RATOS E HOMENS
A Peste, de Albert Camus
«Sinto mais solidariedade com os vencidos do que com os santos. Creio que não tenho gosto pelo heroísmo nem pela santidade. O que me interessa é ser um homem.»
(p. 184)
Há livros que podem ser lidos de várias formas, permitindo diversos níveis de interpretação - sem nunca perderem o fascínio que exercem sobre o leitor. É o caso deste perturbante romance de Albert Camus sobre uma cidade no norte de África - Orão, na então Argélia francesa - sitiada devido à peste.
Li-o pela primeira vez na adolescência, sem atender ao seu mais profundo significado metafórico, e pareceu-me um poderoso retrato da fragilidade humana confrontada com um mal supremo num mundo que deixou de merecer o interesse de Deus. É muito curta a distância que vai do homem como ser supremo da natureza ao homem vítima das mil contingências causadas por essa mesma natureza que sempre tentou dominar sem nunca o conseguir.
A peste, milenar símbolo do mal, surge aqui com um significado especial num século em que o ser humano, mais que nunca, supôs ser o do progresso irrevogável. Em 1900, houve inúmeros festejos por toda a Europa saudando o advento de uma nova era que se imaginava ser de paz perpétua, luzes universais e prosperidade galopante ao dispor de todos. As ilusões podem tornar-se perigosas - como a realidade rapidamente se encarregou de comprovar.
Ao reler este livro muitos anos depois, no entanto, o seu significado alegórico tornou-se-me ainda mais evidente. Quase desde as primeiras linhas, quando um médico residente na segunda maior cidade argelina - "cidade sem pombas, sem árvores e sem jardins", plantada à beira do Mediterrâneo mas crescendo de costas voltadas para o mar - encontra um rato morto no patamar do edifício onde tem o consultório. Depois desse rato, surgem outros. Muitos outros. E em breve Orão estará fechada sobre si própria, de quarentena, transformada num pequeno universo concentracionário, com os seus habitantes a morrerem às centenas, aos milhares. Vítimas de uma doença atávica que todos consideravam já extinta.
O século XX, tempo de peste. Orão, símbolo da Paris ocupada pelos esbirros de Hitler entre 1940 e 1944. Os ratos, a tropa de choque nazi. As brigadas sanitárias que o Dr. Bernard Rieux organiza para combater o mal, num esforço claramente desproporcionado, um evidente paralelo com a resistência francesa ao invasor. O grande romance de Albert Camus - publicado em 1947 - libertava-se do seu significado literal, aos meus olhos de leitor já experiente, surgindo como uma assombrosa metáfora de um tempo de trevas e de um espaço submetido ao bacilo mortal do totalitarismo.
Camus, ele próprio membro da resistência e jornalista envolvido no combate quotidiano às forças ocupantes, nunca teve dúvidas sobre a missão que deve caber aos intelectuais nas encruzilhadas do mundo contemporâneo: a defesa intransigente da liberdade, sabendo que esta é inseparável da justiça. Nenhum sistema ideológico está autorizado a capturar a liberdade em nome de causas que a sufoquem nem a neutralizar a justiça a pretexto de bandeiras que a violentem.
De tudo isto nos fala A Peste (com antiga edição portuguesa dos Livros do Brasil e uma reimpressão surgida já em 2013, sob a mesma chancela, sempre com tradução de Ersílio Cardoso). Num estilo lento, pastoso, sublinhado pela voz quase neutra de um narrador omnisciente que confere um efeito de acrescida verosimilhança à narrativa enquanto desfilam personagens com entrada automática na galeria imortal das melhores ficções literárias de todos os tempos: Rieux, que se esgota em incessantes tentativas de cura de cidadãos anónimos mas é incapaz de salvar a mulher, vítima de outra doença implacável; o forasteiro Tarrou, que um dia descobriu com terror ser filho de um procurador que conduzira pessoas ao cadafalso e desde então decidira "recusar tudo o que, de perto ou longe, por boas ou más razões, faça morrer ou justifique que se faça morrer"; Grand, escritor falhado, eternamente em busca da expressão perfeita de um livro que nunca escreverá; o jovem jornalista Rambert, que procura evadir-se de Orão, dizendo não acreditar no heroísmo, mas que acaba envolvido na resistência; o padre Paneloux, que começa por justificar a peste como praga divina destinada a castigar os pecados humanos, com "esse clarão sublime de eternidade que jaz no fundo de todo o sofrimento", e termina a suplicar a Deus, numa inútil prece de joelhos, que evite a dolorosa agonia de uma criança inocente.
E no entanto, neste mundo eternamente desaguarnecido da misericórdia divina, Camus mobiliza todos os leitores para o inadiável dever da esperança: "É preciso fazer o necessário para deixar de ser um pestiferado e só isso nos pode fazer esquecer a paz ou, na sua falta, uma boa morte."
Romancista de ideias, habituado a teorizar sobre o absurdo da existência humana, este francês nascido na Argélia em 1913 e precocemente desaparecido num acidente de automóvel em Janeiro de 1960, pouco mais de dois anos após ter recebido o Nobel da Literatura, viu a sua reputação agigantar-se desde então, conquistando novas gerações de leitores em sucessivas reedições das suas obras de ficção, teatro e ensaio. O Primeiro Homem, o romance incompleto que transportava na pasta, ainda em rascunho, quando o retiraram dos escombros do veículo em que perdeu a vida, foi lançado em 1994 e aí percebeu-se como a sua popularidade se mantinha intacta: logo na primeira semana, mais de 50 mil exemplares escoaram-se das livrarias. Quantos escritores imaginariam conseguir um best seller três décadas e meia depois da morte?
Um êxito editorial que já tinha alcançado com A Peste: entre Junho e Setembro de 1947, venderam-se 52 mil cópias em três edições desta obra, galardoada nesse mesmo Verão com o Prémio da Crítica.
A identidade do narrador, só desvendada no final do livro, é um dos inúmeros aliciantes deste romance dividido em cinco capítulos, imitando os cinco actos das tragédias clássicas, e que alguns podem ler como um ensaio sobre ética. Não admira que tenha influenciado profundamente outros autores (há, por exemplo, um claro parentesco entre A Peste e o Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago).
Romance alegórico, sim. E romance profético também. Porque Orão viria a ser palco, na década posterior à publicação deste livro que a imortaliza, de algumas das maiores atrocidades cometidas durante a sangrenta guerra da Argélia.
A vida imitava a ficção, como tantas vezes sucede. Dando ainda mais relevância à lucidez das palavras finais d' A Peste, enquanto gritos de alegria incontida explodem de bairro em bairro. Camus sabia que "o bacilo não morre nem desaparece nunca" e que "viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz".
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