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Delito de Opinião

As canções da minha vida (20)

Pedro Correia, 02.12.23

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KISS 

1953

 

Pode uma canção apaixonar-nos de tal maneira que não exista nenhuma outra? Pode. Aprendemos isso com Marilyn Monroe no mais original film noir da história do cinema: Niagara, realizado por Henry Hathaway contra todas as regras do género. Os thrillers a que costumamos chamar negros decorrem em espaços claustrofóbicos, quase sempre citadinos, e são filmados num hipnótico preto-e-branco cheio de luzes indirectas destinadas a ampliar as sombras.

Em Niagara, rodado em 1952, o veterano Hathaway – que se especializara em westerns e filmes de espionagem ­– vira as convenções do avesso. Grande parte do filme é passado ao sol, fixado num deslumbrante technicolor que realça as cores primárias e sob o amplo cenário natural das cataratas do Niagara, em paisagens de perder o fôlego.

Marilyn – neste seu primeiro papel como protagonista, reconhecido nos créditos iniciais – é tão exuberante no fulgor dos seus 26 anos como as quedas de água que se tornaram ainda mais célebres após a estreia da longa-metragem, em Janeiro de 1953. «Um fenómeno da natureza, equivalente às cataratas do Niagara ou ao Grande Canyon», classificou-a o argumentista e realizador Nunnally Johnson.

Poucas definições foram tão exactas.

 

Dos clássicos ingredientes do film noir, esta película de Hathaway conserva apenas a presença da mulher fatal. Ela mesmo, Marilyn – fatal a vários títulos. Niagara envolve-nos numa atmosfera ominosa mal as luzes se acendem no ecrã enquanto escutamos Joseph Cotten em voz off: «Porque me atraíram as cataratas para este mesmo local às cinco da manhã? Para me mostrarem até que ponto são enormes e até que ponto eu sou minúsculo?»

Pressente-se um estranho determinismo naquelas palavras pronunciadas em tom magoado por um dos gigantes de arte de representar – protagonista de Citizen Kane (Orson Welles, 1941), Mentira (Alfred Hitchcock, 1943) e Duelo ao Sol (King Vidor, 1946), entre outros marcos da Sétima Arte. Cotten representa aqui o papel de George Loomis, ex-combatente da Guerra da Coreia recém-saído de um hospital militar e afectado por aquilo a que hoje chamamos stress pós-traumático.

A guerra foi o menor dos problemas de George. O maior salta à vista de qualquer um e tem nome próprio: Rose, a mulher muito mais nova com quem está casado (na vida real havia uma diferença de 21 anos entre Cotten, nascido em 1905, e Marilyn, que viera ao mundo em 1926). Despontava aqui – tendo como cenário as cataratas, poderosa metáfora sexual – o mito de Marilyn como deusa suprema do erotismo, digna herdeira dos esplendores carnais das telas de Rubens e Botticelli nesse dias em que a palavra anorexia permanecia por inventar.

 

É ao som de um tema musical deste filme que decorre uma das cenas mais fascinantes que alguma vez vi no cinema.

Anoitece no resort turístico onde Rose e George estão instalados. Há ali uma pequena festa ao ar livre: alguns pares de jovens dançam, entrelaçados. Ela encaminha-se, solitária, ao encontro do improvisado baile e pede ao rapaz da aparelhagem sonora que ponha um disco a rodar.

O nome dessa música já diz muito: Kiss. E o modo como Rose – com um sucinto vestido da cor do nome – canta em cima da trilha sonora, omitindo algumas palavras num voluptuoso silêncio, diz-nos o que faltava saber sobre a personagem. E também sobre o extraordinário mérito desta actriz tão subvalorizada pela crítica bem-pensante. «Nunca conheci ninguém com tanto talento natural para representar», confessaria Hathaway, que já tinha visto quase tudo e não se espantava com quase nada.

George, enlouquecido, emerge da escuridão do quarto e põe fim à festa, partindo o disco que evoca em linhas e entrelinhas a ligação de Rose a outro homem, muito mais jovem que ele. Havemos de conhecê-lo mais tarde, em circunstâncias trágicas. Mas o mais original nesta cena é a importância do tema musical como sucedâneo da paixão ausente.

Importância reforçada largos minutos adiante quando os acordes de Kiss soam em cadência orgástica nos imponentes carrilhões da Rainbow Tower – evidente símbolo fálico – situada no lado canadiano das cataratas. Aquele som, que funciona como senha de um amor clandestino, pode afinal prenunciar a morte.

 

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Ninguém diria hoje que se tratava de uma típica produção de estúdio, concebida especialmente para este filme por dois dos mais destacados profissionais da 20th Century Fox: o maestro e compositor Lionel Newman (1916-1989) e o letrista Haven Gillespie (1888-1975). O primeiro – onze vezes nomeado para o Óscar e vencedor em 1969 com a partitura de Hello Dolly! – dirigiria o departamento musical da Fox entre 1963 e 1985. O segundo escreveu letras para canções como That Lucky Old Sun e Santa Claus is Coming to Town.

Ao contrário do que faria supor o êxito de bilheteira de Niagara, a música passou quase despercebida. O original que podemos escutar no filme é interpretado pelos Starlighters, um grupo de baile que nunca atingiu a celebridade. Logo em 1953, Dean Martin e Toni Arden gravaram versões que mal entraram no ouvido. Kiss só viria a ser redescoberta nos anos 80, quando integrou um CD de recolhas de canções interpretadas por Marilyn em filmes como Os Homens Preferem as Loiras, Rio sem Regresso, Paragem de Autocarro e Vamo-nos Amar. Neste caso trata-se de uma gravação que permaneceu inédita durante cerca de três décadas nos arquivos da Fox.

Todos perceberam só então – tarde de mais – que ela também sabia cantar.

 

Como a perturbada e perturbante Marilyn que reinou naqueles anos tão fugazes entre os humanos, também Rose neste filme nada oculta. Quando um casal instalado no apartamento contíguo lhe pergunta por que motivo ela gosta tanto daquela canção, a resposta não pode ser mais desconcertante por ter tanto de malícia como de candura: «Não existe nenhuma outra.»

Também não houve outra Marilyn – só pobres imitadoras que sempre empalideceram face ao original. Nem houve outro filme como este, em que o sexo andasse irmanado com a morte no cenário mais adequado para simbolizar a perpétua luta do ser humano contra as torrenciais pulsões da natureza.

 

«Take me, darling, don’t forsake me. / Kiss me / hold me tight, / love me, love me tonight.»

Escrevo estas linhas enquanto escuto pela enésima vez a voz de Rose acompanhando os Starlighters, sobrepondo-se a eles, conferindo-lhes um rasto de imortalidade. Nome de flor efémera emprestado a um actriz eterna.

E logo me lembro daquele magnífico verso de Ruy Belo: «Em vez de Marilyn dizer mulher.»

 

«Kiss, kiss me / say you miss, miss me / kiss me love, with heavenly affection / hold, hold me close to you / hold me, see me through / with all your heart's protection.»

 

As canções da minha vida (19)

Pedro Correia, 10.07.20

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BARCO NEGRO

1955

 

Há canções no cinema capazes de nos tocar a tal ponto que relegam o enredo para segundo plano. Aconteceu-me algumas vezes enquanto espectador. Mas talvez nunca com tanta intensidade como num filme francês, rodado por Henri Verneuil (1920-2002) em Lisboa. Esta longa-metragem de 1955 é hoje lembrada não pelos seus méritos cinematográficos, que são escassos, mas por ter impulsionado a ascensão internacional de Amália Rodrigues. Bastaria para que eu, amaliano militante, a incluísse na minha galeria de títulos estimáveis da Sétima Arte.

Amália tem um papel relativamente importante no filme, interpretando-se a si própria. Surge aliás em quinto lugar na ficha artística, logo após Daniel Gélin (que no ano seguinte surgiria em O Homem que Sabia Demais, de Alfred Hitchcock), Françoise Arnoul, Trevor Howard (célebre pela sua aparição em O Terceiro Homem, obra-prima do cinema britânico) e Marcel Dalio (do elenco de Casablanca). E a sua presença vocal manifesta-se desde o instante inicial: enquanto decorre o genérico, sobre panorâmicas de Lisboa, é a voz dela que escutamos. Cantando Foi Deus, um dos mais belos temas do seu riquíssimo reportório.

Os Amantes do Tejo – baseado na obra homónima do escritor Joseph Kessel, publicada um ano antes – conta-nos a história de Pierre, ex-membro da resistência francesa refugiado em Lisboa, onde trabalha como taxista, após ter cumprido pena de prisão no país natal por ter assassinado o amante da mulher in flagrante delicto. Um dia transporta Kathleen, turista por quem se apaixona, não resistindo a confessar-lhe o seu segredo. Mas também ela é perseguida por uma sombra do passado. O romance está condenado a terminar mal.

 

O que importa aqui, no entanto, é a presença magnética de Amália. O filme subsiste como objecto de culto por causa dela, só por causa dela. E nunca foi tão etérea e tão carnal em simultâneo como nos minutos em que canta – com a voz da alma – o arrepiante Barco Negro, original brasileiro a que David Mourão-Ferreira (1927-1996) emprestou o seu talento poético.

«De manhã, temendo que me achasses feia, / Acordei tremendo deitada na areia. / Mas logo os teus olhos disseram que não / E o sol penetrou no meu coração. / Vi depois, numa rocha, uma cruz / E o teu barco negro dançava na luz. / Vi teu braço acenando entre as velas já soltas. / Dizem as velhas na praia que não voltas: / São loucas! / São loucas!»

Amália actua numa casa de fados, acompanhada por Jaime Santos, Domingos Camarinha e Santos Moreira, seus guitarristas à época. Às tantas, um miúdo pergunta a Kathleen se está a gostar. «Muito. Só tenho pena de não saber português», responde ela. «É sobre a mulher de um pescador que morreu no mar. Todas as noites ela desce à praia e fala-lhe como se ele não tivesse morrido», esclarece o garoto. Pierre/Gélin traduz depois para francês o poema de Mourão-Ferreira. Como se tivesse sido escrito para Kathleen: «Tu es toujours là, toujours là, toujours là…»

 

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Barco Negro nasceu de um acto de censura. No original brasileiro, de 1943, intitulava-se Mãe Preta e culminava desta forma: «Enquanto a chibata batia no seu amor / Mãe preta embalava o filho branco do senhor.»

Proibida pelo regime salazarista, a canção composta por Caco Velho (Matheus Nunes, 1920-1971) e Piratini (Antônio Amábile, 1906-1953) era uma denúncia óbvia do racismo que na adaptação fadista derivou para a tragédia de um pescador engolido pelo mar.

Amália trabalhara antes no cinema – enquanto protagonista de Capas Negras (Armando de Miranda, 1947), Fado (Perdigão Queiroga, 1948) e Vendaval Maravilhoso (Leitão de Barros, 1949). E já tinha prestígio internacional. Na década de 40 mantivera-se quatro meses no cartaz do luxuoso Copacabana Palace, onde estreou Ai Mouraria. Em 1953 actuara ao longo de 14 semanas no nightclub La Vie en Rose, em Nova Iorque, e no ano seguinte foi atracção no Mocambo, em Hollywood. Privara com Danny Kaye e Eddie Fisher, cantara com Lena Horne e Nat King Cole. Mas para ela as portas de França só se abriram com a enorme repercussão deste filme, onde também interpreta – sob o título Solidão – a célebre Canção do Mar, com música de Ferrer Trindade, aqui igualmente com versos de Mourão-Ferreira.

Os franceses renderam-se à rainha do fado. Nesse mesmo ano, a editora discográfica Columbia lançou em Paris um EP que juntava Barco NegroSolidão Falaste Corazón (uma ranchera mexicana) e Lisboa Não Sejas Francesa, popular tema de Raul Ferrão e José Galhardo.

Em 1956, Amália cantou pela primeira vez no Olympia de Paris: a partir daí o mundo francófono não deixaria de lhe prestar tributo.

 

Além de tudo isto, é evidente o interesse documental do filme de Verneuil pelos seus numerosos exteriores rodados em Lisboa.

Um espectador português do século XXI não deixará de acompanhar com interesse as imagens da nossa capital desse tempo em que ainda havia sinaleiros a regular o trânsito, as carroças eram frequentes, os pregões das varinas e dos ardinas ecoavam em qualquer canto da cidade, as fragatas sulcavam o rio e os eléctricos integravam o quotidiano dos Restauradores.

Paisagens que se mantiveram incólumes (o castelo, o miradouro de Santa Catarina, São Pedro de Alcântara, o cais da Rocha de Conde Óbidos) em contraste com edifícios que o camartelo alfacinha para sempre sepultou (como o luxuoso Hotel Aviz, situado onde hoje se encontra o Sheraton: ali se hospedava em permanência o multimilionário Calouste Gulbenkian).

 

Para mim tem um interesse adicional: 1955 foi o ano em que os meus pais se casaram. Gosto da longa-metragem de Verneuil também nessa perspectiva: permite-me conhecer com algum pormenor a Lisboa desse tempo, vários anos antes de eu nascer.

O meu pai, à época trabalhador-estudante, era funcionário da Direcção-Geral de Saúde, com entrada numa das arcadas do Terreiro do Paço. É o primeiro local onde avistamos Amália e Pierre/Gélin.

Nunca deixarei de ver o filme sem espreitar com redobrada atenção aquela cena. E aproveito para confessar também um segredo: ainda não perdi a esperança de um dia lá descobrir o meu pai, que sempre recordo a cantarolar o estribilho final desta canção da vida dele, agora uma das canções da minha vida.

 

«Eu sei, meu amor, / Que nem chegaste a partir / Pois tudo em meu redor / Me diz que estás sempre comigo.»

 

As canções da minha vida (18)

Pedro Correia, 26.06.20

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WE'LL MEET AGAIN

1939

 

Há 80 anos, uma jovem londrina chamada Vera Lynn cativava milhões de ingleses que a escutavam na telefonia com um dos maiores sucessos de sempre no universo da canção. Esse tema, levado ao mundo pelas ondas hertzianas e popularizado em discos de 78 rotações, ajudou o Reino Unido a enfrentar as legiões armadas de Hitler. Intitulava-se, emblematicamente, We’ll Meet Again: na voz dela, ganhava uma vibração semelhante aos discursos de Winston Churchill, tornando-se um autêntico hino da resistência à barbárie. Aquela mulher loura e franzina, que começara ainda criança a trabalhar com os pais nos palcos do teatro musicado e aos 18 anos já era vocalista em orquestras, contribuiu para manter elevado o moral britânico.

We’ll Meet Again nasceu em 1939, precisamente no ano em que começaram a soar os canhões do maior conflito bélico de todos os tempos, graças à inspiração de dois amigos que formaram uma bem-sucedida parceria: o pianista e compositor Ross Parker (1914-1974), mais tarde também actor, e o futuro produtor teatral Hughie Charles (1907-1995). Vinham embalados de um sucesso discográfico alcançado no ano anterior, I Won’t Tell a Sound (That I Love You), o que terá influenciado o inquebrantável optimismo do novo tema. We’ll Meet Again galvanizou largos milhares de soldados britânicos que partiram para as diversas frentes de batalha, não apenas em solo europeu, mas noutros continentes. E também nos ares e nos mares.

Vera Lynn tornou-se uma combatente civil: cantou entre os escombros de Londres, actuou em casernas improvisadas no Egipto, na Birmânia e na Índia, aterrou nos mais remotos palcos onde estacionavam forças britânicas para entoar aqueles versos que a Inglaterra inteira não tardou a saber de cor: «We'll meet again / Don't know where / Don't know when / But I know we'll meet again some sunny day.» Dando a todos a confiança plena de que haveria sempre um amanhã.

E houve mesmo: foi ao som destes versos que os britânicos saudaram euforicamente nas ruas o fim da guerra na Europa, em Maio de 1945.

 

Vera Lynn retirou-se cedo do mundo do espectáculo, no final da década de 50, dedicando-se à vida familiar: durante muitos anos, quase não se falou dela. Mas aqueles aparentes versos de amor que ganhavam um significado diferente em cenário de guerra nunca deixaram de preencher o imaginário popular.

Em 1964, Stanley Kubrick encerrou a obra-prima Doutor Estranhoamor com a antevisão satírica de um holocausto nuclear ao som de We’ll Meet Again: escutei-a aí, fascinado, pela primeira vez. Num registo pop, os Byrds incluíram o tema no seu álbum de estreia, Mr. Tambourine Man (1965). Em 1979, os Pink Floyd dedicaram à intérprete a canção Vera, no álbum The Wall, logo transposto para cinema pelo realizador Alan Parker.

Oito inesquecíveis versos de Roger Waters que me ficaram na memória: «Does anybody here remember Vera Lynn? / Remember how she said that / We would meet again / Some sunny day? / Vera! Vera! / What has become of you? / Does anybody else here / Feel the way I do?»

 

Em 2009, o impensável ocorreu: ela entrou pela primeira vez no top discográfico do Reino Unido – que ainda não existia em 1939 – superando a concorrência graças a uma colectânea dos seus êxitos, intitulada The Very Best of Vera Lynn e que incluía The White Cliffs of Dover e Auf Wiedersehen Sweetheart, outros temas que a celebrizaram. Gravações registadas entre 1936 e 1959, numa época em que a maioria dos que adquiriram o disco nem havia nascido.

O fenómeno deveu-se ao revivalismo da II Guerra Mundial naquele ano em que se recordava o 70.º aniversário da dramática invasão da Polónia pela Alemanha. Agraciada em 1975 como Dama do Império pela Rainha Isabel II, Vera Lynn recebia um novo título: o da cantora britânica mais idosa desde sempre representada na exigente lista das melhores vendas. Tinha 92 anos, confessou-se orgulhosa com a proeza, totalmente inesperada, e apressou-se a declarar que nem lhe passava pela cabeça regressar aos estúdios de gravação. Bastavam-lhe aparições esporádicas em salas de espectáculo, como interveniente ocasional ou mera espectadora em galas de homenagem. Para que não a esquecessem de todo – costumava dizer, meio a sério meio a brincar.

A precaução era desnecessária: os ingleses foram transmitindo esta canção de pais para filhos, de avós para netos. Portadores de uma fortíssima identidade colectiva, robustecida durante os bombardeamentos de Londres pela matilha nazi, não ignoram quem contribuiu para manter a nação unida em tempo de dor e trevas.

 

A mais recente homenagem prestada em vida a Vera Lynn veio da boca da própria Rainha, outra testemunha directa da II Guerra Mundial, já com a actual pandemia em curso. Aconteceu na noite de 5 de Abril, numa rara alocução televisiva da monarca aos britânicos, a propósito deste vírus que assombra o planeta: «Better days will return. We will be with our friends again. We will be with our families again. We will meet again.»

Era uma referência directa à canção, fazendo a ponte entre dois conflitos de natureza muito diferente mas ambos sérios testes à resistência humana. A última batalha na longa e frutuosa vida de Vera Lynn, que a 20 de Março, ao celebrar 103 anos, dirigiu uma mensagem aos compatriotas, com vídeo musical alusivo à efeméride. Sob o signo da esperança, incentivando-os a enfrentar o Covid-19. 

Há poucos dias, a 18 de Junho, o seu coração cansou-se enfim de bater. Mas a voz dela nunca nos abandonará, servindo-nos de inspiração e guia noutras causas e noutros combates. Com a certeza antecipada de que voltaremos a encontrar-nos, sem escudos nem máscaras, numa manhã inundada de sol. 

 

«So will you please say hello / To the folks that I know / Tell them I won't be long / They'll be happy to know / That as you saw me go / I was singing this song // We'll meet again / Don't know where / Don't know when / But I know we'll meet again some sunny day…»

 

As canções da minha vida (17)

Pedro Correia, 16.06.20

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GAIVOTA

1965

 

Se alguém me perguntar qual é o mais belo fado de sempre, responderei sem hesitar que é este. Nascido à revelia do que geralmente acontece: primeiro surgiu a música, só depois é que chegou a letra – a pedido expresso do compositor e após algumas recusas do poeta. Numa época em que o fado estava muito longe de dar prestígio aos escritores e Amália Rodrigues era uma espécie de anátema nos cenáculos bem-pensantes da capital.

Amália somava êxitos de público nos palcos, na rádio, no disco e até no cinema – como a sua fulgurante aparição no filme Os Amantes do Tejo, de Henri Verneuil, demonstrou em 1955. Faltava-lhe a consagração junto dos intelectuais, que insistiam em demarcar-se do fado por motivos estéticos (alegando ser toada rudimentar servida por rima pobre) ou ideológicos (era promovido como “canção nacional” pelo Estado Novo). O encontro entre Amália e um seu jovem admirador, Alain Oulman (1928-1990), nascido em Portugal de uma família judaica com negócios centrados em Paris, mudou por completo esta visão anquilosada do fado como espelho da secular lamechice lusitana. Oulman, com formação musical clássica, passou a compor para ela – e encaminhou-a para a melhor poesia portuguesa, de Camões a David Mourão-Ferreira, passando por José Régio ou Pedro Homem de Mello.

 

Assim nasceram três discos fundamentais não apenas na carreira da intérprete de Foi Deus, mas da evolução do próprio fado: Busto (1962), com temas como “Povo Que Lavas no Rio”, “Abandono” e “Vagamundo”; Fado Português (1965), com “Erros Meus”, de Camões, e o poema de Régio que deu nome ao álbum; e Com Que Voz (1970), com o soneto homónimo do autor d’ Os Lusíadas na faixa inaugural e um desfile de temas saídos da inspiração literária de Mourão-Ferreira, Homem de Mello, Cecília Meireles, Manuel Alegre, António de Sousa, Ary dos Santos. E Alexandre O’Neill (1924-1986).

O’Neill é quem mais interessa nesta história. Porque Gaivota nasceu precisamente da sensibilidade e do talento deste poeta emprestado à publicidade que não costumava levar muito a sério aquilo que escrevia nem revelara até aí a menor atracção pelo fado: como tantos intelectuais da sua geração, achava este género musical uma “pieguice popularucha” – com estas ou outras palavras de idêntico menosprezo.

Mas a persistência de Oulman levou a melhor. Numa tarde de Novembro, entre castanhas e água-pé, com um piano em que o compositor tocou a música para o poeta ouvir. O realizador José Fonseca e Costa estava lá e relata o que aconteceu, com palavras ainda emocionadas, recolhidas por Maria Antónia Oliveira no seu livro Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária: «Tocou para nós uma música que o atormentava, estranha música essa, bela e profunda, toda feita de altos e baixos, como as ondas do mar ou o voo das aves, com notas que nos entravam na alma e ficavam cá dentro a vibrar.»

 

Enigmática e sedutora música, que pedia um poema à sua altura. Oulman procurara muito sem encontrar. O’Neill ficou pensativo e acabou por aceder à encomenda. Assim nasceu Gaivota, que tem comovido milhões de pessoas – incluindo gente que não sabe uma palavra de português.

O facto de se dever à inspiração de alguém que jamais revelara a menor vocação para versejador de fados contribuiu para que a letra nascesse já poema.

«Se uma gaivota viesse / trazer-me o céu de Lisboa / no desenho que fizesse, / nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa, / esmorece e cai no mar. // Que perfeito coração / no meu peito bateria. / meu amor na tua mão, / nessa mão onde cabia / perfeito o meu coração.»

Em 1969, ao ser entrevistado pela revista Flama, o poeta desvendou um pouco do seu processo criativo: «Quando nos pedem versos para uma canção, temos de lutar contra certos obstáculos. Um tipo nunca esquece que o poema se destina a ser cantado. Surgem, então, preocupações de ordem vocal, procuramos aumentar a sonoridade das palavras. Embora rica em fonemas, a nossa língua está cheia de sordícies.»

 

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Letra e música encontravam a intérprete ideal. Que cantou Gaivota em estreia no filme Fado Corrido (1964), de Jorge Brum do Canto, inspirado numa novela de Mourão-Ferreira em que, embora com outro nome, a fadista acabava por interpretar-se a si própria. O filme é hoje memorável apenas pela presença magnética de Amália, no auge da sua fotogenia e dos seus assombrosos dotes vocais.

No ano seguinte, Gaivota aparecia em disco – precisamente o Fado Português, que arrepiou alguns puristas, desgostosos do desvio à vetusta matriz melódica e métrica da “canção nacional”, e indignou uns quantos eruditos alfacinhas, exaltados por Amália se atrever a cantar Camões. São polémicas próprias de um país pequeno e periférico, habitado por gente de vistas curtas e escasso mundo. Hoje, com tudo isso já sepultado na poeira dos arquivos jornalísticos, só podem suscitar sorrisos de condescendência a quem celebra o fado como património imaterial da Humanidade.

 

É certo que Gaivota conheceu outros intérpretes – e foi até alvo de uma controversa e nada feliz “recriação”, há uns anos, a pretexto de homenagem. Mas permanecerá para sempre ligada a Amália, incomparável intérprete desta canção condoída, que transforma a dor numa paradoxal exaltação da felicidade - tanto mais intensa quanto mais fugaz e nostálgica. Com palavras que se colam à música em respiração entrelaçada, raiz e asa, chão e céu em simultâneo.

Palavras como estrelas que nos inspiram e iluminam mesmo na noite mais escura da existência, companheiras perpétuas até em momentos de dilacerante solidão.

 

«Se ao dizer adeus à vida / as aves todas do céu, / me dessem na despedida / o teu olhar derradeiro, / esse olhar que era só teu, / amor que foste o primeiro. // Que perfeito coração / no meu peito morreria, / meu amor na tua mão, / nessa mão onde perfeito / bateu o meu coração.»

 

As canções da minha vida (16)

Pedro Correia, 23.05.20

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 ATRÁS DA PORTA

1972

 

É uma das mais pungentes canções alguma vez compostas neste nosso belo idioma que tão fervorosos amores já celebrou. Canção que nos fala do fogo de uma paixão ainda acesa mas já cercada pelas cinzas do desamor. Canção que a seu modo celebra a vida – no seu ardor, na sua dor, na sua chama, na sua lama.

Começou por ser apenas melodia, composta por Francis Hime. Num convívio febril de um apartamento carioca, com o calor a apelar à sede e esta a convocar de urgência um reforço alcoólico, a letra foi tomando corpo graças ao engenho repentista de Chico Buarque. Mais que uma letra, começava a nascer um poema para ser declamado em forma de canção.

«Quando olhaste bem nos olhos meus, / E o teu olhar era de adeus, / Juro que não acreditei. / Eu te estranhei, me debrucei sobre teu corpo / E duvidei, e me arrastei, e te arranhei, / E me agarrei nos teus cabelos, nos teus pelos, / Teu pijama, nos teus pés, ao pé da cama.»

 

Mas, nessa noite, a letra ficou incompleta. E sem a intervenção de Elis Regina talvez tivesse o destino de outras que nunca chegam a sair da gaveta, vítimas de atribuladas errâncias criativas. Chico parecia ter-se desinteressado do projecto: faltava-lhe inspiração ou motivação para o remate certeiro e definitivo.

A “Pimentinha” – metro e meio de talento histriónico e vocal, uma gaúcha de signo Carneiro que anos antes demandara o Rio com uma vontade imensa de conquistar o mundo – ouviu a partitura por aqueles dias, no rescaldo da ruptura do seu casamento com o compositor e produtor Ronaldo Bôscoli. E sentiu-se de imediato seduzida pela música, mesmo só com parte dos versos.

Marcou-se dia e hora para uma gravação. Só com voz e teclado, sendo a parte instrumental confiada ao pianista César Camargo Mariano. Por quem, naqueles dias, a cantora se apaixonara sem limite nem medida.

 

Conta quem sabe que aconteceu então um momento mágico. «César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de Atrás da Porta. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos.»

Assim relata Nelson Motta, testemunha privilegiada daqueles anos dourados da música brasileira, nas páginas de Noites Tropicais, um dos meus livros de estimação. César e o produtor Roberto Menescal pegaram na fita e levaram-na a Chico Buarque, que se comoveu até às lágrimas. E, num impulso, logo ali terminou a letra. Adicionando-lhe os cinco versos finais que pouco depois, imortalizados em disco (oitava faixa do álbum Elis, dois minutos e 38 segundos), andariam de boca em boca, entoados por milhões de pessoas apaixonadas, com os mais diversos sotaques do português.

Enquanto a censura brasileira, obstinada e obtusa como é norma em todas as ditaduras, mandava substituir pelos por peito - o que explica a existência de duas versões da mesma letra.

 

Poeta-trovador, Chico Buarque muito cedo revelou o dom de escrever versos na óptica feminina – característica inovadora para a época. O que ficou evidente nas suas composições celebrizadas por vozes tão diferentes como as de Nara Leão (Com Açúcar, Com Afeto), Maria Bethânia (Olhos nos Olhos), Gal Costa (Folhetim) e Elba Ramalho (na magnífica e empolgante Palavra de Mulher).

Como se ele fosse qualquer delas. Como se ele as conhecesse tão bem ou ainda melhor por dentro, sem qualquer disfarce.

 

Ouvi pela primeira vez Atrás da Porta na versão de Bethânia, que me deixou quase indiferente. Faltava-lhe transportar para a canção toda a carga dramática que só Elis conseguiu colar-lhe. Rompendo a toada suave e sussurrante da bossa nova, tornando-se a intérprete definitiva de um tema que sem ela talvez nunca tivesse passado de esboço.

Por mais competentes que sejam as versões protagonizadas por Gal Costa e Ivete Sangalo, só para mencionar dois exemplos, mais ninguém conseguiu ser tão comovente, tão lancinante, tão inapelável. Mais ninguém teve o desassombro de desvendar sem um assomo de pudor a sua fragilidade emocional. Indiferente ao que pensassem ou ao que dissessem. Mais ninguém conseguiu fazer o que Elis fez: transformar um pranto íntimo numa litania com alcance universal. Em que se reviu tanta gente que, como ela, chorava baixinho atrás da porta.

«Elis Regina cantou a versão definitiva de uma das mais poderosas e dilacerantes letras de amor e ódio da música brasileira, produziu uma gravação antológica e emocionou o Brasil com sua arte.» São, de novo, palavras de Nelson Motta. Que subscrevo por inteiro enquanto a música vai soando. Capaz de nos trazer à tona mágoas de outrora, capaz de nos arrepiar mesmo num tórrido e sufocante dia de Verão.

 

«Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar / E me vingar a qualquer preço / Te adorando pelo avesso / Pra mostrar que ainda sou tua.»

 

As canções da minha vida (15)

Pedro Correia, 10.05.20

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LE MÉTÈQUE

1969

 

Há canções que para sempre associamos a períodos irrepetíveis das nossas vidas. Le Métèque entrou-me casa adentro, em sessões contínuas, ficando a marcar o Verão dos meus 13 anos. Quando a rádio me acompanhava de manhã à noite e eu me preparava para mais uma mudança – noutro continente, noutra cidade, noutra escola, com novos colegas, num país em ebulição.

Tudo era diferente, até a música que se escutava. O romantismo estava fora de moda, a poesia dera lugar ao estribilho de comício, a política imperava, todos advogavam a revolução para ontem. Por longos meses que nos pareciam décadas, a chamada “língua do império” – a que os Beatles e os Stones conferiram passaporte mundial – fora banida das ondas hertzianas. Soava a “degradação burguesa”, fosse lá isso o que fosse.

Sou, portanto, de um tempo em que se ouvia muita música em francês devido às encruzilhadas da História. E, por via disso, dou por mim a pertencer à última geração francófila – muito em função de canções que nunca deixam de me soar na memória.

 

Reuníamo-nos em tertúlias adolescentes, onde nunca faltava alguém a dedilhar os acordes de uma viola, e lá surgia esta balada a iluminar a noite: «Avec ma gueule de métèque / De juif errant, de pâtre grec / Et mes cheveux aux quatre vents, / Avec mes yeux tout délavés / Qui me donnent l’air de rêver / Moi qui ne rêve plus souvent…»

Aqui não havia rima fácil nem cantarolice para combustão rápida em desfiles partidários: era trova de fino quilate, o encontro privilegiado de poesia e música, na voz de um norte-africano que também viera a Lisboa e prestara tributo à língua portuguesa. Como fizera ou viria a fazer em Salvador da Baía, sem jamais perder aquele semblante de forasteiro, de judeu errante, de pastor grego com cabelos apontados aos quatro ventos. Um verdadeiro cidadão do mundo.

 

Raras vezes uma canção nos desvenda tanto do seu autor em escassos dois minutos e meio. Este "métèque" de que Moustaki (1934-2013) nos fala é ele próprio, nascido em Alexandria, num Egipto mesclado de etnias, crenças e culturas, com raízes italianas, helénicas e judaicas. Chamava-se Giuseppe Mustacchi e escolhera aquele nome artístico em homenagem ao seu ídolo Georges Brassens, com quem conviveu desde a chegada a Paris, em 1951, aos 17 anos.

Desembarcou ali com a vaga intenção de ser jornalista ou actor, mas acabou por se apaixonar sem remissão pelos acordes musicais, de que foi exímio praticante enquanto compositor e letrista: da inspiração dele saíram cerca de 300 canções, nenhuma tão famosa como Milord, que em 1958 ofereceu a Edith Piaf, namorada e musa. Teve muitas, de Juliette Gréco a Barbara - uma espécie de Ulisses de guitarra a tiracolo que se gabava de conhecer todas as praias do Mediterrâneo.

 

Compôs também para Henri Salvador, Yves Montand e Serge Reggiani, entre outros. Mas foi um disco em nome próprio a colocá-lo no patamar cimeiro da chanson. Um disco que abria com este Le Métèque, logo tornado campeão de vendas: seis semanas no primeiro posto, entre Abril e Junho de 1969. A canção mais escutada em terras francesas naquele último Verão da década. Cinco anos antes de outro Verão ao qual sempre a associarei.

Muitos ignoram hoje que esta foi também uma canção escrita para voz alheia. O autor quis oferecê-la a Reggiani, mas o intérprete de Le Déserteur devolveu-a, agradecendo: Le Métèque só podia ser o próprio Moustaki. Palavras ditas numa emissão televisiva de grande audiência, impulsionando a popularidade do tema, que não cessa de congregar admiradores e já viajou por muitas vozes. Da franco-italiana Pia Colombo, ainda nos anos 60, ao rapper francês Joey Starr, já este século. Até em português, gravada por este poliglota de longas barbas e voz cava, sem esquecer a doce e malograda Nara Leão ("com a minha cara de estrangeiro / de judeu errante e aventureiro...".) 

Seja em que idioma for, soará sempre como um terno brado contra a discriminação: meteco deixou de ser insulto e tornou-se emblema da condição humana. Ao som daquele bandolim grego capaz de nos transformar em peregrinos de uma nova Ítaca. Chame-se ela como se chamar, esteja ela onde estiver.

 

«Et je serai prince de sang / Rêveur ou bien adolescent / Comme il te plaira de choisir / Et nous ferons de chaque jour / Toute une éternité d'amour / Que nous vivrons à en mourir.»

 

As canções da minha vida (14)

Pedro Correia, 23.04.20

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 AS TIME GOES BY

1931

 

Há canções que me lembro de ouvir desde sempre. Esta é uma delas. Fixei-a, em particular, nos meus felizes dez anos, quando vi – com poucos meses de intervalo – dois filmes que por motivos diferentes me fascinaram: Casablanca e Citizen Kane. Rodados, eles também, com uma diferença temporal muito curta. Quando o mundo estava em chamas e olhava para os Estados Unidos como porto seguro, farol de esperança e oásis de liberdade. Da fábrica de sonhos de Hollywood saíam produtos industriais que viriam a transformar-se em obras de arte. E nunca os sonhos tinham sido tão necessários como naquela era de pesadelo.

Casablanca (estreada em 1942, com realização de Michal Curtiz) usa sabiamente a guerra como pretexto para exaltar o amor romântico e perpetuá-lo muito para além das contingências do destino. Eis o segredo de uma fita sem par que parecia fadada para ser apenas mais um título da linha de montagem da Warner Brothers, o estúdio que se gabava de andar colado à realidade. Num cenário onírico, com as areias da Califórnia a fingirem de solo marroquino e uma Casablanca envolta em inédito nevoeiro, ali nascia mais do que um marco na história do cinema: emergia também um mito do nosso imaginário colectivo.

 

Poderá uma canção tocar-nos ao ponto de nos mudar a vida? Quando Ilsa Lund (Ingrid Bergman) roga a Sam (Dooley Wilson), o pianista, para cantar As Time Goes By no bar do Rick, diríamos que sim. Aqueles acordes soavam a guia e lema. Mobilizaram-na a tal ponto que ela se declarou disposta a romper todas as juras e a esquecer todos os combates. Como se não houvesse nada mais para escutar, antes ou depois.

Na película de Curtiz, era território interdito: Rick Blaine (Humphrey Bogart) proibira o pianista de interpretar aquela balada que lhe evocava memórias de um lugar inacessível e de um tempo irrepetível. A proibição só se quebra quando Sam é incapaz de resistir ao pedido de Ilsa, súbito clarão iluminando a noite. Mas é dos lábios dela que escutamos pela primeira vez um trecho deste tema musical que percorre toda a longa-metragem de modo obsessivo.

 

Vendo aquela cena, ninguém diria que esta canção hoje tão justamente celebrada quase chegou a ser excluída de um filme que esteve para ter Ronald Reagan como protagonista. Reza a lenda que o compositor Max Steiner, nomeado para um Óscar pela banda sonora de Casablanca, detestava As Time Goes By a tal ponto que fez questão de substituí-la naquela cena capital por Perfídia, rumba popularizada escassos anos antes pela orquestra de Xavier Cugat – e que surge, aliás, noutro momento da película.

Por ironia, a partitura de Steiner passou para segundo plano, obscurecida precisamente pela canção que ele tanto detestava. Um tema saído da inspiração de um compositor de segunda linha do teatro de revista norte-americano, Herman Hupfeld (1894-1951), e composto como “material adicional” para Everybody’s Welcome, peça musical de Irving Kahal e Sammy Fain estreada em 1931 em Nova Iorque. Contra ventos e marés, demorou mais de uma década a saltar das tábuas da Broadway para a glória planetária. E a firmar-se como uma senha melódica de sucessivas gerações, sem fronteiras temporais ou espaciais.

Ainda no palco, foi interpretada por Frances Williams. Não tardou a ser gravada logo em 1931 por Rudy Vallée, popular cançonetista da época, tendo obtido algum êxito. Mas a verdadeira fama só surgiu ao renascer no filme, pela segunda vez como enxerto em pauta alheia. A versão discográfica da década anterior foi então recuperada, inaugurando um cortejo interminável de versões. O tema de Hupfeld viria a tornar-se um ícone da música popular norte-americana nas vozes de Frank Sinatra, Nat King Cole, Louis Armstrong, Carmen McRea, Jimmy Durante, Sammy Davis Jr. – e até com intérpretes tão improváveis como Carly Simon, Bryan Ferry e Rod Stewart.

Os seus acordes iniciais transformaram-se na assinatura musical da Warner. E o Instituto do Filme Americano elegeu-a em 2004 como a segunda mais popular canção da história da Sétima Arte, tendo apenas Over the Rainbow à sua frente.

 

Revejo o filme, uma vez e outra: é talvez o melodrama que mais vezes me prendeu ao ecrã nas diversas fases da vida. Rick, no decisivo diálogo que trava com uma Ilse em lágrimas no aeroporto, alerta-a para a realidade: aquele era um tempo de hinos bélicos, não de melodias de amor. O mundo precisava de ser salvo.

Ficou-lhes a memória de Paris. E a canção, que era só deles, passou a ser nossa: nunca nos separaremos dela, irá acompanhar-nos para sempre.

Canção que – logo no título – nos fala do tempo a escoar-se. E que nos ajuda a perceber tudo quanto há de precário no que é eterno e tudo quanto há de eterno no que é precário.

 

«It's still the same old story / A fight for love and glory / A case of do or die. / The world will always welcome lovers / As time goes by.»

 

As canções da minha vida (13)

Pedro Correia, 18.01.19

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DREAM A LITTLE DREAM OF ME

1931

 

Há canções com existência muito imprevisível. Nascem numa determinada época e permanecem décadas no limbo até se popularizarem em definitivo sem pré-aviso, adquirindo dimensão universal, numa época bem diferente. Como se estivessem fadadas para ultrapassar todos os testes de popularidade só quando confiadas à voz mais adequada ou à interpretação mais arrebatadora.

Aconteceu com aquela que hoje aqui trago. Um foxtrot ingénuo e agridoce, concebido nos dias amargos da Grande Recessão, quando a telefonia, o cinema e o disco – meios tecnológicos com existência ainda recente à época – funcionavam como janelas abertas para o sonho no quotidiano macilento e estreito de milhões de norte-americanos.

 

Dream a Little Dream of Me nasceu do talento de dois jovens músicos, ambos em começo de carreira: Wilbur Schwandt (1904-1998) e Fabian Andre (1910-1960), associados a Gus Kahn (1886-1941), letrista da Broadway que trabalhou na época áurea de Hollywood.

A gravação inicial foi difundida com êxito moderado a 16 de Fevereiro de 1931, para a editora Brunswick Records, a cargo de outro jovem: Ozzie Nelson, que em 1930 formara a sua orquestra ligeira, conquistando de imediato forte audiência na programação radiofónica. Dois dias depois, outro registo discográfico, trazendo a chancela da Victor Records e o som da orquestra de Wayne King, apelidado de Rei da Valsa, com Ernie Birchill como vocalista. Kate Smith – a quem chamaram Primeira Dama da Rádio – interpretou a canção também logo em 1931, tornando-a num marco do seu vasto repertório musical.

Nunca Schwandt e Andre, em conjunto ou separados, conceberam um tema tão popular e perdurável como este, que nas décadas de 40 e 50 conheceria múltiplas versões, nas vozes de Barbara Carroll, Joni James, Dean Martin, Doris Day, Louis Armstrong e Nat King Cole, entre outras. Só em 1950 teve sete registos discográficos, interpretados por gigantes do espectáculo e da música popular: Frankie Laine, Ella Fitzgerald, Jack Owens, Louis Jourdan, Vaughn Monroe, Dinah Shore e um duo formado por Bing Crosby e Georgia Gibbs.

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Em 1968, quando já pareciam ter ficado para trás os dias de glória desta canção praticamente quarentona à época, Dream a Little Dream of Me ressurgiu inesperadamente num ano-chave da música popular, no auge dos movimentos contra-cultura, parecendo navegar contra a corrente quando o som dominante era a batida rock. Esta súbita erupção do tema junto de uma nova geração de melómanos que nem imaginavam quem fora Ozzie Nelson ou Ernie Birchill deveu-se ao vulcânico talento de Cass Elliot, a vocalista dos Mamas & Papas, um dos emblemáticos grupos dessa era de todos os prodígios.

Estrela meteórica da década que revolucionou a música popular, Ellen Naomi Cohen nasceu em 1941: tinha 27 anos incompletos quando gravou este tema, incluído no quarto álbum da banda, intitulado The Papas & the Mamas Presented by the Mamas and the Papas. Mudara o nome quando ainda frequentava o liceu, como homenagem à actriz Peggy Cass. E também o apelido, uns anos depois, alegadamente em memória de um amigo íntimo entretanto falecido. Cass Elliot, também chamada Mama Cass por associação com o nome da banda, tinha uma voz possante e muito melódica, capaz de atingir os tons mais inesperados. Se alguém fazia a diferença como intérprete neste quarteto musical, era ela.

Os responsáveis da etiqueta Dunhill Records cedo perceberam isso: do longa-rotação extraíram o single, editado em Junho de 1968, com três minutos e 14 segundos de duração. Este Dream a Little Dream of Me em 45 rotações ascendeu ao segundo posto de vendas na dúbia categoria easy listening dos EUA e ocupou o top generalista australiano a 4 e 11 de Setembro desse ano, além de ter atingido a sétima posição no Reino Unido. Foi um sucesso indiscutível, no plano comercial: venderam-se sete milhões de discos. O destaque dado à vocalista na capa do vinil, intitulado Mama Cass with the Mamas and the Papas (na edição inglesa lia-se apenas Mama Cass), parece ter causado ciúmes no instável quarteto, que integrava também John Phillips (líder e principal compositor da banda), a sua então mulher Michelle Phillips e o canadiano Dennis Doherty.

 

Conta a lenda que os quatro cantarolavam com frequência alguns acordes deste tema quando se juntavam, nomeadamente nas sessões de estúdio. Por influência de Michelle, que vivera na infância com os pais na Cidade do México, onde Fabian Andre tinha residência próxima. Da brincadeira de bastidores à transição para disco, foi um curto passo. 

Era a mesma canção, mas não parecia. A própria Mama Cass confessaria mais tarde, em entrevista à Melody Maker, que pretendeu cantá-la «como se fosse um novo tema» naquela infeliz Primavera dos seus 26 anos – idade demasiado jovem para tantos amores frustrados e tanta dor irreversível que já lhe tingiam a biografia. Objectivo conseguido: sem o stacatto de anteriores versões, com uma dolência magoada, o tema ganhava densidade, vislumbrava-se ali uma subtil sugestão de angústia existencial para além do pretexto romântico.

Era uma balada antiga, mas parecia a mais recente do universo. Cass interpretava-a como se fosse a última canção da sua vida. Como se adivinhasse que morreria jovem – em 1974, aos 32 anos, deprimida e só. Como se intuísse que o seu brilhantismo vocal haveria de conferir um sopro de imortalidade àqueles singelos versos que hoje, já num milénio diferente, trauteamos com uma emoção sem rasto de fronteiras temporais.

 

«Stars shining bright above you / Night breezes seem to whisper "I love you" / Birds singin' in the sycamore tree / Dream a little dream of me // Say "nighty-night" and kiss me / Just hold me tight and tell me you'll miss me / While I'm alone and blue as can be / Dream a little dream of me.»

 

Algumas canções da minha vida

Pedro Correia, 31.03.18

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São estas:

La Valse a Mille Temps (Jacques Brel, 1959)

Summertime (George e Ira Gershwin, 1935)

C'est Si Bon (Henri Betti e André Hornez, 1948)

Coimbra (Raul Ferrão e José Galhardo, 1947)

Strangers in the Night (Ivo Robic, Bert Kaempfert, Charles Singleton e Eddie Snyder, 1966)

Indian Summer (Victor Herbert e Al Dubin,1939)

The Sound of Silence (Paul Simon, 1964)

Um Homme et une Femme (Francis Lai e Pierre Barouh, 1966)

João e Maria (Sivuca e Chico Buarque, 1977)

Fly Me To the Moon (Bart Howard, 1954)

Winchester Cathedral (Geoffrey Stephens, 1966)

Zé Cacilheiro (Carlos Dias, César de Oliveira e Paulo da Fonseca, 1966)

 

Outras não tardarão a vir aí.

Quais são as canções das vossas vidas?

As canções da minha vida (12)

Pedro Correia, 06.04.17

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ZÉ CACILHEIRO

1966

 

Este país esquece com chocante persistência os seus valores. Começa por esquecê-los ainda em vida, condenando-os ao ostracismo, e acentua essa tendência depois do seu desaparecimento físico, enclausurando-lhes a memória sob sucessivas pedras tumulares. Como se nunca tivessem existido.

Isto sucede vezes de mais no domínio da expressão musical. Grandes compositores, grandes orquestradores, grande musicólogos que tiveram o condão de tornar este povo menos duro de ouvido acabam por morrer duas vezes. A primeira, paradoxalmente, quando ainda se encontram entre nós mas já foram cobertos pelo manto do silêncio, acentuado pela ignorância dos responsáveis “culturais” e pela amnésia mediática.

Tenho pensado nisto sempre que parte alguém que nos deixou um legado de belas partituras. Recebem uns parágrafos de gélido obituário nos jornais e eclipsam-se da memória colectiva, sem que ninguém pareça interessado em colmatar essa injustiça. Gente como Alain Oulman, Carlos Nóbrega e Sousa, Manuel Paião, José Calvário, José Niza, Pedro Osório, Fernando Correia Martins – ainda há pouco Arlindo de Carvalho. Todos foram capazes de nos dar muito boa música. Nenhum deles merece ser perpetuado no silêncio.

 

Tendo nós um canal público de televisão, compete-lhe funcionar como memória viva da nossa comunidade musical. E houve um período em que isso aconteceu. No final dos anos 70, num programinha de humor e música intitulado A Feira, a RTP ainda a preto e branco convidou antigos compositores e conversou com eles, apresentando-os pela primeira vez à minha geração. Maestros como Frederico Valério e Carlos Dias, só para mencionar dois dos que passaram nessas emissões (que devem ter sido apagadas dos registos da TV estatal, pois nunca as vi incluídas na RTP Memória).

Uma fórmula ampliada e melhorada em 1981, já a cores, com E O Resto São Cantigas, pela mão dos três mosqueteiros Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz (também responsáveis por Zip Zip e A Visita da Cornélia, outros mega-sucessos da RTP). Aí escutei pela primeira vez o Zé Cacilheiro, interpretado ao vivo pelo seu primeiro e melhor intérprete, o actor José Viana.

Este fado-canção entrou-me logo no ouvido. E desde então tem-me acompanhado por diversas paragens e nas mais diversas situações. Já o cantei no duche, no carro, na praia. Já o cantei em restritos grupos de amigos: «Quando eu era rapazote / Levei comigo no bote / Certa varina atrevida. / Manobrei e gostei dela / E lá me atraquei a ela / P'ró resto da minha vida.»

Não terá sucedido só comigo. Foi um sucesso instantâneo – do disco, da rádio, do transístor, da cassete. Nasceu em 1966 no palco do Teatro Variedades como número musical de uma rábula da revista Zero, Zero, Zé – Ordem P'ra Pagar, protagonizada por José Viana e Carlos Coelho a propósito da inauguração da ponte sobre o Tejo, ocorrida nesse Verão.

“Enquanto houver um passageiro a ir no bote, a exploração continua”, dizia o sarcástico e talentoso Viana, em aberta alusão a um dos slogans do salazarismo naquele ano em que se cumpria o 40.º aniversário da chamada Revolução Nacional. As plateias, habituadas a decifrar entrelinhas, estoiravam à gargalhada.

 

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Espaço de liberdade condicionada entre as malhas da censura, a revista à portuguesa vivia então um dos seus períodos áureos. Alguns dos maiores sucessos de sempre da música portuguesa nasceram precisamente ali no Parque Mayer, onde nenhum actor se negava a cantar.

O Variedades era um palco mítico, onde nas quatro décadas anteriores haviam desfilado Vasco Santana, Beatriz Costa, Teresa Gomes, Mirita Casimiro, Irene Isidro, Raul de Carvalho, Laura Alves, Manuel Santos Carvalho, Costinha, Maria Lalande, Eugénio Salvador, Hermínia Silva, Humberto Madeira, Amália Rodrigues, Eunice Muñoz e Solnado.

Zero, Zero, Zé – Ordem P'ra Pagar foi o último grande sucesso daquelas tábuas: ainda nesse ano, o teatro era destruído por um incêndio quando ali se exibia a peça Descalços no Parque, de Neil Simon.

 

Zé Cacilheiro deveu-se à  inspiração de Carlos Dias associada a dois letristas de muito mérito e também hoje injustamente esquecidos: Paulo da Fonseca (1913-73) e César de Oliveira (1928-88). As melhores cantigas das revistas surgiam destas colaborações impostas pela urgência da encomenda.

Mérito acentuado pelo talento de José Viana, para sempre associado ao tema, que viria a ser registado também como Fado do Cacilheiro na Sociedade Portuguesa de Autores. O vinil de 45 rotações editado ainda em 1966 foi durante anos um dos campeões dos programas de “discos pedidos” que garantiam grandes audiências radiofónicas.

“Desta vez canto um fado. Não como cantaria um fadista mas como suponho que o faria um cacilheiro de meia-idade que, quando era mais novo, cantava nas revistas da sociedade de recreio lá do seu sítio.” Palavras do próprio actor, impressas nesse disco que tanto sucesso fez. E que para sempre ficaria ligado ao imaginário de Lisboa.

Outros gravaram também o tema – entre eles, Fernando Farinha, António Mourão e Nuno da Câmara Pereira. Mas ninguém conseguiu igualar José Viana.

 

Carlos Dias não só compôs: também o acompanhou com a sua orquestra na versão discográfica. E foi ele igualmente o criador de dois outros enormes êxitos da canção portuguesa nascida nos palcos da revista: Lisboa à Noite, celebrizada por Milu, e Cheira a Lisboa, desde sempre associada a Anita Guerreiro.

Estranhamente, este maestro que tanto amou Lisboa não consta da toponímia alfacinha. É tempo de a capital portuguesa lhe prestar a merecida homenagem, descerrando-lhe uma placa de rua.

E é tempo de a RTP organizar uma nova série do programa E o Resto São Cantigas, consagrada aos compositores e orquestradores que ainda se encontram entre nós e merecem que o canal público lhes preste tributo. Deixo alguns nomes, em jeito de sugestão: José Luís Tinoco, Manuel Freire, Nuno Nazareth Fernandes, José Mário Branco, José Cid, Nuno Rodrigues, António Avelar Pinho, Fernando Tordo, Sérgio Godinho, Tozé Brito, Fausto Bordalo Dias. Sem sectarismos, sem capelinhas pacóvias, sem visões estreitas. Com sopro artístico e rasgo musical.

 

«Sou marinheiro / Deste velho cacilheiro / Dedicado companheiro/ Pequeno berço do povo / E navegando / A idade foi chegando / O cabelo branqueando / Mas o Tejo é sempre novo.»

 

As canções da minha vida (11)

Pedro Correia, 03.04.17

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WINCHESTER CATHEDRAL

1966

 

Vivíamos em Viana do Castelo, o meu pai chegara pouco antes de Oxford, onde leccionara dois anos lectivos. À tarde, em casa, dava explicações de inglês a um grupo de alunos. Eu, miúdo, assistia a esses alegres diálogos, desenrolados no idioma das séries televisivas de que mais gostava. Achava tudo muito mais interessante do que as aulas na escola primária de Darque, onde decorriam as minhas intermináveis manhãs.

Desde logo porque nessas tardes de explicações lá em casa, na Rua do Gontim, havia música. De vez em quando, no prato do gira-discos, rodava um disco de 45 rotações. As letras das canções eram depois dissecadas e comentadas em grupo. Assim aqueles adolescentes iam consolidando os seus conhecimentos. Assim eu – intruso de palmo e meio – ia fixando as primeiras palavras em inglês, todas monossilábicas. ‘Bag’, ‘car’, ‘dog’, ‘boy’, 'song'…

 

Guardo memória difusa dessas cantigas. Excepto de uma – a que achei mais original e divertida. De tal maneira que guardei a letra anotada por alguém numa folha que ali passava de mão em mão. Já no meu quarto, procurei decifrá-la, confesso que sem grande sucesso.

Era Winchester Cathedral. Uma cançoneta de vaudeville assumidamente demodée, composta como assumido pastiche das revistas da década de 20 por Geoffrey Stephens, autor de programas humorísticos, rábulas radiofónicas e ocasionais sucessos do teatro musicado. Levava-se tão pouco a sério que jamais antecipou o êxito planetário deste seu tema, um dos mais tocados em 1966 nas rádios de quase todo o mundo.

A brincadeira era tão óbvia que foi preciso improvisar uma banda quase tão fictícia como a Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band que os Beatles celebrizariam um ano mais tarde. The New Vaudeville Band, reunida para a gravação do single nesse mês de Junho, tinha o fascínio do seu próprio amadorismo nesta homenagem serôdia aos velhos salões de dança, acentuada pelos traços caricaturais do vocalista John Carter, usando um megafone em sátira aos cantores da era anterior à generalização do microfone – o mais célebre dos quais foi Rudy Vallee.

 

Pegou de estaca. De tal maneira que nesse final de 1966 atingiu o quarto lugar nos tops britânicos e cruzou o Atlântico, onde chegaria à primeira posição nas vendas, competindo em Dezembro com Good Vibrations, dos Beach Boys. Pouco depois receberia o Grammy como melhor canção do ano. Vendeu mais de três milhões de cópias em todos os continentes. E teve inúmeras versões internacionais, incluindo uma portuguesa, do Quinteto Académico.

De repente, a música parecia estar em todo o lado. Uma versão quase simultânea interpretada por Dana Rollin foi igualmente um sucesso de vendas. Os Shadows e a orquestra de James Last fizeram versões instrumentais do tema, cantado em 1967 também por Petula Clark, Ray ConniffLawrence Welk e Dizzy Gillespie. Até Frank Sinatra o gravou, embora sem resultados brilhantes.

Stephens, hoje com 82 anos, nem queria acreditar que a sua cantilena de dois minutos e 20 segundos, concebida quando mirava uma imagem da  Catedral de Winchester impressa num calendário de parede, havia alcançado aquela repercussão, tornando-se um ícone da música popular. De tal modo que o próprio Rudy Vallee, remota  pop star do fonógrafo e da telefonia, também fez questão de interpretar o tema em disco.

Fechava-se um ciclo: o homenageado associava-se assim à homenagem.

 

Há meses, pegando num livro antigo, saltou-me lá de dentro a folha já amarelada com a letra de Winchester Cathedral. E logo esse pedaço de papel me devolveu à soalheira sala daquele segundo andar em Viana, às alegres aulas recitadas e cantaroladas em inglês, ao Pai exercendo aquilo que mais gostou de fazer na vida - ensinar.

As canções também têm este dom: são capazes de nos transportar a qualquer momento a um passado que pensávamos definitivamente sepultado na memória. Como escreveu Fernando Pessoa, pela pena do seu heterónimo Ricardo Reis, "em tudo quanto olhei fiquei em parte".

Substitua-se neste caso "olhei" por "escutei": vem a dar no mesmo.

 

«Winchester Cathedral / You're bringing me down / You stood and you watched as / My baby left town. // You could have done something / But you didn't try / You didn't do nothing / You let her walk by.»

 

As canções da minha vida (10)

Pedro Correia, 26.03.17

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FLY ME TO THE MOON

1954

 

Deve ter acontecido com milhões de rapazes como eu: passei a infância a idolatrar os astronautas que se aventuravam a esbater a distância entre a Terra e a Lua. Armstrong, Aldrin e Collins – o trio da Apolo 11 que fez a primeira viagem ao nosso satélite natural e ali alunou na épica madrugada de 21 de Julho de 1969 (hora portuguesa) – eram os meus heróis de carne e osso, suplantando os pilotos da fórmula 1, como Jackie Stewart e François Cévert, e deixando a larga distância as figuras da banda desenhada que me acompanhavam por todo o lado: Astérix, Lucky Luke, Blake & Mortimer, Ric Hochet…

O hino da odisseia interplanetária tornou-se naturalmente Fly Me to The Moon, primeira canção ouvida na Lua graças a um leitor de cassetes portátil que Edwin Aldrin levava consigo. Com a versão definitiva deste tema musical, gravado em Junho de 1964 por Frank Sinatra e inserido na faixa inicial do seu disco It Might As Well Be Swing. Ao som da orquestra de Count Basie com os arranjos de Quincy Jones que lhe conferiram um ritmo trepidante e uma vibração inultrapassável.

 

Fly Me to the Moon nascera 15 anos antes da histórica missão à Lua, como balada de cabaré composta em ritmo de valsa – muito diferente da roupagem musical que viria a tornar-se familiar aos nossos ouvidos. Nasceu até com outro nome: chamava-se In Other Words quando Felicia Sanders a cantou em estreia no Blue Angel, mítico night club em Manhattan.

O autor – letra e música – foi Bart Howard (1915-2004), um pianista profissional que antes de ser mobilizado para a guerra alcançara alguma fama em meios restritos ao compor If You Leave Paris (1938) para Mabel Mercer. Mas o verdadeiro sucesso só chegaria quando In Other Words, concebida em 1954, passou a chamar-se Fly Me To the Moon, no final dessa década.

 

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E no entanto o tema parecia fadado a passar despercebido. De tal modo que figurou apenas no lado B do disco de 45 rotações da gravação original, na voz de Kaye Ballard, com dois minutos e 14 segundos. A sorte só começou a virar em 1959, com a bela interpretação jazzística de Nancy Wilson e sobretudo em Outubro de 1960, quando Peggy Lee a cantou ao vivo no popularíssimo programa televisivo de Ed Sullivan, na CBS.

Até hoje, já conheceu mais de 500 versões. Nas vozes de Tony Bennett, Judy Garland, Brenda Lee, Doris Day, Ella Fitzgerald, Bobby Womack, Della Reese, Sarah Vaughan, Johnny Mathis, Anita O' Day, Nat King Cole, Eydie Gormé, Astrud GilbertoMichael Bolton e Diana Krall. Algumas entre tantas.

 

Bart Howard, que começou a escrever canções com a ambição - jamais concretizada - de se tornar um novo Cole Porter, pareceu sempre surpreendido com a enorme popularidade de In Other Words, que só em 1963 passou a intitular-se oficialmente Fly Me To the Moon. “Demorei vinte anos a aprender a escrever uma canção em apenas vinte minutos”, confessaria mais tarde, quando vivia quase em exclusivo dos direitos deste tema, que na voz de Sinatra para sempre ficou associado à conquista do espaço. Não apenas como metáfora mas em sentido literal.

É assim que o escuto ainda hoje, ao trauteá-lo uma vez e outra nos dias em que acordo mais insuflado de optimismo e energia: como um símbolo de quem é capaz de transpor todas as fronteiras e ultrapassar todas as barreiras.

O céu é o limite e há sempre novos mundos por desbravar.

 

«Fly me to the moon / Let me play among the stars / Let me see what spring is like / On a-Jupiter and Mars / In other words, hold my hand / In other words, baby, kiss me.»

 

As canções da minha vida (9)

Pedro Correia, 23.03.17

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JOÃO E MARIA

1977

 

Houve um tempo em que o País parava para ver telenovelas brasileiras. Tudo começou com a Gabriela, acalmados já os ardores revolucionários. A moda pegou e durante anos não falhámos as que iam sendo exibidas em doses sucessivas ainda a preto e branco na RTP, monopolista da transmissão televisiva em Portugal: O Casarão, O Astro, Dancin' Days, Pai Herói

Recordo-me como se fosse hoje do genérico de Dancin' Days, telenovela urbana e contemporânea, muito diferente do imaginário de Jorge Amado: a canção-tema das Frenéticas irrompia no ecrã aproveitando a febre do disco sound então muito em voga, fazendo furor nas pistas de dança.

Durante meses a fio, o folhetim televisivo teve quase tanto sucesso entre nós como tivera pouco antes no Brasil, onde foi exibido entre Julho de 1978 e Janeiro de 1979. Em grande parte devido à qualidade do elenco, onde se destacavam Sónia Braga, António Fagundes, Joana Fomm, José Lewgoy, Reginaldo Faria, Pepita Rodríguez e Mário Lago. E também das canções nele inseridas, incluindo Antes que Aconteça, de Marília Barbosa, Outra Vez, de Márcio Lott, Amanhã, de Guilherme Arantes, e Copacabana, de Dick Farney.

Mas o tema que mais me prendeu foi uma valsinha que iluminava as cenas do par romântico juvenil. Ela, a Glória Pires, no seu primeiro papel de relevo na televisão. Ele, o malogrado Lauro Corona, em estreia absoluta na Globo. Nós tínhamos a idade deles: revíamo-nos naquelas personagens e naquelas situações. Ao som de João e Maria, fabuloso dueto entre Nara Leão e Chico Buarque.

 

Durante três décadas, este tema só teve música. Composta em 1947 pelo genial Sivuca, Severino Dias de Oliveira (1930-2006) – maestro, orquestrador, instrumentista, mago da guitarra e da sanfona. Reza a lenda que a melodia funcionou na perfeição para todo o tipo de serenatas do namoradeiro compositor, que em 1976 decidiu remetê-la a Chico Buarque. Era tempo de encontrar uma letra adequada – e quem melhor do que o criador de A Banda, Pedro Pedreiro e Construção para lhe colar uns versos?

Chico, hoje com 72 anos, fez mais que isso: criou uma das mais belas trovas de sempre da chamada música popular brasileira. Escrita como se fosse um diálogo entre duas crianças que não queriam tornar-se adultas, remetendo-nos para o imaginário dos irmãos Grimm.

O cantor explica assim como lhe surgiu a inspiração: «Ele [Sivuca] mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1947, por aí. Eu falei: “Mas isso foi quando eu nasci.” A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha ele dizia: “Fiz essa música em 47.” Aí pensei: “Mas eu era criança…” e me levou pra aquilo.»

E levou muito bem. “Forma e conteúdo perfeitos”, na definição certeira de Nara Leão. O dueto com Chico teve estreia num disco dela surgido em 1977: Os Meus Amigos São um Barato – faixa sete do LP, dois minutos e 23 segundos de fascinantes jogos de palavras acompanhados pelo próprio Sivuca (tocando sanfona e violão), João Donato (teclado), Luizão Maia (contrabaixo), J. T. Meirelles (flauta) e Paulinho Braga (bateria).

 

Meses depois, transposto do disco original para a banda sonora da telenovela de Gilberto Braga, cujo LP vendeu quase um milhão de cópias, João e Maria passou a ser cantado no Brasil inteiro. E não tardou a cruzar o Atlântico, desembarcando em Portugal. Onde se tornou numa espécie de hino de uma geração incuravelmente romântica – aquela a que pertenço.

Geração hoje de adultos que jamais esquecem os seus dias de meninos prontos a enfrentar batalhões imaginários para impressionar princesas lindas de se admirar. Os anos voam mas o disco mantém-se a rodopiar ao ritmo da valsa lenta, clarão solar teimando em iluminar a noite que não tem mais fim.

 

«Agora eu era o herói / E o meu cavalo só falava inglês / A noiva do cowboy / Era você além das outras três. // Eu enfrentava os batalhões / Os alemães e seus canhões / Guardava o meu bodoque / E ensaiava um rock para as matinês. // Agora eu era o rei / Era o bedel e era também juiz / E pela minha lei / A gente era obrigado a ser feliz. // E você era a princesa / Que eu fiz coroar / E era tão linda de se admirar / Que andava nua pelo meu país.»

 

As canções da minha vida (8)

Pedro Correia, 18.03.17

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UN HOMME ET UNE FEMME

1966

 

Já aqui anotei: está por fazer a devida homenagem às orquestras de Paul Mauriat, James Last e Mantovani, que durante largos anos ajudaram a promover os temas produzidos por terceiros, divulgando-os junto de camadas populacionais que associavam sobretudo os sons musicais aos grupos de baile. Houve um tempo, acreditem, em que a música servia muito mais para dançar do que para ouvir passivamente. Tempos da minha infância e pré-adolescência, longe de Lisboa e dos circuitos sofisticados da reverência discográfica.

Nessa época, como em qualquer outra, havia temas musicais que nos entravam de imediato no ouvido, ficando connosco para sempre. Aconteceu-me com aquele de que hoje falo, tornado célebre por via do cinema mas que terei escutado muito antes de ver o filme, em versão orquestral, precisamente numa cassete de Mauriat ou num vinil de Klaus Underlicht. Este tema, ao contrário da maioria, não era “dançável”. Mas entranhava-se de tal maneira que passou a andar na boca de milhões de pessoas, atraídas sobretudo pelas quatro notas do seu refrão onomatopeico: “da ba da ba da, da ba da ba da…”

 

A canção nasceu em 1966 da parceria entre dois jovens muito criativos: o acordeonista e compositor  Francis Lai e o jornalista e cantor  Pierre Barouh, apostados em renovar a canção francesa, na linha de um Michel Legrand, que acabara de alcançar êxito internacional graças à inspirada colaboração com o cineasta Jacques Demy em Les Parapluies de Cherbourg.

Barouh vivera uns tempos em Lisboa, onde em 1959 comprou o disco Chega de Saudade, de João Gilberto: a partir daí, introduziu a bossa nova em França, alterando o panorama musical do país. Também ele mudou, enveredando em definitivo pela carreira musical. Com manifesto sucesso, por exemplo, na adaptação do Samba da Bênção – de Vinicius e Baden Powell – que entre os franceses seria conhecido por Samba Saravah.

 

Todas as vidas são feitas de encontros e desencontros. O encontro mais importante na vida de Lai, hoje a escassos dias de festejar 85 anos e autor de mais de 600 canções, aconteceu quando o realizador Claude Lelouch lhe pediu uma composição para um filme que iria rodar no norte de França. "É uma história de amor", limitou-se a dizer Lelouch, lacónico. O músico foi tocando no seu inseparável acordeão vários temas que tinha em carteira até que, por volta das duas da manhã, surgiu aquele que seduziu enfim o cineasta.

Assim surgiu Un Homme et une Femme – o filme associado para sempre à cantiga homónima que lhe serve de senha, uma das últimas erupções mundiais do cinema francês antes da crise prolongada que viria a divorciá-lo das plateias durante décadas. Melodrama rodado em Deauville, com Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant interpretando dois jovens viúvos. Barouh entrou também como actor. E na vida da deslumbrante Anouk, com quem estaria casado nos três anos seguintes.

 

A película atraiu público e crítica. Conquistou a Palma de Ouro em Cannes e o Óscar para melhor longa-metragem estrangeira. Lai foi nomeado para o Globo de Ouro e viria a ganhar a ambicionada estatueta em Hollywod quatro anos depois, com Love Story.

Barouh fundou a sua própria editora discográfica, chamada Saravah, só para gravar a banda sonora do filme. Un Homme et une Femme, espantosamente, fora recusada pelas grandes etiquetas do sector: “Não é comercial”, disseram-lhe. Quem assim falou padecia de graves problemas auditivos e não tardou a arrepender-se: gravada no Estúdio Davout, em Paris, a canção com dois minutos e 42 segundos de duração tornou-se Disco de Ouro, num duo formado pelo próprio Barouh e por Nicole Croisille, então mais conhecida por ser intérprete de jazz, acompanhados apenas pelo pianista Maurice Vender, o que acentuou o carácter intimista do tema romântico.

Nas quatro décadas seguintes, Pierre e Nicole voltariam a cantar Un Homme et une Femme um número incontável de vezes – até à morte dele, aos 82 anos, em Dezembro de 2016. E a canção conheceu mais de 300 versões, entrando também na América pela voz de Ella Fitzgerald.  

 

Ironias do destino: hoje Lelouch é um cineasta muito esquecido e o mais afamado dos seus filmes tornou-se praticamente desconhecido das gerações mais recentes. Apesar das inovações que introduziu, alternando a cor com o preto e branco e fazendo movimentos circulares de câmara, como se dançasse a valsa ao som da partitura de Lai.

Pouco importa. Hoje octogenários, Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant serão eternamente jovens na praia de Deauville, envolvidos naquela melodia que os ultrapassou em celebridade e permanece sem uma ruga. Como nos ensinou Debussy, “a música é a expressão do inexplicável”.

«Comme nos voix da ba da ba da da ba da ba da / Chantent tout bas da ba da ba da da ba da ba da / Nos cœurs y voient da ba da ba da da ba da ba da / Comme une chance comme un espoir.»

 

As canções da minha vida (7)

Pedro Correia, 11.03.17

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THE SOUND OF SILENCE

1964

 

Para os melómanos, 19 de Setembro de 1981 tornou-se uma data com lugar garantido na história. Nessa noite, meio milhão de pessoas acorreu ao Central Park, em Nova Iorque, para assistir à reunião de duas figuras cimeiras da música folk-rock norte-americana, ícones da década de 60 enfim reunidos após anos de uma zanga que parecia insuperável: Paul Simon e Art Garfunkel.

O enorme sucesso do espectáculo – retransmitido por canais de televisão em vários continentes, incluindo a RTP – prolongou-se no disco Concert in Central Park e apresentou a uma nova camada de adolescentes, então a despontar para a música, este duo que naquela década dera ao mundo diversos temas tornados hinos de uma geração: Mrs. Robinson, Homeward Bound, Scarborough Fair, Late in the Evening, The Boxer, Old Friends, America, Bridge Over Troubled Water.

 

Acompanhei o concerto enquanto telespectador. E logo me rendi ao fascínio das canções entoadas por aqueles dois antigos colegas do ensino secundário com jeito para a música que começaram por formar um duo chamado Tom & Jerry. E em 1957 tiveram até um fugaz êxito discográfico, intitulado Hey Schoolgirl.

Simon e Garfunkel, ambos hoje com 75 anos, fizeram apenas seis álbuns com temas originais, entre 1964 e 1970. Mas foi quanto bastou para marcarem a música popular norte-americana e inscreverem os nomes na galeria dos imortais. Paul Simon é, na justa opinião do parceiro, “um dos maiores escritores de canções de todos os tempos”. Enquanto Art Garfunkel se destacou sempre pela sua magnífica voz.

 

A sexta cantiga que Simon escreveu chamava-se originalmente The Sounds of Silence e foi gravada em Nova Iorque, a 10 de Março de 1964 - três meses após o assassínio do presidente John Kennedy, com a América ainda mergulhada num pesado luto. Reza a lenda que Simon gostava de compor na banheira, de luzes apagadas, com a casa de banho a funcionar como câmara de eco. Ali lhe terão surgido os dois primeiros versos: «Hello darkness, my old friend, / I've come to talk with you again.»

Mal imaginava que em menos de dois anos, graças ao decisivo impulso dos programas radiofónicos, aquele tema andaria nas bocas de milhões de jovens. Mas isto só aconteceu à segunda tentativa, quando já se chamava The Sound of Silence. Com o som no singular.

A primeira - ainda com o título original e acompanhada apenas por duas guitarras acústicas - foi um fracasso, ao ser inserida no álbum de estreia do duo, Wednesday Morning, 3 AM. Lançado em Outubro de 1964, o disco só vendeu duas mil cópias e o single dele extraído também não atraiu ninguém.

No ano seguinte, tudo mudou. Melhorou o título e melhorou o acompanhamento, quando o produtor discográfico Tom Wilson - à revelia de Simon e Garfunkel, entretanto regressados à universidade - convocou para o estúdio os músicos que tinham acompanhado Bob Dylan na gravação de Like a Rolling Stone, introduzindo bateria e guitarras eléctricas no novo registo sonoro do tema, com três minutos e cinco segundos de duração, misturando-o com a prévia gravação das vozes.

 

The Sound of Silence despedia-se do acústico original. 

O público aplaudiu: o single relançado em Setembro de 1965 disparou nas vendas. Em Janeiro de 1966 ascendeu enfim ao top norte-americano, disputando-o ao longo desse mês numa renhida luta com We Can Work It Out, dos Beatles.

Dois anos depois, a canção registava nova vaga de sucesso ao figurar em destaque na banda sonora do filme The Graduate [A Primeira Noite], galardoado com o Globo de Ouro para melhor filme de 1968 e com o Óscar para melhor realização (atribuído ao cineasta Mike Nichols). O álbum, que abre e encerra com The Sound of Silence, liderou a lista das vendas discográficas nos EUA entre 6 de Abril e 25 de Maio de 1968, e novamente de 15 a 28 de Junho.

 

Ainda hoje custa a crer que um jovem com 21 anos criasse um tema com a qualidade musical e a complexidade poética desta bela trova, tão actual hoje como há meio século - magoado grito de revolta contra um mundo cada vez mais povoado de gente incapaz de comunicar.

«And in the naked light I saw / Ten thousand people, maybe more / People talking without speaking / People hearing without listening / People writing songs that voices never share / And no one dared / Disturb the sound of silence.»

 

As canções da minha vida (6)

Pedro Correia, 07.03.17

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INDIAN SUMMER

1939

 

Há canções que nos vão chegando por vias ínvias. É o caso desta que vos falo hoje: Indian Summer, com uma das mais belas melodias e uma das mais pungentes letras que conheço, surgiu-me inicialmente em português como banda sonora do genérico da telenovela Ciranda de Pedra, exibida na RTP em 1981.

Acompanhei com indisfarçável fascínio esta luxuriante produção da Rede Globo com base num romance de Lygia Fagundes Telles. Gostei de tal maneira que não tardei a comprar esse livro e um outro da grande romancista brasileira, intitulado As Meninas.

Fiquei fã de Lygia. E também da canção, nessa versão do Quarteto em Cy: “Ontem / Na tarde formosa / No céu cor de rosa / Longe, longe / Divagando e pensando em ti fiquei / Tuas juras de amor eu recolherei // Melancolicamente / Lembrei o passado / Procurei-te ao meu lado / Triste sonho / Como o sol no poente morreu / Assim minh’ alma escureceu / Na solidão. / Noite, noite em meu coração.»

 

Estava então ainda longe de saber que este singular Céu Cor de Rosa era afinal Indian Summer, tema nascido em 1919 com outro nome, An American Idyll, graças ao talento musical de Victor Herbert (1859-1924), compositor irlandês que fez carreira como concertista na Áustria e na Alemanha antes de se radicar nos EUA. A música ligeira era apenas um veículo ocasional para Herbert arredondar a conta bancária ao fim do mês: no seu currículo como criador constam duas óperas, uma cantata, 43 operetas e 31 composições para orquestra.

Indian Summer ficou duas décadas na gaveta: era ainda só música, sem versos. Até Al Dubin (1891-1945) – um dos letristas mais prolíficos da Broadway, galardoado em 1936 com o Óscar da melhor canção em Hollywood, com Lullaby of Broadway, em parceria com Harry Warren – ter sido desafiado em 1938 pela filha de Herbert a conceber os versos mais adequados à partitura, que permanecia em pousio. Assim nasceu esta magnífica balada que nos fala de um amor para sempre dissolvido com a mudança de estação.

Corria o ano de 1939 quando começou a popularizar-se graças à gravação da orquestra de Tommy Dorsey, em ritmo de foxtrot, tendo como vocalista Jack Leonard. Êxito instantâneo desta faixa, com 3 minutos e 25 segundos de duração: 14 semanas no top musical, chegando a n.º 1. Outra grande banda, a de Glenn Miller, gravou-a no ano seguinte, também com inegável sucesso: oito semanas no top de vendas, atingindo a posição 8. A rádio, que iniciava a sua época de ouro, contribuiu para divulgar as duas versões.

 

E desde então Indian Summer nunca mais parou de partir corações, seduzindo um número incontável de intérpretes e ganhando estatuto de standard no universo do jazz logo a partir de 1940, com o clarinetista Sidney Bechet. Seguiu-se uma galeria de estrelas instrumentais e vocais, em sucessivas versões de luxo. Com destaque para as de Ella FitzgeraldSarah Vaughan (com a orquestra de Count Basie), Chet Baker, Coleman Hawkins, Dave Brubeck e John Pizzarelli (com o quinteto de George Shearing), entre tantas outras.

Uma das que prefiro é a de Frank Sinatra, acompanhado pela orquestra de Duke Ellington (incluindo os magníficos solos de Johnny Hodges, campeão absoluto do saxofone tenor) numa gravação de 12 de Dezembro de 1967 que faz plena justiça ao original.

Lá no céu cor de rosa onde subiram, Victor Herbert e Al Dubin só podem estar orgulhosos da música e das palavras que criaram - hino outonal de tantos amantes vinculados à memória perpétua de uma paixão fugaz.

 

«Summer, you old Indian Summer, / You're the tear that comes after June time laughter. / You see so many dreams that don't come true, / Dreams we fashioned when Summer time was new.»

 

As canções da minha vida (5)

Pedro Correia, 03.03.17

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STRANGERS IN THE NIGHT

1966

 

Houve um tempo, ali pelos anos da adolescência, em que ganhei a mania de tocar piano. Inspirado num amigo que se ajeitava muito bem no teclado, aprendi a distinguir as notas, dediquei horas a estudar escalas e num par de meses comecei também a dar uns toques. Comprei então um livro com dezenas de partituras associadas a Frank Sinatra e adaptei-as mais por intuição do que por sabedoria aos meus incipientes conhecimentos na matéria.

Um dos primeiros temas que arrisquei foi Strangers in the Night. Desconhecendo, à época, que Sinatra sempre rogou pragas a esta canção, uma das mais populares do seu vasto repertório. Forçado a cantá-la, a pedido insistente do auditório em espectáculos ao vivo, era sempre em esforço que o fazia. Nunca descobri o motivo desta aversão: afinal, no início dos anos 50, o futuro intérprete de My Way cantou uma coisa intitulada Mama Will Bark, fazendo dueto com um cão a ladrar - algo que mantém lugar cativo na lista das piores cantigas do século XX.

 

Strangers in the Night nasceu em versão instrumental numa fita de espionagem britânica parcialmente rodada em Portugal, estreada em Março de 1966 sob o título original A Man Could Get Killed e entre nós intitulada Dança dos Diamantes. Com os nossos compatriotas Virgílio Teixeira, Glória de Matos e Óscar Acúrcio em papéis secundários. E a grega Melina Mercouri, como cabeça de cartaz, interpretando uma portuguesa.

Melina recusou cantar no filme o tema composto a dois tempos pelo croata Ivo Robic (1923-2000) e o alemão Bert Kaempfert (1923-1980), e pelos letristas americanos Charles Singleton (1913-1985) e Eddie Snyder (1919-2011), alegando – provavelmente com razão – que se adequava mais a uma voz masculina. E por esta via sinuosa a balada chegou ao crooner Jack Jones, o primeiro gravá-la. Três dias mais tarde, a 11 de Abril de 1966, seria a vez do registo vocal de Sinatra, com dois minutos e 25 segundos de duração.

Um mês depois, Strangers in the Night tornou-se um êxito instantâneo na primeira faixa do LP homónimo, que viria a ser o maior sucesso comercial de toda a longa discografia do intérprete de All the Way. Atingiu o primeiro lugar de vendas nos EUA e no Reino Unido, algo que não sucedia desde 1955 na carreira de Sinatra. Permaneceu 15 semanas no top discográfico e no ano seguinte valeu ao caprichoso intérprete o Grammy para melhor intérprete masculino de música popular, além de ser disco do ano e receber também um galardão para melhor arranjo musical.

 

De então para cá, Strangers in the Night tornou-se numa das canções mais tocadas em todo o mundo. Étrangers dans la Nuit em francês, No Puedo Olvidar em espanhol, Sola Più Che Mai em italiano, Fremde in der Nacht em alemão. E Estranhos numa Noite em português, na voz de Simone de Oliveira.

Nada disto contribuiu para que Sinatra se reconciliasse com ela. Uma história apócrifa, talvez com um fundo de verdade, garante que as sílabas finais da gravação original (“du-bi-du-bi-du”) foram improvisadas pelo cantor, com aparente intenção irónica, procurando marcar distância perante um tema incapaz de lhe causar um assomo de emoção.

Quando a lenda se torna realidade, imprime-se a lenda. O facto é que, tantos anos depois, continuo a assobiar com frequência esta balada, entretanto tornada intemporal. E às vezes ainda dou por mim tocando-a em pensamento novamente no piano adolescente entretanto desaparecido: “dó-ré-dó-ré-dó; ré-mi-ré-mi-ré; mi-fá-mi-fá-mi…”

«Something in your eyes / Was so inviting / Something in your smile / Was so exciting / Something in my heart / told me I must have you.»

 

As canções da minha vida (4)

Pedro Correia, 28.02.17

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COIMBRA

1947

 

Lá em casa, desde os tempos da minha mais remota infância, sempre houve canções. Recordo-me de a minha mãe cantar vezes sem conta – e com ela aprendi largas dezenas, talvez centenas, de cantigas. Também o meu pai cantarolava, com menos jeito e um repertório menos vasto – mas foi quanto bastou para dele herdar umas tantas. E ambas as avós me transmitiram igualmente este gene e este gosto de cantar a qualquer momento: são raras as ocasiões em que uma música não me acompanha. Sem necessitar de auriculares.

Foi numa temporada em casa da minha avó materna, teria eu uns cinco anos, que a ouvi cantar Coimbra pela primeira vez. Lembro-me como se fosse hoje: passava ela roupa a ferro enquanto lhe saíam aqueles versos que logo me atraíram a atenção: «Coimbra é uma lição / de sonho e tradição / o livro é uma canção / e a lua, a faculdade.» Não tardei a repeti-la, incapaz no entanto de me aperceber ainda das subtilezas da letra – de tal maneira que durante algum tempo cantarolava “Olívia é uma mulher”. Fazia algum sentido, para o rapazinho que eu era, que a mulher fosse um livro?

Hoje admito que houvesse tanto de nostalgia como de júbilo na cantoria da avó Maria, desenraizada da sua Coimbra natal, onde raras vezes regressou após o casamento. Uma cidade que também passei a considerar minha já em adulto: a voz do sangue nunca nos abandona.

 

Muitos ignoram que Coimbra nasceu no cinema. Corria o ano de 1947, ia estrear-se a longa-metragem Capas Negras, com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro a encabeçar o elenco - cantores-actores de quem o público exigia ouvir trinados. O realizador Armando de Miranda - que sete anos antes divulgara a canção O Meu Alentejo  no filme  Pão Nosso - encomendou uma cantiga emblemática a um dos maiores duos de autores da música popular portuguesa: o compositor Raul Ferrão (1890-1953) e o letrista José Galhardo (1905-1967), que só tiveram de tirar da gaveta uma composição guardada desde 1939.

Assim nasceu esta belíssima Coimbra, interpretada pela primeira vez por Alberto Ribeiro (um dos estudantes no filme, juntamente com Artur Agostinho e Igrejas Caeiro) mas cedo popularizada por Luís Piçarra e pela própria Amália, que a cantou durante anos nos seus espectáculos e a incluiu no seu primeiro LP editado em Portugal, Amália no Olympia (1957).

Capas Negras foi um dos maiores êxitos de bilheteira do cinema português: permaneceu 22 semanas em cartaz, atraindo cerca de 200 mil espectadores ao Condes, sala lisboeta onde se estreou.

 

O tema de Ferrão e Galhardo não tardou a correr mundo, tanto em versões instrumentais como vocais, sob o título genérico Abril em Portugal adaptado ao respectivo idioma, tornando-se no mais perdurável cartaz turístico do nosso país em forma de música. Logo em 1947 o compositor e letrista irlandês Jimmy Kennedy (1902-1984) elaborou os versos ingleses do tema, que viria a ser celebrizado nas vozes de Louis Armstrong, Bing CrosbyVic Damone e Tony Martin. Em 1953 ascenderia ao segundo lugar do top da Billboard, na versão instrumental da orquestra de Les Baxter. Outras se seguiram, incluindo as de Xavier Cugat e Ray Conniff.

Em francês foi popularizada a partir de 1950 por Yvette Giraud e Eartha Kitt, com versos de Jacques Larue (1906-1961).

Roberto CarlosJulio IglesiasCaetano Veloso - entre tantos outros - também lhe deram voz.

Mas ainda hoje estou convencido de que nunca ninguém a cantou tão bem como a minha avó.

«Coimbra do choupal / Ainda és capital / Do amor em Portugal, ainda. / Coimbra onde uma vez / Com lágrimas se fez / A história dessa Inês tão linda.»

 

As canções da minha vida (3)

Pedro Correia, 27.02.17

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C'EST SI BON

1948

 

Algumas canções acompanham-nos vida fora, etapa após etapa. Estão presentes quando precisamos delas. Ajudam-nos a encarar a vida com doçura, a desvendar-lhe a face mais prazenteira e sorridente.

Acontece com esta, minha parceira de tantas manhãs inundadas de sol. Segue-me desde a adolescência: julgo que a escutei pela primeira vez no meu ano de caloiro no liceu. Vivíamos muito longe de Portugal, numa cidade do antigo império colonial, sem televisão, onde os bailaricos eram um dos divertimentos mais assíduos, com música ao vivo improvisada a partir dos acordes das orquestras de Paul Mauriat e James Last escutadas no leitor de cassetes – novidade absoluta à época.

 

Foi numa dessas cassetes, em versão instrumental, que ouvi pela primeira vez C’ Est Si Bon. Ainda sem saber que as célebres nove primeiras notas deste tema musical haviam surgido por inspiração do acaso ao compositor Henri Betti (1917-2005), quando passeava nas emblemáticas arcadas da sua Nice natal num dia do Verão de 1947. Pianista habituado a acompanhar Maurice Chevalier nos anos da ocupação nazi em França, Betti não tardou a completar a partitura, pedindo de seguida ao seu amigo André Hornez (1905-89), exímio escritor de canções, que lhe improvisasse uma letra.

Assim surgiu um dos mais famosos marcos da canção francesa, então no auge pelas vozes de Edith Piaf, Charles Trenet e do jovem Yves Montand, entre tantos outros. Foi precisamente a Montand que Betti e Hornez remeteram a canção, inicialmente destinada a ser incluída no seu novo repertório, numa série de espectáculos no parisiense Théâtre de l’ Étoile, a partir de Outubro desse ano. Mas o cantor preferiu guardá-la e foi ultrapassado por outro intérprete: a estreia de C’est Si Bon ocorreu a 18 de Janeiro de 1948 na rádio e um mês depois em registo discográfico, com 2 minutos e 40 segundos de duração, na voz do malogrado Jean Marco acompanhado pela popular orquestra de Jacques Hélian.

Começava a ser um sucesso quando Montand enfim a gravou, em Maio. E ficou para sempre associado ao tema, que deu várias voltas ao mundo em diversos idiomas – incluindo o inglês, gravado por Louis Armstrong com a orquestra de Sy Oliver, em Junho de 1950, e o português, interpretado pela brasileira Rita Lee, com letra de Roberto de Carvalho (1988).

Uma das versões mais famosas teve como intérprete Dean Martin, no seu álbum French Style, datado de 1962.

 

C’ Est Si Bon, um foxtrop sensual e festivo, perdura como símbolo musical daqueles trinta anos gloriosos da Europa que se ergueu das cinzas da guerra e se reinventou com uma energia digna de causar inveja ao mundo.

Tempos irrepetíveis, em que todos os sonhos prometiam tornar-se realidade e em que não faltava quem acreditasse que nunca mais guerra alguma voltaria a obscurecer os dias.

 

«C'est si bon / De partir n'importe ou, / Bras dessus, bras dessous, / En chantant des chansons. / C'est si bon / De se dir' des mots doux, / Des petits rien du tout / Mais qui en disent long.»

 

As canções da minha vida (2)

Pedro Correia, 23.02.17

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SUMMERTIME

1935

 

Já não me recordo qual foi a primeira vez que a ouvi. Mas sei bem que me prendeu para sempre. Com aquela toada dolente e melancólica - cantiga de embalar inspirada em espirituais negros, memória musical de uma América sulista ainda com ecos da escravatura.

É impossível ficar indiferente ao sortilégio desta canção composta pelo inigualável George Gershwin (1898-1937), talvez inspirado nas melopeias eslavas que a mãe Rosa, imigrante russa transplantada para Brooklyn, lhe entoava no berço.

Summertime é o mais inesquecível trecho da ópera Porgy and Bess que Gershwin, no auge da sua fama como compositor, estreou em Outubro de 1935 na Broadway. E a partir daí ganhou asas, adquirindo expressão própria: tornou-se um inconfundível standard de jazz, interpretado em mais de 25 mil versões oficialmente registadas ao longo de oito décadas de história da música norte-americana em múltiplas vozes - de Billie Holiday a Norah Jones, passando por Janis Joplin. Sem esquecer a notável versão dos Sheiks em Portugal (1965).

 

Stephen Sondheim elegeu-a como a mais bela canção de sempre - não apenas pela hipnótica partitura do judeu novaiorquino mas também pelos versos de DuBose Heyward (1885-1940), autor do romance Porgy (1925), no qual a ópera se inspirou, e do libretto de Porgy and Bess, em parceria com Ira Gershwin (1896-1983), irmão de George. Poema e pauta combinam na perfeição, sugerindo a languidez estival a que alude a palavra inicial. Precisamente a que dá origem ao título.

Holiday foi a primeira a gravá-la com sucesso, em Setembro de 1936. Mas ninguém a interpretou de forma tão calorosa e envolvente como Ella Fitzgerald, num dos melhores álbuns que a história discográfica já registou: Porgy and Bess, em dueto com Louis Armstrong, que também canta além de nos propiciar o luxurioso som do seu trompete.

Escuto uma vez e outra o CD - e é sempre como se fosse a primeira vez. São 4 minutos e 58 segundos de pura arte musical, gravados em Agosto de 1957. No ano seguinte Porgy and Bess saltaria enfim do teatro musicado e do disco para o cinema, com o filme homónimo de Otto Preminger interpretado por Sidney Poitier, Dorothy Dandridge, Sammy Davis Jr, Pearl Bailey e Diahann Carroll. Um elenco só negro, por imposição de Ira Gershwin, detentor dos direitos da obra. Anos antes recusara a ridícula sugestão de Harry Cohn, patrão da Columbia Pictures, de rodar o filme com Fred Astaire e Rita Hayworth maquilhados de afro-americanos.

 

Dou por mim inúmeras vezes a trautear Summertime. Seja para celebrar os dias estivais, seja para antecipá-los. Crente como Ruy Belo que "é triste no Outono concluir que era o Verão a única estação".

Conheço-me bem: é sempre bom sinal.

 

«Summertime / And the livin' is easy / Fish are jumpin' / And the cotton is high // Your daddy's rich / And your mamma's good lookin' / So hush little baby / Don't you cry // One of these mornings / You're going to rise up singing / Then you'll spread your wings / And you'll fly to the sky.»