, 09.12.23

Há dias comecei a escrever um artigo seminal (todos os que escrevo são seminais, na minha opinião que naturalmente respeito) sobre a desejável coligação pré-eleitoral de todas as direitas, que evidentemente não vai suceder mas deveria.

Nosso Senhor, que talvez me acompanhe os lavores, brindou-me depois com uma notícia já antiga sobre o Chega, onde este defende a prisão perpétua para traficantes de droga, e outra actual sobre este artigo de Cavaco, ambas susceptíveis de me bulirem na bolha dos princípios.

Quanto ao Chega, repito o que já disse noutras marés: as linhas vermelhas não devem ser desenhadas à volta de partidos, mas de ideias; uma coligação faz-se em torno do mínimo comum, e o mínimo dos mínimos é desalojar o PS, na presente circunstância histórica uma doença crónica que vai estiolando o país. Medir forças e pesos eleitorais, em vez de um exercício de humildade que consistiria em aproveitar as vantagens do método de Hondt enquanto existem e deixar semelhante guerrilha para quando o país estiver menos adernado à esquerda, é evidentemente suicidário.

Quanto a Cavaco, estivesse a campanha eleitoral mais adiantada e eu fecharia a minha quase ignota matraca: não é no meio de uma batalha que se critica o camarada de um exército aliado porque a farda não é regulamentar.

Mas Marcelo, decerto preocupado com a invernia, marcou eleições segundo os princípios dos licenciamentos pela Administração Pública: hão de vir um dia, lá mais para a frente, de modo que entretanto vão as costas folgando.

O artigo é um exercício de suposta clarividência e cientificidade de um monstro de vaidade que se imagina depositário de verdades incontestáveis. E isto é o menos, que a vanglória, se genuína, é ainda assim preferível à modéstia, se falsa: pretende uma revisão constitucional feita por ele, Cavaco, através de artigos de jornal. A qual transfere para um comité de sábios poderes soberanos que, se calhar com grande imprudência, pertencem constitucionalmente ao Parlamento. O homem acha, como sempre achou, coitado, que um doutoramento em economia, se feito na universidade certa sob a orientação de colegas que rezem pelos mesmos manuais, que estima bíblicos e lhe construíram a mundividência económica, transforma cretinos em inteligentes, chanfrados em poços de sabedoria, e ambos em patrões do eleitor ignaro.

Esmiucemos, e nada melhor do que transcrever, comentando, os versículos do esforçado portento doutrinário.

Em artigos publicados por Daniel Bessa e por Ricardo Paes Mamede a expressão “contas certas” é qualificada de insólita, absurda, vazia e equívoca. Nos capítulos sobre política orçamental dos tratados de Finanças Públicas, “contas certas” é um conceito que não existe.

Lamento desiludir Cavaco mas o conceito existe pela razão comezinha de que há um mundo fora dos “tratados” e nesse, que é o das pessoas que não empinaram manuais de finanças públicas, “contas certas” quer dizer que não se gasta o que não se tem. Pessoas, portanto, que se exprimem em Português e não em financês. Tanto Bessa como Paes Mamede acham a ideia enganosa não por causa da falta de rigor tecnocrático da expressão mas porque censuram o modo como se chegou ao resultado e a deificação do objectivo, que acham nem sempre ser recomendável, sendo que as razões de um e outro são muito diferentes. De resto, estes dois exemplares da Academia, se postos a elaborar um qualquer Orçamento, fariam dois completamente diferentes. E se para tal empresa Cavaco também fosse convidado haveria ainda um terceiro, mais próximo do primeiro que do segundo, e presumivelmente criticado pelos dois.

Isso acham eles. Já eu entendo que o melhor que o PS pode dizer de si é que talvez tenha feito passar definitivamente para a parte maior da opinião pública a ideia de que há limites, e esses são os da receita, para o que o Estado pode gastar. E que isso tenha sido conseguido com doses massivas de propaganda, por processos ínvios e de democraticidade duvidosa, como o mecanismo das cativações, e sem cortes na despesa (pelo contrário), não oblitera o ponto.

O valor desejável para o saldo orçamental em cada ano, sendo uma restrição, deve ser determinado antes de o Governo elaborar a sua proposta de Orçamento, não por políticos, mas por um comité independente de especialistas de modo a satisfazer duas exigências.

Comité? Especialistas? “Deve ser determinado”? Temos então uma Assembleia eleita, um Governo democrático, mas o saldo, ai o saldo, esse deve ser determinado por uns sábios armados de folhas de cálculo e teorias unívocas. Esses sábios, está bom de ver, são todos economistas e não uns quaisquer: daquela variedade única, que só existe na imaginação de Cavaco, que acha nestas matérias o mesmo que Cavaco acha. Ou então estas interessantes figuras razoavelmente anónimas têm divergências e chegarão às suas conclusões após discussão e votação. Caso em que os que não foram eleitos condicionam, votando entre eles, os que o foram. O Professor Cavaco de Finanças Públicas entenderá muito, concedo; de democracia representativa é que nem por isso. Enunciemos o que deveria ser óbvio: os organismos técnicos estudam, informam e aconselham; quem tem legitimidade decide; o eleitor vai avaliando perante o desfilar das opiniões contraditórias (porque tudo isto deve ser público), e em devido tempo os resultados contribuirão para uma opinião pública que se vai fazendo; e, no fim, o eleitorado escolhe. Mal muitas vezes, senão quase sempre. Mas a democracia não é o regime dos que raramente se enganam e nunca têm dúvidas (expressão injustamente atribuída a Cavaco, parece, mas que lhe cabe bem), é aquele em que ninguém detém o poder sem consentimento expresso do eleitor e este goza de um certo número de liberdades intangíveis que o habilitam a formar opinião.

O comité de especialistas terá certamente em devida conta os níveis da dívida pública e do endividamento do país para com o estrangeiro, a evolução da situação económica e social do país com as políticas vigentes, a informação disponível sobre a natureza expansionista ou contracionista da política monetária do Banco Central Europeu (BCE), as previsões económicas internacionais e as regras orçamentais europeias.

Terá. O Governo, responsável pela proposta de Orçamento, também. Com a diferença que não é o técnico de contas que decide a política da empresa, um facto comezinho que Cavaco, que nunca teve um respeito mais do que teórico pela figura do patrão, nunca foi verdadeiramente capaz de entender.

Vem a seguir, finalmente, um argumento de peso: o controle da moeda e a competência para fixar as taxas de juro foram transferidos para o Banco Central Europeu, coisa muito mais importante do que a fixação do valor do saldo do Orçamento. Sem dúvida. Porém: essa transferência reuniu a aprovação, e reúne ainda hoje, da maioria esmagadora do eleitorado e dos deputados. Maioria, portanto, qualificada, a mesma que se requer para a revisão da Constituição. Como é aliás relativamente pacífico que os bancos centrais tenham autonomia que lhes permita controlar a inflação, que é um fenómeno dissolvente da racionalidade económica e penalizador sobretudo dos pobres. Invocar o tratado de Maastricht (sobre o qual tenho não poucas discordâncias, mas isso não vem ao caso) a este propósito é o clássico caso do passo maior do que a perna. Quer Cavaco retirar competências à AR e transferi-las para um senado de técnicos de contas? Muito bem, o PSD (e alguns mais, talvez) que inclua isso na futura proposta de revisão da Constituição.

Vem a seguir uma lista pertinente (e mesmo assim não exaustiva porque o artigo ficaria demasiado longo) das malfeitorias do Governo socialista, alegadamente encobertas pela propaganda em torno das “contas certas”. O que Cavaco não prova, nem poderia provar porque não há uma relação de causalidade, é que qualquer desses desastres teria sido evitado se o tal comité de anciãos (se é que lá no meio não haverá uns moços ainda com acne, saídos de fresco dos bancos da faculdade) tivesse estatuído que o saldo orçamental deveria ser assim ou assado.

Estranho caso: uma das medidas da mediocridade da nossa vida pública é que sempre que Cavaco fala o mundo oficial estremece. O seu tempo foi um de esperança e progresso, o de agora é de conformidade e arrastar de pés. E esse capital administra-o, e faz bem, para apoiar o seu partido de sempre. Não fora pior, porém, que Cavaco, em questões de regime, consultasse uma qualquer unidade técnica de apoio antes de se pronunciar; e que, em vez da suficiência que lhe sobra, tivesse alguma humildade que lhe faz falta.

* Publicado no Observador

A reacção do PS ao discurso de Cavaco Silva

jpt, 24.05.23

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Cavaco Silva foi contundente nas suas críticas ao governo e ao (actual) PS. Também contundente foi a resposta institucional do PS, chegada pela voz do seu secretário-geral adjunto, João Torres: entre outros argumentos desvalorizou os argumentos do ex-presidente a efeitos da sua triste condição psicológica, que o terá conduzido à "agressividade e violência verbal" intentando uma "lição de moral" que o PS repudia como sendo "inaceitável". E mais ainda, considerando que Cavaco Silva "perdeu o sentido de Estado que se exige".

Eu sorrio. Nunca votei Cavaco Silva nas eleições presidenciais. Nem nas legislativas votei no partido que ele presidia - aliás, na vida votei 2 vezes no PS, em 1991 tentando contribuir para evitar a sua recondução como primeiro-ministro, em 1995 avesso à continuidade do "cavaquismo" já sem Cavaco. Mas se sorrio nem sequer é por esta patética pantomina de se querer impedir os ex-presidentes de opinarem politicamente - ao invés do que Mário Soares, figura tutelar do PS, sempre fez (tal como aqui lembrei e até o "Público" refere). Pois o motivo maior do meu sorriso é outro: o actual secretário-geral adjunto do PS, João Torres, acusa Cavaco Silva de ter perdido o exigível sentido de Estado. Mas há três anos Torres era secretário de Estado - função à qual se presume uma filiação ao tal "sentido de Estado". E intentou obter o destacamento para as funções de seu motorista de um capitão do Exército, ainda por cima seu companheiro / namorado. (Sobre o patético caso botei aqui no DO o postal "O capitão motorista").

Entenda-se, o relevante disto nem é o facto de um tipo içado a secretário de Estado querer cooptar um capitão do Exército como seu motorista, ainda por cima tendo com ele uma relação de cariz afectiva-sexual. E de com esse "currículo" ter o desplante de vir refutar "qualquer lição de moral" de outras forças políticas ou invectivar a "falta de sentido de Estado" de outrem.

De facto o verdadeiramente relevante deste caso é que o PS de António Costa escolhe um tipo destes para suceder à actual ministra Ana Catarina Mendes no posto de secretário-geral adjunto, alguém que tem este "sentido de Estado", esta impudicícia. Sim, alguns poderão querer desculpar/compreender João Torres, atribuindo-lhe o desvairo a causas de amor ou fervor sexual. Mas não chega. O que fica é que o PS escolhe para um posto desta relevância um tipo que entende a política como implicando que um posto governativo lhe permite destacar como motorista o capitão de quem é amante. E que tem o atrevimento agora de vir perorar sobre "o sentido de Estado" alheio.

Por mais Galambas que por aí andem não há outro exemplo maior do estado a que chegou este PS...

Não é que esteja com saudades

João Sousa, 22.05.23

Com a sobranceria de uma casta que sempre olhou para o "filho do gasolineiro" como um intruso na sua soirée, o PS reagiu pavloviamente ao mais recente discurso do "homem de Boliqueime". Contudo, notei a ausência de uma das suas vozes mais habituais nestes trabalhos de sapa: Ana Catarina Mendes. Na verdade, já não a vejo ou ouço há semanas. Fui eu que tive sorte, ou ela anda a resguardar-se depois do fiasco "parecer"?

Ascender de quase nada a quase tudo

Cavaco Silva

Pedro Correia, 15.06.22

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Bastou um artigo de jornal e uma entrevista televisiva para se perceber, por contraste, o imenso vazio do principal partido da oposição. Cavaco Silva preencheu-o com a acutilância que já lhe conhecíamos de outros momentos. Incluindo aquele em que bastou um texto seu no Expresso sobre a «má moeda» para deitar por terra o precário executivo de Santana Lopes, no final de 2004.

Nessa altura, convém lembrar, Cavaco foi levado em ombros pelos mesmos que agora se apressaram a denegri-lo nas redes, em socorro de António Costa. Alguns, incorrigíveis, voltam a falar dele com indisfarçável preconceito social. Por ser da província, manter cerrada pronúncia algarvia e ter cumprido o ensino secundário numa escola técnica.

 

Costa, com instinto apurado, reagiu com esperteza. Visado nas palavras daquele que ocupou o palacete de São Bento entre 1985 e 1995, acusado de camuflar a ausência de espírito reformista com a espuma mediática debitada pelo seu aparelho de propaganda, o primeiro-ministro revelou que tenciona homenagear Cavaco em 2025, assinalando o 40.º aniversário da subida ao poder do professor de Boliqueime.

Bem pode fazê-lo: iniciou-se aí a década em que Portugal mostrou melhores indicadores económicos em democracia. Quando o PIB nacional chegou a crescer 7% em dois anos consecutivos, houve convergência real com os padrões europeus e a nossa economia se libertou do garrote imposto pela versão original da Constituição. Enquanto terminava o inaceitável monopólio da televisão pelo Estado, permitindo-se a existência de canais privados, e os reformados e pensionistas ganhavam acesso ao 14.º mês já auferido pelos trabalhadores no activo. Isto ajuda a compreender as duas inéditas maiorias absolutas conquistadas então pelo PSD.

 

Aníbal António Cavaco Silva – com duas outras maiorias no seu currículo, como candidato à Presidência da República, em 2006 e 2011 – tem hoje, aos 82 anos, suficiente autoridade moral para indicar a Luís Montenegro, recém-eleito 19.º presidente do PSD, qual o caminho a seguir.

Ao contrário do que aconteceu durante quatro anos sob a errática batuta de Rui Rio, o partido «deve ser muito claro na identificação do adversário político: o PS e o seu governo», sem se desviar por trilhos secundários. Para que Portugal «deixe de ser um país de salários mínimos».

 

Cavaco dispõe de autoridade noutro plano, ainda com maior significado. Por ser a prova viva de que o elevador social pode funcionar entre nós. Afinal de contas, foi o nosso primeiro – e até agora único, num quadro de sufrágio universal – Presidente da República civil não oriundo das endogâmicas famílias da classe média-alta alfacinha que há décadas se revezam nos circuitos de decisão. «Quem é o gajo?», perguntava Mário Soares quando ele ascendeu à presidência do PSD.

Alguém «de fora», que surgiu do quase nada e alcançou quase tudo. Superando com sucesso as delimitações territoriais dos clãs dominantes em Lisboa.

No fundo, tantos anos depois, é isto que alguns não lhe perdoam. No PSD também.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Cavaquistão revisitado

José Meireles Graça, 07.06.22

Cavaco publicou um artigo e o país político atentou.

Caso estranho: o actual presidente exprime-se, tanto oralmente como por escrito, muito melhor do que ele, mas ninguém lembra nada do que tenha dito, antes e enquanto presidente, nem ninguém, salvo jornalistas à cata de material para encher chouriços, lhe presta verdadeiramente atenção. Já a Cavaco, seja para lhe entoar hossanas seja para o execrar, o povo político e comentarial* liga.

A razão comezinha disto é que um malbarata a palavra puindo-a pelo uso excessivo; e o outro encarece-a pela raridade. Essa a diferença óbvia, que não a mais interessante: Cavaco tem uma ideia para o país, sobre os meios para a realizar, e sobre os próximos anos, enquanto Marcelo tem dezassete ideias diferentes, todas porém iguais na sua superficialidade e na sua irrelevância, para as próximas semanas ou, quando espreme as meninges no exercício daquela habilidade política que sempre lhe gabaram, para os próximos meses.

O artigo tem uma toada irónica. E se me tivessem perguntado se Cavaco poderia atrever-se a um tal voo retórico eu diria: o quê, Cavaco a ser irónico? Ora, isso é como meter uma pedra numa gaiola e esperar que ela comece a cantar. Mas não: a ideia base – Costa tem a mesma maioria absoluta que Cavaco teve e dela fará certamente igual bom uso – funcionou.

Cavaco lista as medidas que tomou, em acordo com o PS quando se tratava de fazer o que a Europa achava conveniente, e em desacordo (como, por exemplo, na abertura da televisão à iniciativa privada ou na reprivatização de empresas nacionalizadas) sempre que se tratou de enterrar o lado económico do PREC em aspectos para os quais os nossos futuros patrões europeus se estavam nas tintas.

Diz, e bem, que Portugal no seu consulado se aproximou relevantemente da média europeia, o que nunca mais voltou a suceder. E não diz o que faria agora para reverter a estagnação que é a marca de água dos governos socialistas porque não era esse o escopo do artigo, nem está na luta política como actor de relevo, antes como senador.

A receita que usou no seu tempo não estaria inteiramente esgotada (empandeirar o furúnculo da RTP e o cancro da TAP, bem como olhar de perto para as perdas colossais das empresas públicas de transportes, não seria má ideia, por exemplo) mas não produziria os mesmos resultados porque as circunstâncias do país são hoje muito diferentes. E pergunto-me se seria homem para pôr seriamente em causa o papel central do Estado na economia, reformá-lo no sentido desejável, isto é, aligeirando-o, confiar na capacidade do empresariado nacional, que nunca levou a sério, e pôr em surdina o respeito acéfalo que sempre dedicou a quanto prestigiado economista da sua área se alivia de tretas dirigistas sortidas.

Talvez não e talvez, em parte, sim. Não sabemos, e só saberíamos se, sendo a esperança média de vida de 150 anos, como deveria e um dia será, Cavaco regressasse à luta política para reconquistar o lugar executivo que já foi seu.

Não sabemos mas lembramo-nos que, como presidente, apoiou discretamente Sócrates quando este parecia um reformador; e Passos no bem sucedido processo de recuperação da massa insolvente. Além de torcer o mais que pôde o nariz à emergência de Costa, decerto por ver o que ali estava. Na guerrilha interna do PSD suspeita-se que não apreciava excessivamente Rio e que apoia com discrição o novo líder. Nada de concludente, portanto – Cavaco gosta de pairar acima das coisas porque se acha (e não falta quem igualmente ache, ele há gente com a admiração fácil) o predestinado que nunca foi, o estadista com obra de mérito que independeu das circunstâncias e o guru da economia que só os mais seguidistas dos seus pares reconhecem.

Destes há um que foi seu conselheiro e que deu há dias uma entrevista. Tenho ideia de que sempre que a ele me referi desde que há mais de dez anos comecei a beneficiar a comunidade com as opiniões que generosamente comunico nunca o fiz em termos exactamente elogiosos – não era, nem sou, europeísta, cavaquista, intervencionista, dirigista, nem, menos ainda, graças a Deus, economista.

Mas a entrevista é boa, muito boa. João César das Neves transformou-se num céptico e desencantado e, no correr dela, diz (transcrevo apenas algumas frases, mas quase tudo o resto também mereceria):

Na base disto está uma lógica de curto prazo e uma lógica baseada na descapitalização da economia. Já vinha de trás...

É um país que está parado, com outros a passar-nos à frente.

Outro aspeto até mais importante é as reformas necessárias nos vários setores, da Justiça à Saúde, passando pela Educação, onde fazer reformas significa partir loiça, significa incomodar os que estão.

...a tradição que vem de trás é uma tradição de não mexer nas coisas para não afrontar os interesses instalados.

Uma das explicações para esse atraso é a carga fiscal e regulamentar que pende sobre tudo quanto é atividade económica.

É uma visão de que o desenvolvimento é feito pelo Estado, é feito por estes políticos, por estas entidades públicas, que sabem tudo e sabem como vão fazer. E as empresas estão lá simplesmente para produzir o dinheiro necessário para eles fazerem as suas maravilhas. O PRR é um exemplo disso.

Se o senhor ministro soubesse não era ministro, era rico. A única razão por que é ministro é porque não sabe. Eu sou professor porque não sei, se soubesse estava a fazer e estava caladinho. Não é aos professores da universidade ou aos ministros que nós devemos pedir para fazer o desenvolvimento económico – quem faz o desenvolvimento económico é a economia!

O artigo do Professor Cavaco Silva diz duas coisas muito importantes neste momento político. Primeiro, que é o momento de fazer reformas estruturais – ele fez, no seu tempo – e segundo ponto: fazê-lo em diálogo.

É neste último ponto, e quase só aqui, que mora a minha discordância: César das Neves parece julgar que o PS de Costa sabe o que é necessário fazer e que só o facto de o anterior governo ser minoritário e dependente do apoio das demências à sua esquerda é que impediu políticas amigas do crescimento. Loucura: Basta ouvir Costa discretear sobre o futuro, com aquele cansado paleio das apostas na educação, e na formação, e na inovação, e na economia circular, e na descarbonização, e nos 14, ou 93, ou 118, vectores do PRR, para se perceber que naquela cabeça não mora, nem nunca morou, nenhuma ideia escorreita sobre o país, ocupada que está com a preocupação de satisfazer as clientelas que lhe têm garantido o sucesso eleitoral e sem nenhuma noção, ou sequer intuição, sobre como funciona a economia real. À pergunta sobre a razão pela qual Portugal tem vindo a ser ultrapassado por alguns países do antigo bloco Leste, que já lhe foi feita pelo menos por duas vezes, responde que a história explica – o que é ao mesmo tempo uma confissão de ignorância e de impotência.

É aqui que estamos: as vitórias da esquerda, em qualquer das suas declinações, são a derrota do país. Donde, a vitória deste só virá, se vier, com a derrota completa da esquerda – não vale a pena estar à coca de uma lura de onde se sabe que jamais sairão coelhos. Ademais, o campeão do diálogo está lá na ONU a expender banalidades, e Costa almeja de toda a evidência um lugar longe onde possa pôr a render as suas qualidades de inútil e treteiro, emulando o seu camarada Guterres.

 

*Antes que venha por aí um fiscal da língua informar-me que a palavra não existe, vou já dizendo que, se não existe, devia existir.

Cavaco

José Meireles Graça, 11.04.22

Cavaco nunca entendeu uma realidade que não se pudesse medir, daí que neste artigo diga que António Costa “tem um grau de coragem política muito baixo”. A gente pressente a vontade de atribuir uma classificação – talvez oito, numa escala de zero a vinte, na qual ele, Cavaco, teria um 19, por modéstia, e Medina talvez um 14 – a este atribui, pela sua ação na Câmara Municipal de Lisboa, “um grau médio de coragem política”.

Este elogio é de certo modo reconfortante porque com 14 dispensa-se da oral e portanto fica a esperança de que Medina venha a ser um ministro notavelmente silencioso. Se bem que a alegada coragem se tenha feito notar sobretudo pela fleuma perante a denúncia à embaixada da Rússia de opositores, episódio que Aníbal, aparentemente, encara com equanimidade.

Não percebeu, como de costume, nada do essencial mas, como habitualmente, diz muitas coisas de préstimo. Vamos ao asneirol:

A afirmação pressupõe que Costa sabe o que fazer para pôr o país a crescer, mas não empreende essa patriótica tarefa porque tem medo de “impopularidade no curto prazo”.

Sucede que António Costa tem dado abundantes provas de cultivar a popularidade, com tanto sucesso que em toda a sua carreira de autarca, deputado, secretário de Estado, ministro e comentador, sempre se distinguiu por agradar. Aliás, tirando o notório assassinato do camarada Seguro e outras picardias na sua triunfal marcha para a liderança do PS, não se lhe conhece pendor para granjear com facilidade antipatias. Mais: para as não ter sempre comprou adversários com blandícias, a opinião pública com bonomia, a comunicação social com manipulação, a parte da Oposição de que precisou, quando precisou, com cedências a suportar pelo contribuinte, e votos com propaganda eficaz, respeito por direitos adquiridos e desvelo pelo seu grupo social de eleição (é o caso de dizer) – os funcionários públicos.

O eleitor não vai muito em tretas e elegeu com louvável isenção o simpático António (como dantes o Mário), o antipático Aníbal, o trombudo Pedro, porque em cada momento qualquer daquelas avantesmas pareceu o que mais garantia que ia dar qualquer coisa, não retirando nada, excepto talvez o último, mas tinha desculpa. E isso no curto prazo. Porque projectos, como são quase sempre os que convêm ao país, que prometem um futuro melhor para os nossos filhos mas entretanto põem, ou podem pôr, o nosso presente de funcionários ou pensionistas em risco, t’arrenego.

Passos Coelho, levado pelo idiota Vítor Gaspar, o típico guarda-livros que se imagina gestor da empresa, não teve isto em conta, e por não ter tido feriu interesses de pensionistas quando podia ter lançado mão de expedientes mais hipócritas, mas menos deletérios para a popularidade, como por exemplo o aumento do IVA, o horroroso precedente a que recorreu in illo tempore a cavaquista Ferreira Leite, entre outros antes e depois (a taxa do IVA era, aquando da sua criação em 1986, de 16%, e já sofreu quatro aumentos).

A Costa ninguém faz o ninho atrás da orelha. E portanto no seu consulado tratou de passar irudoid nas pisaduras de todos os dependentes do Estado, directos e indirectos, processo a que chamou de “reversão”. De caminho, aumentou generosamente o número desses dependentes, tanto e tão bem que o partido do Estado, de que falava o saudoso Medina Carreira, é hoje em boa parte do PS. Com isso minou o caminho das oposições, destruindo ao mesmo tempo o módico de racionalidade que o governo Passos Coelho tinha imposto.

Gente ingénua como Cavaco julgará decerto que tudo isso foi apenas calculismo, que agora já não será necessário porque o PCP agoniza e o Bloco debate-se. Julga mal: Costa pensa coisas sobre o país, a Europa, o futuro, o crescimento, e delas nunca fez segredo: basta rever a sua longuíssima (três anos) participação na Quadratura do Círculo, onde hebdomadariamente se aliviava do entulho que em tais matérias lhe povoa a cabeça, para perceber que não foi só o maquiavelismo que lhe norteou a acção: ele acredita no papel central do Estado como promotor, mentor e agente do progresso material, com o sector privado a desempenhar um papel ancilar, e que consiste em navegar no meio das licenças, dos “serviços”, das regulamentações e dos apoios (estes apenas para “bons” projectos). E portanto não apenas encomendou um inenarrável programa para a década, com o qual vai torrefazer o maior bodo que a UE já teve a imprudência de para aqui enviar, como o apresentou de boa-fé ao Parlamento e convidou para ministro da Economia o visionário lírico que o elaborou. Este é, mas infelizmente apenas nas horas vagas, poeta, e já começou a exercer o seu importante múnus de maneira adequada: fala em novos impostos para empresas, uma coisa de que elas estão bastante carecidas.

Este vício básico de raciocínio (Cavaco não entende que, dispondo da mesma informação, não se chegue às mesmas conclusões que ele porque é incapaz de ultrapassar os limites estreitos da sua compreensão) leva a que elenque uma série de medidas para as quais seria necessária “coragem”. Em havendo “coragem” tomam-se as medidas que “economistas de reconhecida competência” (são os mesmos que debitam incansavelmente as mesmas banalidades que ele) recomendam; e em havendo cobardia não. Daí que saliente quatro áreas, a saber a Administração Pública, o sistema fiscal, a justiça e o mercado de trabalho, e em todos estes campos enuncie medidas meritórias, misturadas ocasionalmente com tolices menores (“qualificação e capacitação digital dos servidores do Estado”, a sério? É na prática o velho mantra da formação profissional, gente que finge que ensina gente que finge que aprende coisas que o mais das vezes resolvem alguns problemas criando outros enquanto se torram milhões).

Se fosse comentar as medidas uma por uma o limite da paciência dos leitores, que estimo em três páginas, seria largamente ultrapassado, e de resto abundaria no aplauso, que não me quadra nem com o feitio nem com o que penso da personagem. De modo que remeto para o artigo do Público lincado acima, sendo certo que um governo que tentasse traduzir aquele catálogo de intenções para a prática faria decerto um muito melhor serviço ao país do que este que foi eleito – que não fará nada disso.

Cavaco não responde porém, e nem sequer é provável que ela lhe ocorra, à seguinte pergunta: como se explica que tendo António Costa dado sobejas provas de ser incapaz de resolver o principal problema de Portugal, actualmente, que é ser ultrapassado paulatinamente por sucessivos países num continente que ele próprio se atrasa no mundo, tenha um sucesso esmagador?

Há um colega de Cavaco, Nuno Palma (ignoro se Cavaco acha que pertence ao grupo dos de “reconhecida competência”), que se tem dedicado a investigar as causas profundas do relativo atraso português, que começou algures no séc. XVIII e só começou a ser revertido a partir dos anos cinquenta do XX. O próprio explica esse atraso, entre outras razões, por causa da maldição dos recursos (para quem não conheça a tese: recursos a mais e não a menos), e por mim espero que o autor saia do âmbito universitário e do circuito de conferências para publicar as suas teses em livro sem o jargão da seita porque têm, para dizer o mínimo, muitíssimo interesse.

Por mim, lembraria a Cavaco que a sua autoridade decorre de uma receita de sucesso passado que assentou na novidade dos fundos, que já não existe, e na demolição da camisa de forças esquizofrénica da economia do PREC, há muito defunta. Hoje há uma dívida monstruosa, o hábito deletério de achar que todo o futuro vem do ouro de Bruxelas, como noutros tempos do Brasil, e que a reforma que vale a pena é a do Estado sem lhe tocar nem na dimensão nem na importância – coisas que, em parte, nasceram nos seus abençoados tempos. A que tudo se soma os velhos que duram cada vez mais e os novos que não nascem – coisas que, ao contrário de muitas outras, não são problemas que o sistema político tenha per se criado mas nem por isso deixam de reclamar uma resposta.

O programa de Cavaco é, comparativamente, bom, ainda que banal – o que não é necessariamente um defeito porque se a comunidade dos economistas, a que Cavaco pertence, e que imagina depositária de alguma espécie de lucidez que falha ao comum dos cidadãos, abundar nestas prescrições, alguma coisa sobrará para a consciência pública.

O que não é pequeno serviço. Seria maior se Cavaco explicasse como, num regime democrático que vale pelas liberdades que proporciona, e não pelo bem fundado das escolhas que os eleitores fazem, se convencem estes de que para distribuir riqueza é necessário criar as condições para que esta cresça?

Outro grito de alarme contra a "má moeda"

Cavaco Silva

Pedro Correia, 21.10.21

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Com um artigo de opinião no jornal tradicionalmente mais próximo do PSD, fundado pelo actual militante número um do partido, Cavaco Silva volta a mostrar como se faz política. No tempo e no modo. Repetindo o que sucedera em 27 de Novembro de 2004, noutro texto publicado no mesmo semanário, com os efeitos que sabemos: as suas considerações sobre a má moeda a expulsar a boa moeda, sustentadas em teoria económica como metáfora para a incompetência na política, serviram de demolidor diagnóstico do quadro governativo, abrindo caminho à queda de Santana Lopes, logo empurrado pelo Presidente Jorge Sampaio.

«É chegado o momento de difundir na sociedade portuguesa um grito de alarme sobre as consequências da tendência de degradação da qualidade dos agentes políticos», denunciou Cavaco há 17 anos.

As reacções invertem-se. Quem aplaudiu esse artigo, critica este, surgido há uma semana; quem o detestou, agora entusiasma-se. Aníbal António Cavaco Silva, hoje com 82 anos, mantém-se onde sempre esteve. Falando – neste caso escrevendo – com a autoridade moral de ter liderado o único Executivo que em quatro décadas colocou Portugal num rumo de aproximação real ao desempenho económico da União Europeia. E com a autoridade política de só ele ter obtido quatro maiorias absolutas, em eleições legislativas e presidenciais. Foi o único Chefe do Estado civil do actual regime não oriundo da elite lisboeta. Nesse sentido, reforçou a solidez do sistema democrático, libertando-o de endogamias e aproximando-o do cidadão comum. Homem da província, com raízes humildes, a sua ascensão ao poder comprovou que o elevador social funciona.

«Nas duas décadas do século XXI, a economia portuguesa cresceu à taxa média anual de apenas 0,5%. (…) A produção por habitante de Portugal em 2018 era pior do que em 1995», vem alertar Cavaco. Sublinhando que o nosso país disputa com a Grécia o título de «campeão europeu do agravamento do empobrecimento relativo».

Pronuncia-se com a reputação que granjeou como especialista em finanças públicas e beneficiando da associação empírica do seu mandato governativo aos anos de maior prosperidade nacional. Mas os disparos dirigidos a António Costa funcionam como enquadramento de uma questão mais vasta. Esta intervenção do ex-Presidente tem outro destinatário, aliás nunca expressamente mencionado no artigo: o PSD. Cavaco não se limita a criticar o Governo socialista: reivindica uma candidatura alternativa à liderança dos sociais-democratas. No contexto actual, é um apelo óbvio à entrada em cena de Paulo Rangel.

Existe hoje «uma oposição política débil e sem rumo, desprovida de uma estratégia consistente de denúncia dos erros, omissões e atitudes eticamente reprováveis do Governo», escreve o antigo Chefe do Estado. Ninguém precisa de explicador para perceber o nome do visado.

Cavaco, exímio xadrezista político, assume-se aqui como a verdadeira voz da oposição – papel que Rui Rio sempre recusou desempenhar. Agora, mesmo que o quisesse, já iria tarde.

 

Texto publicado no semanário Novo

Cavaco: urge reconstruir o PSD

Pedro Correia, 08.10.19

«Como social-democrata com fortes ligações à história do PSD, o resultado obtido pelo partido não pode deixar de me entristecer.»

«A tarefa mais importante e urgente que o PSD tem agora à sua frente é a de reconstruir a unidade do partido e de mobilizar os seus militantes.»

«Trazer ao debate das ideias e ao esclarecimento e combate político os militantes que, por razões que agora não interessa discutir, se afastaram ou foram afastados, como é o caso de Maria Luís Albuquerque, uma das mulheres com maior capacidade de intervenção que conheci durante o meu tempo de Presidente, e muitos outros.»

«Todos são necessários para ir ao encontro dos portugueses, ouvir os jovens, explicar as propostas do partido para resolver os problemas do País e fazer do PSD um partido verdadeiramente nacional.»

 

Reflexões de Cavaco Silva - hoje difundidas - a propósito da hecatombe eleitoral do PSD, que no domingo obteve o pior resultado em legislativas dos últimos 36 anos.

A versão integral pode ser lida aqui.

Sobre o livro de Cavaco

Rui Rocha, 18.02.17

Considero o timing e o conteúdo (li em diagonal, saltando de capítulo para capítulo) no mínimo questionáveis. Desde logo, porque nada acrescenta à imagem daquele que parece ser o seu alvo principal. José Sócrates é um trambiqueiro volúvel, manipulador, irascível e perigoso? Obrigado, já sabíamos. Mas, sobretudo, porque é do senso comum que uma troca de argumentos com Sócrates é mergulhar na lama e só serve para dar palco a um cadáver político. Nestes casos, vale sempre a pena ter em atenção o conselho de Mark Twain: nunca discutas com um cretino; ele arrasta-te até ao nível dele e depois vence-te em experiência.

Que não lhes falte o detergente

Sérgio de Almeida Correia, 07.09.16

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Num dia lê-se isto, noutro dia mais qualquer coisa sobre o mesmo assunto. Para compor o ramalhete, antes que se acabe o detergente, vêm mais umas histórias de tarar. Mas era preciso descer tão baixo? 

Há gente com muito menos educação, que não sabe para escrever livros, não tendo a petulância dos pavões nem a obrigação de preservar as instituições da república, que na hora do divórcio faz o mesmo com muito mais nível. Mais uma tristeza para os portugueses somarem a dez anos de vexame. 

O homem imperfeito

Pedro Correia, 09.03.16

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Releio a previsão feita em 2010 por um politólogo doméstico sobre o "maior risco" de um Cavaco Silva em vias de reeleição para um segundo mandato em Belém: o reforço da componente presidencial do sistema político português. Como tantas vezes acontece, esta previsão falhou. Cavaco foi, pelo contrário, o Chefe do Estado com uma visão mais restritiva dos seus poderes, reconfigurando o imperfeito "semipresidencialismo" desenhado na Constituição. Dez anos depois de ele ter tomado posse para o primeiro mandato, o Parlamento funciona hoje como centro da nossa vida política, um pouco à semelhança do que sucedia na I República - característica que os constituintes de 1976 procuraram evitar. Com manifesto insucesso, como se comprova.

Cavaco Silva não foi cesarista nem bonapartista, como tantos temiam: nenhum dos seus defeitos rondaram por aí. A incapacidade de estender pontes para além da sua família política de origem e uma chocante insensibilidade social, tornada bem evidente na lamentável declaração que proferiu em 2012 sobre a suposta falta de recursos do casal presidencial para fazer face às despesas foram os pontos mais negativos do consulado cavaquista em Belém. Um longo período que, somado à década de permanência em São Bento como primeiro-ministro e ao ano em que foi ministro das Finanças com Sá Carneiro, tornaram Aníbal Cavaco Silva o cidadão durante mais tempo em funções em cargos políticos no actual regime.

 

Tímido, ensimesmado, sem dotes oratórios nem carisma pessoal, Cavaco nunca deixou no entanto de manter uma sólida legião de adeptos - aliás expressa nas quatro eleições que venceu por maioria absoluta, em 1987, 1991, 2006 e 2011, meta que nenhum outro político alcançou entre nós. Consequência da sua austera e esquálida figura, que tão bem caiu inicialmente no imaginário lusitano, da reputação que granjeou como especialista em finanças públicas e da associação empírica do seu mandato governamental aos anos de maior prosperidade da anémica economia nacional, em boa parte fruto da nossa adesão à Comunidade Europeia e aos 110 mil milhões de euros em fundos estruturais que ela até hoje nos proporcionou. A primeira "década cavaquista" tornou o País irreconhecível, facto que a posteridade não deixará de reconhecer.

Faltou-lhe, já como inquilino de Belém, estabelecer a ligação afectiva com os portugueses que muito esperam sempre de um Presidente, como sucedâneo dos monarcas ancestrais que deixaram bom rasto na memória colectiva. Relação ainda mais necessária em tempo de penúria financeira e crise social - aqui Cavaco faltou à chamada e muitos não lhe perdoaram a frieza e a distância que manifestamente revelou.

 

Creio no entanto que os historiadores futuros preferirão salientar, do seu duplo mandato em Belém, o facto de representar a ascensão do homem comum ao supremo patamar da hierarquia política portuguesa, devidamente mandatado pelo sufrágio universal. Cavaco Silva foi o primeiro Presidente civil não oriundo das endogâmicas famílias políticas da classe média-alta lisboeta que em regra se vão revezando nos circuitos da decisão. Homem da província, com raízes humildes, funcionou como personificação viva das virtudes e defeitos da democracia, um sistema em que o elevador social funciona e supera as delimitações territoriais dos clãs dominantes.

Neste sentido prestou um bom serviço ao regime democrático - incipiente e frágil mas superior a qualquer outro. Por definição, o regime dos  homens imperfeitos. Porque a perfeição, a que tantos aspiram, na política só existe em ditadura.

Confusões

Sérgio de Almeida Correia, 08.03.16

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(Global Imagens)

O Prof. Cavaco Silva, Presidente da República ainda em funções, resolveu assinalar o final do seu mandato com uma visita à nobre e honrada Vila de Cascais.

Os naturais e residentes de Cascais estão-lhe naturalmente agradecidos por esse gesto em final de mandato, em especial porque teve com a sua acção um papel relevante na recuperação de uma parte importante do património histórico e cultural da vila e esse é um ponto que não deverá ser esquecido. Nem esquecido nem confundido com aquela que foi a sua postura ao longo dos seus mandatos.

Escrevo isto porque essa confusão entre interesses próprios, interesses de grupo e o interesse nacional esteve sempre patente e voltou a acontecer na sua última intervenção pública antes de ceder o lugar ao Prof. Marcelo Rebelo de Sousa.

Disse o Prof. Cavaco Silva, e só ele saberá porque teve necessidade de vincá-lo nessa ocasião, que agiu sempre de acordo com a Constituição e de acordo com o superior interesse nacional.

Os factos que de todos são conhecidos desmentem-no em toda a linha. Basta pensar em alguns episódios como os relativos à aprovação dos últimos Orçamentos de Estado, cujos custos para o país em termos políticos, de coesão social, paz e solidariedade intergeracional acabariam por se revelar elevadíssimos e pelos quais ainda iremos pagar durante muitos anos, para se perceber que com excepção dele, de Passos Coelho e do seu anfitrião de ontem, poucos mais no País duvidavam das múltiplas inconstitucionalidades com que contemporizou e que o Tribunal Constitucional se encarregou de ir sublinhando. Ou recordar o mal esclarecido e lamentável caso das escutas, que deverá servir de exemplo à acção de futuros Presidentes para que não se repita. Ou, ainda, as condecorações aos seus correligionários políticos, ou as declarações omissivas que fez sobre as suas relações com o universo SLN/BPN, ou a confiança que deu até ao último minuto a quem não era merecedor dela (Dias Loureiro no Conselho de Estado), ou as queixas que fez sobre o seu nível de rendimentos para poder ter uma vida normal, estas últimas ofensivas da dignidade de milhões de portugueses, para se perceber que o interesse nacional foi no seu espírito e postura institucional objecto de múltiplas e recorrentes confusões.

Se alguma dúvida houvesse sobre a confusão que o Presidente cessante sempre fez entre o interesse nacional e os interesses da sua família ideológica ficariam dissipadas pelo encomiástico discurso de despedida que o anfitrião, vice-Presidente do PSD, resolveu fazer.

Sabendo-se o que hoje se sabe, olhando para os níveis sofríveis de popularidade do Presidente cessante e para tudo o que foi acontecendo, que não pode ser disfarçado pelo convite que lhe foi dirigido para presidir a uma reunião do Conselho de Ministros, só para conforto ideológico e alívio da consciência do homenageado se poderia dizer o que se disse. Como caricatura da acção do Prof. Cavaco Silva enquanto inquilino de Belém seria difícil encontrar palavras mais acertadas.

Aliás, isso acaba por ser inteiramente compreensível e, aqui sim, transparente quando se vê o Prof. Cavaco Silva terminar os seus mandatos como Presidente da República da mesma forma como os iniciou e conduziu: agarrado à sua família ideológica, enfiado numa trincheira com os seus acólitos, a exaltar e justificar a sua própria acção, recebendo os aplausos dos correligionários e confrades.

Para imagem do "superior interesse nacional" esta cena não poderia ser mais apropriada. Uma lástima e mais uma confusão que poderia ter sido evitada neste final de mandato.