O governador insensato
Por mais que tente não consigo perceber as razões para que um indivíduo como Carlos Costa, um burocrata competente, sem que isto queira dizer que cumpriu sempre bem o seu papel, e que para todos os efeitos serviu o país, em pleno período de reforma, em vez de aproveitar o tempo para estar com a família e os amigos, gozar os rendimentos, passear, ler bons livros, ver melhor teatro e cinema, visitar museus, instruir-se, resolva fazer um livro a meias para, pretensamente, apresentar as suas memórias.
Depois de tudo o que aconteceu, das suas exibições no parlamento, do que disse ao que fez e ao que não fez e devia ter feito, o bom senso recomendaria que procurasse ser o mais discreto possível, antes que a borrasca chegasse e os vidros começassem a estalar.
Podem chamar-lhe um livro de memórias, autobiografia, ou outra coisa qualquer. Para o caso é absolutamente indiferente. Porque na verdade não se trata de nenhum livro de memórias. E é pena. Com o que terá visto e aprendido ao longo da vida, com a sua experiência e pelos lugares por onde andou, o senhor governador podia, e devia, ter apresentado algo muito melhor. Ou ter ficado quieto, que teria sido o mais recomendável, a ver se os portugueses se esqueciam dele e eram poupados ao que apresentou.
Trata-se, efectivamente, de uma tentativa de composição e aperfeiçoamento da sua imagem e de um claro ajuste de contas para a posteridade. Pena que não lhe tivesse saído bem. Não é, pois, um livro de memórias. Que ninguém vá ao engano.
A minha opinião vale o que vale, mas a gravidade e a desfaçatez do que ali se registou é de pasmar.
No capítulo 5 (A passagem pela Caixa e o regresso à Europa), a propósito do seu tempo na Caixa Geral de Depósitos, que continua a ser uma referência do que não devia ser, a dada altura escreve-se o seguinte:
"Macau foi outra conversa. A CGD detinha o Banco Nacional Ultramarino (BNU) que, por via do acordo de regresso do território de Macau à soberania chinesa, se mantinha como um banco emissor de moeda — um fator de grande importância nas relações de Portugal com a China desde 1901. Sendo Carlos Costa o presidente do Conselho de Administração do BNU, era a sua assinatura que aparecia nas notas da pataca macaense. Costa vai dar grande importância a Macau, por ver aí uma possibilidade de explorar o importantíssimo mercado chinês devido ao prestígio do BNU na comunidade macaense. Por seu impulso, a CGD abre um escritório de representação na praça financeira de Xangai. Queria ir mais longe, mas recebeu um conselho para não o fazer.
«Recordo-me de que na altura um importante empresário, cliente do BNU Macau, que fazia parte do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês [76] e da Assembleia Popular Nacional da China[77]), me disse: “Tenho uma grande dívida de gratidão para com o BNU/CGD que acreditou e financiou a minha família em tempos muito difíceis e considero desejável a expansão da presença do BNU na China. Mas ainda não estão criadas as condições para a CGD ir para Pequim porque a capital sofre de vários problemas: corrupção, especulação imobiliária, penetração nos meios suburbanos do narcotráfico alimentado por redes oriundas de um país vizinho e problemas ambientais, a que acresce um sistema jurídico pouco seguro.” Depois de cuidada ponderação das informações recolhidas, optou-se por uma entrada gradual e foi solicitada autorização para a abertura de um escritório de representação em Xangai, que foi inaugurado em 2006. [78]»
Carlos Costa nunca o confirmou, mas o empresário em questão será o atual chefe do Governo de Macau, Ho Iat-seng (também conhecido como Ho Teng-iat), que na altura era o CEO do grupo industrial Ho Tin. Posteriormente, problemas diagnosticados por aquele importante dirigente chinês, nomeadamente a corrupção e o crescente tráfico de droga nas grandes cidades, começaram a ser duramente combatidos pela liderança do presidente Xi Jinping.»"
Depois, nas notas finais do capítulo, escreveu-se o seguinte:
"76 O Partido Comunista Chinês tem três órgãos centrais de decisão que podem ser hierarquizados da seguinte forma: o Comité Permanente do Politburo Central (7 membros), o Politburo (25 membros) e o Comité Central (376). O Comité Permanente é o órgão mais poderoso do Partido Comunista Chinês.
77 Também conhecido por Congresso Nacional do Povo. É a sede do poder legislativo da República Popular da China e os seus membros são designados pelo Partido Comunista Chinês.
78 Entrevista a Carlos Costa, 22 de julho de 2020."
Quando li esta passagem e as notas citadas fiquei logo elucidado sobre o grau de rigor do livro. Numa obra com a importância que lhe foi atribuída pelo autor, pela comunicação social e por antigos governantes, fiquei pasmado com a falta de rigor e a dimensão das asneiras. Não admira que a sua gestão no Banco de Portugal tivesse, e continue a dar, o brado que deu. Se o rigor do livro foi o mesmo que utilizou na gestão do Banco de Portugal ficamos todos esclarecidos.
Acontece, que eu saiba, que nenhum empresário de Macau, até hoje, fez parte do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês, que é só o órgão mais importante do Partido e do próprio Estado chinês atenta a submissão deste e da própria Constituição chinesa ao PCC. Em 2005, na sequência do 16.º Congresso do PCC, era composto por nove membros (Hu Jintao, Wu Bangguo, Wen Jiabao, Jia Qinglin, Zeng Qinghong, Huang Ju, que faleceu no decurso do mandato, em 2007, Wu Guanzheng, Li Changchun e Luo Gan), e nenhum deles se chamava Ho Iat Seng ou era de Macau.
O actual Chefe do Executivo nunca teve estatuto para fazer parte desse órgão. E se lá estivesse estado e depois se tornasse Chefe do Executivo de Macau, isso corresponderia a uma grande despromoção. Ninguém esclareceu o dr. Carlos Costa e o autor do livro sobre estes detalhes.
Também não passaria pela cabeça de ninguém, embora tivesse passado pela do "biografado" e pela do autor do livro, que um membro do Comité Permanente do Politburo do PCC andasse "à conversa" com Carlos Costa, sabe-se lá em que língua e em que circunstâncias (no Clube Militar, entre croquetes?; numa sauna?), dando-lhe conselhos sobre quando e onde abrir sucursais, filiais ou eventualmente escritórios de representação do BNU na China.
Ainda menos que esse membro da Comissão Permanente do Politburo do PCC lhe confidenciasse que o BNU não devia abrir nenhum escritório em Pequim porque "a capital sofre de vários problemas: corrupção, especulação imobiliária, penetração nos meios suburbanos do narcotráfico alimentado por redes oriundas de um país vizinho e problemas ambientais, a que acresce um sistema jurídico pouco seguro."
É claro que, logo a seguir, em 2006, o BNU foi abrir um escritório em Xangai, onde não havia corrupção, nem especulação imobiliária, nem narcotráfico, e, presume-se, o sistema jurídico seria muito mais seguro do que em Pequim.
Há mais coisas, embora não seja aconselhável continuar. O tempo de quem lê é precioso e é preciso respeitar quem vem a este blogue dar-se ao trabalho de me ler.
Em todo o caso, por aquela parte já se percebe que o grau de pesporrência, delírio e ignorância do senhor governador sobre algumas matérias está ao nível de um antigo primeiro-ministro a quem ele também se refere, e a falta de conhecimento do autor do livro sobre o PCC, sobre o qual se permitiu escrever, "esclarecer" e publicar, dizem tudo sobre a qualidade da "obra" que o dr. Marques Mendes (uma sumidade com elevado grau de coerência nas suas análises ao longo dos anos) apresentou, tecendo os maiores encómios, e a cujo lançamento antigos primeiros-ministros e um ex-Presidente da República se deram ao trabalho de assistir.
Não sei o que o Governo de Macau e a RPC irão dizer sobre as revelações do senhor governador em relação a um governante estrangeiro em funções. Ou o que pensarão o MNE e o embaixador de Portugal na RPC sobre isto. Nada disso é da minha conta, embora me pareça bem que todos leiam as "memórias" do senhor governador. Não acreditem é em tudo o que lerem.
Quanto ao mais, toda aquela gente que é visada que se queixe da sua falta de senso. Que tristeza. Pobre país.
[Dizem-me que foram dois, não apenas um ex-PR que lá esteve. Ainda pior.]