As canções no cinema (17)
AMADO MIO (Gilda, 1946)
Amado mio
Love me forever
And let forever begin tonight.
Amado mio
When we're together
I'm in a dream world
Of sweet delight.
Rita Hayworth fez uma das aparições mais fulgurantes de sempre no cinema, incendiando plateias na década de 40. Oriunda do cinema musical, demonstrou os seus dotes de bailarina em filmes ao lado de Gene Kelly e Fred Astaire. Casou com Orson Welles, o menino-prodígio de Hollywood daquela época. O casamento durou pouco, a sua vida pessoal foi-se ensombrando. Isto reflectia-se nas aparições na tela: as fitas que protagonizava adquiriam um tom mais agreste e nebuloso à medida que o seu percurso biográfico se tornava menos solar.
Já estava separada de Welles quando o todo-poderoso magnata da Columbia Pictures, Harry Cohn, lhe confiou o papel principal de Gilda, que viria a tornar-se o mais icónico da sua carreira. A bela novaiorquina filha de um imigrante andaluz explodia como femme fatale num filme de enredo labiríntico ambientado na Argentina.
Nunca a sensualidade de uma mulher fora tão espectacular como nesta película realizada por Charles Vidor (1900-1959), húngaro radicado na Califórnia que já dirigira Margarita Carmen Cansino (nome original de Rita) em Cover Girl (1944), um dos mais aplaudidos musicais rodados na Meca do Cinema durante os anos da guerra. Gilda, desancada pela crítica na estreia, figura hoje entre as obras-primas incontestadas do film noir.
Como tantas vezes acontece, os críticos – aparentemente imunes ao sex-appeal da actriz – foram incapazes de vislumbrar o sopro de génio da fogosa ruiva nesta longa-metragem em que contracenava com Glenn Ford no papel de Johnny Farrell, alguém que se apaixonava e desapaixonava com excessiva facilidade. Ao ponto de ela lhe atirar, com manifesto desprezo: “Johnny é um nome tão difícil de lembrar e tão fácil de esquecer…”
O filme começou a ser rodado sem um guião completo, mas Vidor conseguiu transformar essa aparente debilidade em força. Estamos perante uma espécie de pesadelo a preto e branco relatado por uma voz off (a de Johnny) que nos conduz ao bas fond de Buenos Aires, onde o pecado é virtude e todas as personagens parecem ter o destino traçado desde a hora em que nasceram.
Este reduto de códigos masculinos é perturbado pela aparição de Gilda, que se torna claramente dominante em termos visuais, subjugando os varões ao seu charme incomparável – ao ponto de alguém já lhe ter chamado “o primeiro film noir feminista”.
A beleza exótica daquela cantora de cabaré perturba os homens. É lasciva e sensual, mas ao mesmo tempo imatura e vulnerável sem deixar de ser sofisticada – complexa de mais para qualquer deles, fosse herói ou vilão.
Os filmes negros não costumam ser associados a canções. Mas Gilda é diferente também nisto: Rita Hayworth – que tinha 27 anos durante as filmagens, no último trimestre de 1945 – não voltaria a ser tão ofuscante como quando interpreta aqui duas canções: Amado Mio e Put the Blame on Mame.
Eu era adolescente quando vi esta película pela primeira vez, numa reexibição na RTP. E jamais esquecerei aqueles vibrantes momentos musicais em que ela monopoliza as atenções, vestida por Jean Louis e fotografada por Rudolph Maté: esquecemos tudo o resto para nos fixarmos no rosto e no corpo de Rita Hayworth, mulher-furacão capaz de desencadear pulsões eróticas – e a fúria dos esclerosados censores morais – ao descalçar uma simples luva.
Put the Blame on Mame – o tema que desencadeia esse singular strip tease – deu muito que falar. Mas a minha canção preferida é a outra, Amado Mio. Ambas compostas propositadamente para este filme por uma mulher: Doris Fisher (1915-2003), em parceria com Allan Roberts (1905-1966). Ela retirou-se cedo do mundo das cantigas, mas esta dupla ainda foi a tempo de compor temas que fizeram sucesso nas vozes de Bing Crosby, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Gene Autry e os Ink Spots, como Into Each Life Some Rain Must Fall ou You Always Hurt the One You Love.
“Many times I’ve whispered / ‘Amado mio’. / It was just a phrase / That I heard in plays / I was acting a part. // But now when I whisper / ‘Amado mio’ / Can’t you tell I care / By the feeling there / ‘Cause it comes from my heart.”
Como esquecer esta voluptuosa canção, que sempre associarei a Rita Hayworth – a bailarina com quem Astaire mais gostou de dançar? Isto apesar de em Amado Mio ela ter sido inesperadamente dobrada pela cantora canadiana Anita Kert Ellis (decisão incompreensível do estúdio, pois a intérprete de Gilda havia sido vocalista na popularíssima orquestra de Xavier Cugat).
Para mim ainda mais incompreensível foi a contestação que o filme, ao estrear-se, mereceu nas colunas bem-pensantes da imprensa novaiorquina. “Uma fita lenta, opaca, desinteressante”, opinou o New York Times. “Maçadora e algo confusa”, bocejou o Herald Tribune. Prosa pedante e vesga de quem pretendeu reduzir Rita Hayworth à condição de pin-up ou de “rainha da jukebox”. Mais atentos aos sinais dos tempos, apesar de tudo, estavam os militares que chamaram Gilda à primeira bomba atómica norte-americana largada em tempo de paz, no atol Bikini...
Ao longo dos anos, noutros quadrantes e noutros contextos, fui reencontrando Amado Mio.
Em 1989 Grace Jones interpretou uma versão sincopada do tema que fez furor nas discotecas. E em 1997, no excelente álbum Sympathique, os Pink Martini voltaram a dar vida à canção que sempre nos evocará a hora do máximo esplendor da filha do imigrante andaluz – faiscante e enigmática e trágica deusa ruiva.
“I want you ever / I love my darling, / Wanting to hold you / And hold you tight. // Amado mio, / love me forever / And let forever / Begin tonight.”
Versos que a perseguiram na montanha-russa da vida tornada filme, do filme tornado vida. Primeiro na imparável ascensão ao patamar supremo da Sétima Arte, depois num declínio acelerado pelo alcoolismo. Já retirada do cinema, incapaz de memorizar textos num prenúncio do Alzheimer em que viria a afundar-se, legou-nos esta melancólica confissão: “As únicas jóias da minha vida foram os filmes que fiz com Gene Kelly e Fred Astaire.”
Voltava ao início de tudo: à magia do ecrã iluminando a vasta sala escura. Gilda uma vez, Gilda para sempre: o cinema tem o dom de transformar o efémero em eterno. Forever and ever.