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Delito de Opinião

Anda tudo doido

Pedro Correia, 22.09.19

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O senhor Trudeau, que era até agora o ai-jesus das moçoilas casadoiras e almas sensíveis de todos os géneros, transformou-se num monstro racista. O que pode até custar-lhe o posto máximo da política no Canadá.

Por ter sido caçado num esquema de corrupção? Por ter fugido ao fisco? Por ter atropelado alguém quando conduzia embriagado? Por ter insultado uma namorada em mil novecentos-e-troca-o-passo? Por ter fumado (inalando) crack num Conselho de Ministros? Não: por ter surgido disfarçado de Aladino numa festa académica do ano lectivo 2000/2001 no estabelecimento universitário privado onde então leccionava, em Vancouver. Era uma festa temática, alusiva às Mil e Uma Noites, e o imberbe Trudeau, então com 29 anos, enfarruscou a cara para parecer mais credível na fatiota de Aladino.

 

Eis o que anda a turvar as águas da política canadiana, em plena campanha eleitoral, provocando palpitações de indignação no agora minguado clube de fãs do fotogénico governante. Não faltam turbas a uivar: Justin Trudeau é acusado de racismo retroactivo por ter enfarruscado o rosto - a prova terá ficado à vista com a divulgação, nas redes ditas sociais, de uma foto comprovativa da sua aparição como Aladino na referida festa. Bem acompanhado, por sinal.

O clamor foi de tal ordem que o chefe do Executivo canadiano já se viu forçado a implorar perdão: «Peço desculpa aos canadianos pelo que fiz. Não devia ter agido assim e assumo a responsabilidade.» Penitente, só lhe falta andar com um cordão de cilícios amarrado à cintura.

Apesar deste humilhante acto de contrição, os seus rivais na campanha eleitoral não lhe perdoam. «Isto [a foto] comprova que ele não tem capacidade para governar o país», disparou o líder do Partido Conservador, Andrew Scheer. Enquanto a candidata do Partido Verde, Elizabeth May, se confessava «profundamente perturbada» por aquela imagem inequivocamente «racista». Ele e ela de olhos postos nas legislativas de 21 de Outubro.

 

Leio as notícias e concluo: anda tudo doido.

A disseminação do rótulo "racista", colando-o a tudo quanto mexe, serve apenas para branquear o verdadeiro racismo. Como, noutros tempos, não faltava quem chamasse "fascista" a quem exprimisse uma opinião contrária, acabando por deixar incólumes os genuínos fascistas. Tal como a equiparação do piropo a uma "agressão sexual", como urravam as papisas mais façanhudas do "Me Too", contribuiu em larga medida para desacreditar este movimento ao confundir estupidamente cortejadores com predadores.

Só estes acabam por beneficiar com tão tonta confusão. 

 

Este vendaval de loucura nada mansa que perpassa aí, em nome dos bons costumes, a multiplicar atestados de excomunhão aos políticos contemporâneos, putativos culpados de supostos pecados alegadamente cometidos noutras décadas ou noutro século, arrisca-se a produzir perigosos tiros de ricochete.

Um gesto, uma palavra, uma fotografia com dez, vinte ou trinta anos basta hoje para ameaçar ou abortar uma carreira governativa, por mais promissora que pareça. Este policiamento obsessivo, em regra, é comandado por patrulheiros órfãos de ideologias totalitárias que mudaram de cartilha mas não de sectarismo e concebem a política como um convento reservado a almas imaculadas. Isto só pode produzir péssimos resultados no dia em que as pessoas comuns se fartarem destas zelotas armadas em virgens pudibundas: aí elegerão o mais politicamente incorrecto que aparecer, seja em tarde de sol seja em manhã de nevoeiro.

Como o futuro próximo demonstrará.

O Aladino

Alexandre Guerra, 20.09.19

Esqueçamos por momentos a problemática de fundo associada às pinturas faciais em políticos (leia se “brownface” ou “blackface”) que, nalguns casos, tem assumido proporções absolutamente ridículas e patéticas, resultantes, em parte, de um certo histerismo que grassa nalguns circuitos da nossa sociedade e que, sejamos francos, em nada contribui para combater verdadeiramente os males que estão na origem do racismo ou de comportamentos racistas. A questão que aqui interessa neste texto é estritamente política, em concreto, na vertente da gestão de comunicação política. Pegando no caso de Justin Trudeau como exemplo, identifica-se de imediato um erro incompreensível para um líder que é actualmente primeiro-ministro do Canadá e que está em plena campanha eleitoral para uma recandidatura àquele cargo. É importante notar que as eleições se disputam a 21 de Outubro e mesmo antes do escândalo ter rebentado esta semana, Trudeau estava longe de ter a sua reeleição assegurada. As próximas sondagens dirão o quanto será afectado por este episódio, embora a oposição esteja a fazer um esforço tremendo para que isso aconteça, chegando mesmo a divulgar publicamente mais material comprometedor para Trudeau.

Tendo em conta a informação agora divulgada e o histórico recente deste tipo de casos na política norte-americana, seria previsível que um dia destes alguma fotografia incómoda viesse a lume, ainda para mais, contra um líder que se tem assumido como progressista e defensor acérrimo da igualdade de direitos.

Não me admiraria que assessores próximos de Trudeau desconhecessem a existência dessas fotos, até porque, muitas vezes, os líderes tendem a ocultar aos seus colaboradores mais próximos informação sensível do passado, abrindo apenas o “jogo” quando são confrontados com perguntas de jornalistas ou quando o assunto já está ao nível da gestão de crise e “damage control”.

Ao contrário da imagem que tem tentado passar, Trudeau, seguramente, tinha bem noção do que fez num passado não assim tão longínquo (num dos casos, pelo menos). Até porque, nos últimos tempos, este tem sido um tema recorrente nos Estados Unidos, sendo pouco verosímil que Trudeau nunca tivesse reflectido sobre os seus actos em jovem e já em adulto. Recorde-se que a primeira fotografia divulgada pela revista Time se reporta a um evento de 2001, onde ele tinha 29 anos. Além de já não ser assim tão jovem na altura, estamos a falar de um passado não muito distante, de um acontecimento que dificilmente alguém se esqueceria, sobretudo à luz de todos os escândalos que têm surgido envolvendo este tipo de atitude.

Este texto não se debruça sobre os comportamentos de Trudeau. Isso deixo para os moralistas e pregadores de serviço. O que aqui se aborda é a forma como geriu um assunto que tinha todo o potencial para se transformar numa “arma política “contra ele (como se veio a verificar).

Toda a gente erra e, como o próprio disse, Trudeau já não é mesmo homem que era na altura. É um princípio que se aceite e que qualquer pessoa de bom senso compreende. Aprender com os erros é uma evolução e a opinião pública, em muitos casos, compensa o líder político pela sua humildade. Acontece que esta fórmula pode ser poderosa quando parte de um pressuposto sincero e proactivo. Ou seja, quando o líder, de livre vontade, se sacrifica para assumir o seu erro. O problema é que Trudeau, assim como tantos outros, raramente optam por esta via, com a esperança de que o escândalo nunca rebente. E quando assim é, arriscam-se a que um dia a notícia caia que nem uma bomba em plena comitiva de jornalistas, como aconteceu com a divulgação por parte da Time da fotografia do “Aladino” num baile de máscadas das "Mil e Uma Noites", apanhando de surpresa todos, incluindo assessores e porta-vozes. Apostaria que Trudeau terá sido o único a não ser surpreendido.

Trudeau tem-se assumido convictamente como um farol de liberdade e igualdade, personificando valores éticos e morais em prol de um mundo melhor. Tem sido essa a sua mais-valia política e é por isso que ele nunca se poderia ter deixado colocar nesta posição, sabendo-se que, dificilmente, as fotos ficariam no esquecimento para a eternidade. Trudeau arriscou e está agora a pagar pelo jogo perigoso.

É por isso que há muito Trudeau deveria ter resolvido preventivamente (ou preemptivamente) este tema, falando aberta e sinceramente do seu passado. Seria um acto doloroso, sem dúvida, mas que dificilmente teria consequências eleitorais. Além disso, poderia prosseguir a sua carreira política liberto de um fardo deste peso. Mas não foi isso que aconteceu. Trudeau é hoje um líder fragilizado, debaixo de fogo, tendo-se já desculpado várias vezes perante os canadianos. A poucas semanas das eleições, a oposição vai tentar manter o assunto na agenda mediática e não é de excluir que surjam mais fotos comprometedoras. Trudeau está a sofrer consequências por actos que cometeu há vários anos, mas, politicamente, penso que ele deve ser julgado, não por aquilo que fez, mas por aquilo que não fez: enfrentado publicamente o seu passado no devido tempo, com toda a serenidade e firmeza.

O veto da Valónia e o negócio de armas

Alexandre Guerra, 26.10.16

A mais recente crise espoletada pela região francófona da Valónia, que se recusa a aceitar o acordo económico e de comércio entre a União Europeia e o Canadá, e que está a deixar os responsáveis europeus em Bruxelas à beira de um ataque de nervos, é paradoxal e tem uma dose considerável de hipocrisia à mistura. E porquê? Primeiro, porque o CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement) -- cuja sua assinatura está prevista para amanhã em Bruxelas, onde se espera a presença do primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, que ainda acredita numa solução de última hora -- é um acordo que poucas implicações terá numa região que representa apenas 10 por cento das trocas comerciais da Bélgica com o Canadá. Ou seja, os restantes 90 por cento dessas trocas são feitas através da Flandres. Segundo, porque, embora o primeiro-ministro da Valónia, Paul Magnette, longe de ser um eurocéptico, se apresente como uma espécie de herói ao resistir à pressão da União Europeia, naquilo que ele considera ser a defesa dos standards europeus em matéria de direitos sociais, dos trabalhadores e do ambiente, a verdade é que muitos vêem nisto uma mera manobra interesseira de hipocrisia. E lembram, como aliás o próprio site Politico europeu sublinha, que a Valónia parece não ter qualquer problema de princípio ou de consciência em vender armas para o Médio Oriente, nomeadamente, para a Arábia Saudita, mas as campainhas de alarme já soam quando está em causa um acordo que, diga-se, poderá beneficiar a União Europeia e prejudicar muito pouco, ou quase nada, a Valónia.

De notar que o estado regional da Valónia é detentor a 100 por cento da FN Hersta, uma empresa de armamento que é acusada de pouca transparência na sua actividade. Por exemplo, em 2009, a FN Hersta causou muita polémica, ao vender armas para o falecido líder líbio, Muammar Khadafi.  Além disso, no ano passado, a FN Herstal e outras empresas da Valónia obtiveram licenças para venderam armas no valor de quase mil milhões de euros, o dobro do valor em relação a 2004. E de realçar que 60 por cento dessas vendas foram para a Arábia Saudita. Mas um dos casos mais exemplares da hipocrisia de Paul Magnette, um socialista moderado e especialista em assuntos europeus, tem a ver com aquilo que aconteceu em 2014, quando o parlamento valão aprovou um negócio de armas de 3,2 mil milhões de euros com o Canadá, para a montagem de viaturas militares cujo destino final era a Arábia Saudita.

Perante isto, não são de estranhar as críticas que o primeiro-ministro da Flandres fez a Magnette, ao acusá-lo de preferir vender armas aos sauditas do que fazer um acordo de comércio com o Canadá. E embora o Governo belga, liderado pelo francófono Charles Michel, apoie o CETA, a questão é que este é um acordo misto, o que implica que o mesmo, além de ser aprovado pelo Conselho e Parlamento europeu, terá também de ser ratificado pelos Estados-membros. O problema é que a Constituição da Bélgica obriga a que esta ratificação passe pelos parlamentos regionais.

Magnette tem explorado ao máximo o sentimento de descontentametno dos valões, que vêem na sua região uma grande crise industrial, o que tem contribuído para a subida do Partido do Trabalho da Bélgica (marxista), sendo que ainda recentemente a Caterpillar anunciou o encerramento da sua fábrica na Valónia, levando ao despedimento de 2200 trabalhadores. Tudo isto está a permitir a Magnette bloquear o CETA, o problema é que, ao que tudo indica, está a fazê-lo pelas razões erradas.

Dois meses e meio é muito tempo!

Rui Rocha, 28.03.11

O Governo do Canadá foi derrubado na mesma semana em que o Primeiro-Ministro português apresentou a sua demissão. Lá, como cá, seguem-se eleições antecipadas. Em Portugal, o acto eleitoral decorrerá algures entre o final de Maio e o princípio de Junho. No Canadá, as eleições estão já marcadas para 2 de Maio. Ou seja, os canadianos, tal como os ingleses, precisam de pouco mais de um mês para realizar eleições. Os portugueses demoram perto de dois meses e meio a organizar o acto eleitoral. Como não acredito que os canadianos e os ingleses sejam pouco exigentes no que diz respeito às garantias do processo democrático, a diferença só pode  ser atribuída a um sistema pesado e ineficiente. E essa ineficiência tem, pelo menos, duas consequências muito negativas. Desde logo, o país fica entregue, durante demasiado tempo, a um governo de gestão. Na melhor das hipóteses, o executivo fica diminuído nas suas competências e politicamente esgotado. Na pior, porventura a mais próxima da realidade, utiliza cada um desses dias para pôr a máquina do Estado ao serviço dos seus interesses e das suas clientelas. Por outro lado, a campanha eleitoral prolonga-se para lá do razoável. Em Portugal, a qualidade do debate já não costuma ser por aí além. Depois de dois meses e meio de arremesso não há quem resista à mediocridade. Tudo isto constitui mais um factor de degradação da qualidade da democracia e de alheamento dos cidadãos. Todos sabemos que a renovação da classe política e das suas atitudes é um desígnio urgente, mas de concretização muito demorada. Entretanto, já não seria mau se conseguissemos tornar os processos democráticos mais rápidos e eficientes.