As canções do século (fim)
Estas coisas nunca acontecem bem como as planeamos. Eu tinha pensado inicialmente numa série de 365 canções que marcaram o século XX - uma por dia, ao longo de 2010. O segundo ano de vida deste blogue.
Lembro, a propósito, as primeiras que seleccionei: Starting Over (John Lennon), Time After Time (Margaret Whiting), Impossible Dream (Luther Vandross), Cucurrucucu Paloma (Caetano Veloso), Bon Annniversaire (Charles Aznavour), Valsinha (Chico Buarque), Perfidia (Ibrahim Ferrer), The Man I Love (Billie Holiday), Gracias a la Vida (Violeta Parra), Trouble (Elvis Presley), Eleanor Rigby (Beatles), La Foule (Edith Piaf), Singin' in the Rain (Gene Kelly), Desafinado (João Gilberto) e Something Stupid (Frank e Nancy Sinatra).
A adesão inicial dos leitores e o próprio entusiasmo que fui ganhando durante a elaboração da série prolongou-a por outros anos: 2011, 2012, 2013, 2014, 2015. Entrou até em 2016, com direito a destaque no portal do Sapo, por ser a mais antiga série diária em publicação ininterrupta na blogosfera portuguesa.
Termina hoje, com uma capicua perfeita e ao inevitável som do arrebatador e profético tema dos Doors que pela primeira vez escutei num dos filmes que integram o meu panteão pessoal: Apocalypse Now. A música é indissociável do cinema, é indissociável da vida, é inseparável da biografia de cada um de nós: se pudéssemos escolher a banda sonora das nossas vidas quantos temas musicais seleccionaríamos?
Descobri muito mais do que supunha nas pesquisas que fui fazendo para estas Canções do Século que hoje se despedem de vós. No fundo era esta uma das motivações mais fortes que me levaram a lançar a série: ampliar a minha própria cultura musical. Sem a circunscrever ao universo anglo-americano, contrariando assim uma das lacunas mais recorrentes e um dos erros mais grosseiros neste domínio: como é possível ignorar Tom Jobim, Edith Piaf, Carlos Gardel, Caetano Veloso, Antonio Machín e Jacques Brel quando se elaboram listas dos temas musicais que mais marcaram o século XX?
Nem sempre foi fácil escolher entre originais e versões. Se nunca tive dúvidas, por exemplo, em eleger Les Feuilles Mortes na interpretação de Yves Montand que lhe deu fama, noutros casos optei por uma versão que se tornou mais célebre ou simplesmente por ter encontrado um vídeo com maior qualidade sonora. Aconteceu por exemplo com Sea of Love, gravada originalmente em 1959 por Phil Phillips e que aqui trouxe na versão muito posterior de Cat Power. Houve outros casos, embora raros, em que optei pelas duas versões. Aconteceu com Les Moribonds, de Brel, e da versão norte-americana intitulada Seasons in the Sun, que sempre associarei ao quente Verão de 1974, interpretada por Terry Jacks. Ou o célebre My Way, popularizado por Frank Sinatra, que começou por ser Comme d' Habitude, na voz de Claude François.
Voltou a acontecer ontem, propositadamente, com At Last - fabulosa canção composta por Harry Warren e Mack Gordon que foi logo um êxito ao estrear num filme da 20th Century Fox em 1942. Chegou aqui nas suas duas melhores versões: a de Etta James em 1961 e a de Beyoncé, que entrou para a história ao abrilhantar o baile inaugural da presidência Obama, em 2009.
Nem sempre foi possível encontrar vídeos disponíveis na rede com o padrão estético que as circunstâncias exigiam. Acabou por imperar a tese do mal menor: julgo que os leitores terão relevado esta falha. Houve também problemas suscitados por direitos de autor: gostaria de ter trazido aqui mais temas do meu sempre idolatrado Bob Dylan, mas a rigorosa Sony ia-me informando que não estavam disponíveis. Os Supertramp, na sua composição original, permaneceram quase sempre inacessíveis pelo mesmo motivo.
Mas música nunca faltou por cá - de 1902 (o tema mais antigo) a 1999 (o mais recente); dos A-Ha aos Zombies, por ordem alfabética.
Os mais representados, julgo que sem surpresa, foram os Beatles (com 54 canções). Seguiram-se Chico Buarque (33), Frank Sinatra (29), Rolling Stones (21), Ella Fitzgerald (21), Caetano Veloso (16), Brel (16), Elvis Presley (15), Elis Regina (15), Beach Boys (14), Stevie Wonder (14), Nat King Cole (14), Dylan (14), Billie Holiday (14), Leonard Cohen (13), Ray Charles (13), Simon & Garfunkel (13), Lennon (13), Charles Aznavour (13) e Piaf (13).
Alguns dos intérpretes foram morrendo enquanto a série durou: Jean Ferrat, Lena Horne, Crispian St. Peters, Cesária Évora, Whitney Houston, Donna Summer, Robin Gibb (dos Bee Gees), Chavela Vargas, Andy Williams, Lou Reed, Joe Cocker, Natallie Cole, David Bowie, Black (que imortalizou o tema Wonderful Life). A quase todos foi possível prestar aqui, no dia imediato, a merecida homenagem musical.
Alguns leitores estranharam a ausência de portugueses neste longo desfile. É fácil de explicar: tenciono fazer outra série de Canções do Século só com vozes e temas nacionais. Tal como não excluo organizar outra dedicada apenas a temas instrumentais, que desta vez ficaram de fora: será então possível trazer aqui Glenn Miller, Santana, Astor Piazzolla, Egberto Gismonti, Benny Goodman, Anton Karas, John Coltrane, Miles Davis, Nino Rota, B. B. King, Paco de Lucia, Ry Cooder e tantos outros.
Do século XXI poderei ocupar-me mais tarde. Por agora suspendo as funções de DJ do nosso DELITO que durante tanto tempo desempenhei com gosto. Passo o testemunho ao Rui Herbon, que a partir da próxima madrugada tomará conta da emissão. Espero que acompanhem o próximo desfile musical com o mesmo interesse que me demonstraram durante estes seis anos. E agradeço a todos as preciosas sugestões que me foram dando.
Um blogue também serve para intercâmbio de conhecimentos. É útil e desejável aprendermos um pouco mais uns com os outros. E divertindo-nos de caminho, sempre que possível.
Foi o que aconteceu comigo. Não vou esquecer.