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Delito de Opinião

Esta noite sonhei com casamento

Maria Dulce Fernandes, 24.06.22

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Acordou indisposta e ansiosa. Quem sabe nem tenha sequer dormido. Estava cada vez mais pesada e os enjoos e as tonturas atacavam quando menos esperava. 
 
Como ansiava que aquele dia terminasse... 
 
Para quê tudo aquilo, tanta preparação, tanta gente, tanta confusão? 
Bastar-lhe-ia ele, ambos de mãos dadas, olhos brilhantes e fé no futuro.
 
Mas não. Não podia sair-se assim tão airosamente depois do infame pecado da luxúria. A vergonha, o desrespeito, a rebeldia... A família olhava-a de soslaio, balançados ainda na decisão da letra escarlate ao peito. Não fora o receio de que o estigma da infâmia os alcançasse também, certamente a marcariam ostensiva e garridamente para poderem lavar a honra na praça pública, na boca das comadres, dos alcoviteiros e alcoviteiras profissionais, dos que dizem cobras e lagartos e dos outros que, por não terem o que fazer, tecem teias de vulgaridade, onde a ignomínia e a maldade se entrelaçam em pontos laboriosos e intrincados e onde a vida dos demais ganha a forma que as línguas viperinas moldam no asco das mãos que gesticulam imparáveis, apontando a dedo todos os caídos em desgraça.
 
Deixou que a levassem no torvelinho da insanidade. Fez-se formosa e segura, afivelou um sorriso complacente e deixou-se guiar pelo braço do pai, ingénuo pai aquele, que a olhou com a adoração que só a ignorância poderia permitir.
 
Ele esperava, traído pelos nervos, olhos brilhantes com lágrimas mal contidas, igualmente desejoso daquele ocaso. Ouviram surdos todas a palavras, repetiram-nas como sorridentes bonecos de corda a quem se puxara a argola presa ao fio que lhes pende das costas. Trocaram juras mecânicas. Sorriram-se cúmplices. Sorriram-se cúmplices durante todo o tempo em que a luz brilhou, até aquele momento em que a lua rasgou as nuvens e se perderam nos braços um do outro, sem fingimentos, nem falsidades. Eram finalmente eles próprios, finalmente sós, os três. Finalmente felizes. 
Passaram 42 anos. Ela sorri com aquela conformação agridoce, à falta que lhe fazem os que já não estão. Pensa nos que virão e aí o sorriso rasga-se com o brilho fulgente de milhares de sóis.
Jurou nunca julgar, criticar, amesquinhar quem pecasse por amor. Até porque amar não é pecado, é a suprema alquimia, a única criação do homem que vale realmente a pena.
 
Comigo foi assim e ainda é. Neste dia do mês dedicado à noivas, deixo esta memória do princípio de uma vida cheia.

Contra Todas as Expectativas

Francisca Prieto, 10.02.18

Vens de uma reunião de book club onde se discutiu literatura francesa, ou melhor, onde a literatura clássica francesa serviu de pretexto para se chegar a temas tão actuais como a discrepância social, a liberdade sexual ou a importância da educação.

Numa época em que o tema da igualdade de géneros se instalou em cima da mesa, dás por ti a apontar o dedo ao mito do príncipe encantado. Insurge-se uma das convivas, criticando que se trata de uma questão cultural, que as meninas das sociedades ocidentais ainda crescem induzidas a sonhar serem salvas por enxovais e cortinados.

Gera-se o debate, atiram-se argumentos irrefutáveis para um lado e para o outro, cresce a polémica no meio de vozes acesas, até que, por fim, as oito mulheres sólidas, independentes e de mente aberta, acabam por concordar que sim, que não há qualquer dúvida de que uma rapariga quer, pelo menos uma vez na vida, enfiar-se dentro de um vestido para fazer juras de amor eterno.

 

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O casamento em anos de cão

Patrícia Reis, 30.03.14

O amor não é o dos romances, as senhoras não têm veias azuis e desmaiam, caem à cama com doenças do foro pulmonar.

Os homens não andam de chapéu, não frequentam uma tertúlia, não se levantam quando uma senhora entra na sala.

Alguns mantêm amantes. As mulheres também os têm.

Dito tudo isto, na verdade um pouco banal, podemos concluir que nos dias correm, um ano de casamento equivale a um ano de vida de cão.

Isto quer dizer que, apesar dos meus 43, tenho quase 70 de casada. Uma raridade? Sim.

Há dias, um miúdo dizia, no recreio, que o fulano X era bestial, "já foi meu pai". O outro miúdo pareceu aliviado.As segundas e terceiras famílias são outra banalidade.

A crise financeira implica connosco, com o tudo que existe nas suas vidas. A crise emocional é provocada por nós e por esta permanente vertigem em que vivemos: ligados ao telemóvel, ao site, ao blogue, ao facebook, ao twitter.

Um casal jantava, há uns dias, sozinho, num restaurante dito "da moda". Ambos de telemóvel na mão.

Pensei: bom, devem estar à espera da comida. O repasto chegou. A animação com os telemóveis continuou.

Lembrei-me então do livro de Luísa Costa Gomes, Ilusão ou o que lhe queiram chamar (D. Quixote). O protagonista tem duas famílias, sendo que uma é avatar, ou seja, vive num jogo chamado Second Life. Triste?

Não sei se a maioria das pessoas o sente com tristeza, tenho a certeza de que é um belo livro, isso tenho.

Estar casado e manter um casamento é exigente e mais difícil do que conseguir um emprego ou promoção (isto se quisermos entender por emprego qualquer tipo de emprego, claro está). Todos os dias temos de escolher amar aquela pessoa, mesmo que já não a possamos nem ver? Não, nada de tão dramático. O casamento que dura é aquele em que as duas pessoas não se abandonam. Virar costas é simples. Ficar é que é mais implicado.

Tem dias, se quiserem.

Dizia-me uma poetisa que tudo isto é uma consequência evidente da libertação das mulheres e ainda bem. Que os casamentos arranjados, que os casamentos de 50 anos com manadas de sapos por engolir já não existem. Não respondi. Os casamentos brancos, com manadas de sapos e outras espécies, ainda existem. A taxa de divórcio diiminuiu. Por causa da crise. Há mais queixas de abusos.

Há mais silêncios. Silêncios maus.

O bom silêncio? É para aqueles que não se esquecem de dizer tudo.

Questões democráticas e jurídicas

João André, 27.06.13

Antes de mais o meu aviso: entendo que os casamentos entre pessoas do mesmo sexo devem ser tratados exactamente da mesma forma que os casamentos entre pessoas de sexo oposto. Motivos para isto podem ser discutidos noutra altura. Neste momento quero apenas levantar uma questão em relação à decisão do Supremo Tribunal dos EUA.

 

Ora se bem entendo, o Supremo Tribunal declarou que, nos estados onde o casamento homossexual já existe, é inconstitucional remover esse direito. A decisão, mais uma vez de acordo com o que entendi, não declara o casamento homossexual como legal a nível federal, antes devolve qualquer decisão sobre o mesmo aos órgãos legislativos estaduais.

 

Aquilo que me faz confusão é o facto de o Supremo tribunal declarar que uma decisão na direcção de aceitar o casamento homossexual já não é reversível, mesmo que seja essa a vontade dos eleitores (como no caso da Proposta 8 na Califórnia). Pelo que entendo, a Constituição é um documento tão poderoso no sistema legal americano que se sobrepõe (desde que os seus guardiões - o Supremo tribunal - assim o entendam) a qualquer vontade democrática.

 

Longe de mim querer que o casamento homossexual deixe de ser legal, mas por outro lado preocupa-me (pouco, mas ainda assim alguma coisa) que a principal democracia do mundo tenha um texto por tão sagrado que se sobrepõe ao sistema político que consagra. Alguém é capaz de me explicar esta - aparente para mim - contradição?

Faraway, so close

José António Abreu, 14.03.13

Quero dizer que ele não a amava? De maneira menhuma. Ele amava-a; de certa forma era-lhe devotado. Mas não conseguia alcançá-la, e sucedia o mesmo do lado dela. Era como se tivessem bebido uma qualquer poção fatal que os manteria afastados para sempre, apesar de viverem na mesma casa, comerem à mesma mesa, dormirem na mesma cama.

Como seria – sentir desejo, ansiar por alguém que está ali mesmo em frente aos olhos, dia após dia? Nunca o saberei.

Margaret Atwood, The Blind Assassin. Tradução minha.

 

Seria um casamento normal, daqueles que não evoluem para o ódio, apenas para a incapacidade de comunicar, na sequência do desvanecimento dos (ilusórios, de resto) interesses em comum.

Agosto (1) casamenteiro (37)

João Carvalho, 01.08.11

Bolo de casamento "Animação na Crise".

Este bolo é próprio para casamentos em que os noivos deitam contas à crise e não querem investir numa grande boda, mas querem garantir uma festa animada. Basta assegurar uma distribuição permanente de espumoso nacional e deixar andar. A única dificuldade a resolver é o transporte à saída, porque os convidados não hão-de estar em condições de conduzir e os transportes públicos em crise passaram a estar pela hora da morte.

Novembro (1) casamenteiro (30)

João Carvalho, 09.11.10

Bolo de casamento "Os-apressadinhos-do-sado-maso".

Este bolo parece indicado para apreciadores de técnicas sado-masoquistas que estão cheios de urgência? Puro engano: as aparências iludem e o nome que lhe deram é apenas uma maldade. Trata-se da criação saudosista de um pasteleiro que conheceu a noiva muito antes do noivo e sabe que ela é sonâmbula.

Outubro (4) casamenteiro (27)

João Carvalho, 24.10.10

Bolo de casamento "Corta-mais-aqui".

Como se percebe, trata-se de um bolo cuja cobertura só pode ser acabada depois de escolhido o vestido da noiva e entregue o modelo ao pasteleiro. A opção por este bolo é tomada por noivos à antiga, daqueles em que tudo há-de acontecer apenas no dia (ou noite) do enlace. Por isso, durante a boda vão ensaiando: corta um pedaço aqui, rasga mais acolá, tira daquele lado...

(A meias com a Ana Vidal)

Outubro (3) casamenteiro (26)

João Carvalho, 12.10.10

Bolo de casamento "A Grande Despedida".

Este bolo é preferido pelos noivos que não fizeram, cada um por si, a tradicional despedida de solteiro. Chegada a hora do enlace, fazem uma despedida conjunta, assegurada pela zurrapa que a cor das garrafas sugere. Ao fim de umas horas, com a dor de cabeça da recuperação e com a despedida culminada num adeus, esquecidos dos votos e de tudo o que aconteceu, cada um parte para seu lado e vivem felizes para sempre.

(A meias com a Ana Vidal)