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Delito de Opinião

Um banco com vista: Caneiras

Ana CB, 27.11.24

Manhã quente de Verão. O rio leva pouca água. Aqui e ali nota-se a sombra clara da areia por baixo do azul líquido, ou revela-se um tronco preso no leito, que a fraca corrente não consegue arrastar; até os mouchões mais rasos estão visíveis e pujantes de erva verde. Sob a copa larga de um salgueiro, o banco de madeira sem encosto é repousa-pés ideal para quem precisa de matar o tempo até à hora de almoço, pese embora o assento escolhido não seja o banco mas sim uma cadeira de campismo. É domingo, e para quem aqui vive pouco mais haverá para fazer do que contemplar a paisagem e aproveitar a sombra para fugir do calor.

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O rio é o Tejo e ao lugar deram-lhe o nome de Caneiras. Fica a uns curtos cinco quilómetros a sul de Santarém e é o aglomerado sobrevivente e ampliado da aldeia avieira ali fundada há mais de um século. O assentamento original terá sido destruído pelas cheias de 1941, e grande parte das construções que vemos hoje também já sofreram a adulteração intrínseca à “modernidade”; mas ainda se notam muitas características das antigas casas avieiras, e continua a ser habitada por alguns pescadores que não desistem do seu modo de vida: sair para o rio em busca da fataça (tainha), do sável ou da quase desaparecida lampreia.

 

Os nómadas do rio Tejo

 

Não há datas certas, mas estima-se que foi a partir de meados do século XIX (e sobretudo na primeira metade do século XX) que famílias de pescadores da zona de Vieira de Leiria começaram a deslocar-se para as áreas ribeirinhas do Tejo entre Abrantes e a Póvoa de Santa Iria, fugindo aos rigores do Inverno que não lhes permitia procurarem o seu sustento no mar. Trocavam os barcos de mar que usavam na arte xávega por embarcações de traça semelhante, mas bastante mais pequenas – as bateiras, a que os avieiros chamam simplesmente “barco” – fazendo delas a sua casa temporária. Era na bateira que pescavam, comiam e dormiam, usando um simples toldo para se abrigarem. O homem lançava as redes e a mulher remava, além de organizar toda a vida da família e ir vender o peixe às localidades vizinhas, transpondo para o ambiente do Tejo os papéis que cada um desempenhava na sua terra de origem. Era também na bateira que os filhos iam sendo criados e aprendiam as lides da pesca de rio, que lhes garantiria a sobrevivência no futuro, num tempo em que a vida era muito diferente. A embarcação é de tal modo característica e assumiu uma (óbvia) importância tão grande para estas comunidades que, em 2016, a sua construção e uso foram inscritos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, com a indicação da necessidade de salvaguarda urgente.

Inicialmente, estas deslocações eram sazonais, e os pescadores voltavam à Praia da Vieira quando o tempo melhorava. Com o crescimento da família e o cansaço dessas idas e vindas, e porque o Tejo (e também o Sado) lhes proporcionavam peixe o ano inteiro, acabaram por se ir fixando nas margens destes rios – primeiro em simples palhotas feitas de caniço, que crescia à beira de água e era material leve e fácil de encontrar, e depois em casas de madeira, assentes sobre estacas, para evitarem ser inundadas quando o rio transbordava as suas margens. Nasciam as aldeias avieiras (de que já falei no meu blogue).

 

A aldeia das Caneiras

 

A partir dos trabalhos de levantamento feitos até à data, foram identificados cerca de 40 assentamentos de avieiros nas margens do Tejo, a maioria deles já desaparecidos ou completamente em ruínas, como é o caso do Patacão, perto de Alpiarça, que tem dois núcleos ainda visíveis mas já em rápido declínio, apesar das tentativas de preservação que foram feitas até há alguns anos. Entre as aldeias que sobrevivem contam-se o Escaroupim, assumido como ex libris turístico da cultura avieira, Porto da Palha (Lezirão) e Palhota, esta última trazida para a ribalta no romance “Avieiros”, de Alves Redol. O aldeamento das Caneiras, talvez por estar muito perto de Santarém, também tem resistido ao desaparecimento, pese embora a descaracterização e a construção desregulada das últimas décadas.

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A aldeia é um rectângulo com uma espécie de rua principal que desemboca em nenhures, encaixada entre o rio e a estrada de acesso ao mundo exterior. É ao longo desta estrada que se vêem as construções mais modernas, moradias concebidas com mais ou menos gosto, rodeadas de hortas e pequenos pomares. O núcleo mais antigo das Caneiras está bem escondido por trás destas casas vulgares, e até parece que o espírito recatado e quase impenetrável dos antigos pescadores ainda paira por ali – as comunidades avieiras eram muito fechadas, assentes no núcleo familiar e segregadas tanto por vontade própria como por animosidade da população rural, mantendo ao longo dos tempos algum secretismo sobre o seu modo de vida e as suas artes piscatórias.

 

A miscelânea arquitectónica das Caneiras tem tanto de surpreendente como de fascinante. As antigas palhotas palafíticas têm vindo a ser transformadas cada uma à sua maneira. Nas que ainda permanecem elevadas em relação ao solo, as estacas de madeira foram substituídas por pilares de alvenaria. As tradicionais varandas de acesso ao piso superior já quase desapareceram, e poucas construções as mantêm – a maioria das pessoas prefere espaço interior em detrimento do espaço de socialização, uma das funções principais das varandas das casas avieiras. A madeira ainda está bastante presente, em versões de cor escura e variados estados de conservação; são, para mim, as construções mais bonitas da aldeia, algumas realçadas com pormenores em branco ou cores vivas. É nelas que se notam os pontos de contacto com as casas típicas da região de origem dos avieiros, sobretudo as da Praia da Tocha e, mais tenuemente, as da Costa Nova.

Não faltam também os atentados arquitectónicos ao carácter original da aldeia, em que a alvenaria substituiu os materiais anteriormente utilizados, a ponto de agora não passarem de vulgares paralelepípedos com telhado, quase sempre pintados de branco e com as faixas azuis ou amarelas que voltaram a ser, em tempos recentes, populares na construção que se quer fazer parecer tradicional, mesmo quando completamente deslocadas do contexto. Deste mal enferma igualmente a Capela dedicada ao Sagrado Coração de Maria, um edifício desenxabido cuja única desculpa talvez seja o facto de datar de 2006 (embora tenha ares de reconversão de algum edifício anterior).

Num arroubo de imaginação e quiçá influência forasteira, alguém resolveu forrar o exterior de uma das casas com chapa ondulada e juntar-lhe um pormenor americanizado. Não é que seja feio – é só descabido. Prefiro a tinta a descascar e o telhado arqueado de uma outra casa, com a sua chaminé periclitante (as chaminés também são um acrescento moderno nas casas avieiras).

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Na rua principal há também um banco, mas este não tem nada a ver com o da beira-rio. É tosco e torto, tal como o casinhoto que está ao lado, uma espécie de telheiro abrigado para acumular tralhas diversas. Tento imaginar o que terá levado alguém a colocá-lo ali. Talvez para apanhar sol nos dias frios de Inverno? Para conversar com quem passa? Alguém que não tinha nada para fazer e decidiu construí-lo? As questões ficam sem resposta, porque por aqueles lados não se vê vivalma.

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Ao entrar numa espécie de beco, surge a casa que de imediato elejo como o supra-sumo do kitsch da aldeia. Uma manta de retalhos com metade em madeira escura e a outra em chapa ondulada, o rés-do-chão pintado de azul Chefchaouen, aparelho de climatização e antena parabólica bem visíveis, à mistura com cabos vários, uns trepando pelas paredes, outros cruzando o ar. Ao pé da porta, mais um banco de jardim, este bem harmonioso, em madeira e ferro forjado, tendo por companhia duas cadeiras plásticas rosa-bombom saídas directamente do mundo da Barbie. Com os seus anacronismos, parece-me ilustrar bem o espírito geral desta aldeia que tem crescido ao sabor do acaso, um pé na tradição e preservação cultural e outro na vontade de se modernizar.

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De volta ao carro, passo outra vez pela área junto ao rio, que se nota ter sido alvo de arranjo há não muitos anos: deck amplo em madeira, delimitado por postes baixos ligados com corda grossa, intercalados com painéis que exibem fotos da actividade piscatória dos avieiros. Árvores frondosas, bem cuidadas, e uma zona de merendas ao fundo, ao lado do parque de estacionamento. O banco foi abandonado, mas a cadeira de campismo colorida ainda lá está, sossegada, à espera do seu ocupante habitual. Tal como a aldeia, suspensa no limbo de decisões por tomar e herdeira de um passado que em breve será considerado obsoleto, decerto para dar lugar a mais um destino “típico” a explorar turisticamente.

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Fonte usada para pesquisa: http://www.e-atlasavieiro.org/

 

Sugestões de leitura:

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