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Delito de Opinião

Setas amarelas até Santiago

Paulo Sousa, 13.04.23

Uns dias antes da Páscoa, com um amigo, deslocamo-nos até Coimbra onde iniciamos uma ida de bicicleta até Santiago de Compostela. Era um projecto antigo que só agora conseguimos concretizar. Para chegar até à Praça de Obradoiro foi necessário pedalarmos um pouco mais de 400 quilómetros, durante um acumulado de quase 30 horas, distribuídas por cinco etapas, no final das quais pernoitamos nos albergues de peregrinos de Albergaria-a-Velha, Porto, Ponte de Lima, Redondela e finalmente Santiago de Compostela.

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Podia aqui começar a desenrolar detalhes histórico-culturais deste caminho, classificado como património imaterial da humanidade, mas esse não é o propósito do postal. Para os interessados sobre o Caminho, existe muita informação disponível por essa internet fora. Basta procurar.

Sendo difícil escolher o que merece ser escrito e por que ordem, aqui falarei principalmente de algumas das pessoas com que me cruzei.

Antes de mais não posso deixar de sublinhar o respeito pela atitude do meu companheiro desta viagem. O João tem 67 anos, está reformado há pouco tempo e apesar de uma queda dois dias antes da partida, que lhe acrescentou três pontos no nariz, escoriações várias e uma dor na cervical, não cedeu e cumpriu com o objectivo a que se tinha proposto. Sem surpresas, foi uma excelente companhia para as muitas horas de conversa que partilhamos. Que venham mais quilómetros para rolarmos juntos. Continência ao gajo.

Dito isto, e recuando um pouco até à preparação da viagem, logo que contactei com o primeiro albergue para saber da disponibilidade e da necessidade de reserva, tropecei no título de “hospitaleiro” que é atribuído a quem toma conta de cada um dos espaços que fazem parte da rede de albergues de peregrinos. Além de uma qualquer formação exigida, destaco o efectivo sentido da palavra “hospitaleiro”. Cada qual à sua maneira, os “hospitaleiros” com quem nos cruzamos incorporam o serviço prestado a quem por ali passa. Nos idos medievais, quando o Caminho foi instituído, as necessidades dos peregrinos não seriam rigorosamente as mesmas, mas arrisco-me a dizer que o seu sentido de serviço, de querer dar sem nada esperar, se manteve ao longo do tempo. Nós e todos os que por ali pernoitam, sentem e têm a percepção disso.

Após uma recomendação recebida no Albergue do Porto, tentei fazer uma reserva num albergue que, não pertencendo à rede oficial, é gerido por alguém totalmente identificado com a hospitalidade e com o espírito do Caminho. Refiro-me à Casa da Fernanda no lugar do Corgo, freguesia de Vitorino de Pião. A lotação é reduzida, mas a hospitalidade é tremenda. Pelo telefone a Fernanda, dona não é para aqui chamada, disse-nos que estava lotada, mas que ficava a contar com a nossa paragem para trocarmos um dedo de conversa e para nos oferecer um copo de vinho verde. Acabou por ser mais do que um dedo de conversa e também mais do que um copo (ou taça) de vinho. A origem dos hóspedes que ali encontramos era muito diversa e a língua portuguesa era apenas uma de entre várias que por ali se ouviam. Sem dúvida, foi um dos momentos do Caminho a recordar.

E aqui tenho de acrescentar a referência à surpreendente diversidade da origem dos peregrinos. À entrada do Albergue de Ponte de Lima estavam afixados os dados estatísticos relativos ao ano de 2022 onde se pode confirmar que por ali passaram peregrinos oriundos de 57 países diferente, sendo alguns verdadeiras surpresas. Marrocos, Líbano, Irão, Egipto, Turquia, Indonésia, Malásia, Israel e Japão, países onde o cristianismo, sobre o qual assenta o Caminho, não é maioritário, confirmam também as dimensões cultural, histórica, paisagística e também vínico-gastronómica, que se podem extrair desta experiência.

Recordo-me do professor italiano com quem jantámos em Albergaria-a-Velha. Falámos das invulgarmente longevas fronteiras portuguesas, do ensino primário como fábrica de produzir italianos (dada a diversidade de dialectos aquando da reunificação), do motivo não colorido que justifica chamar verde a um vinho que pode ser branco, tinto ou rosé e também da revolução alimentar que a introdução da cultura do milho motivou e não se pode desligar dessa explicação. Ele tinha começado o Caminho em Lisboa e contava demorar duas semanas para o terminar.

No albergue do Porto jantámos e conversámos com uma estudante universitária brasileira, ali voluntária, e que um dia também irá fazer o Caminho. A conversa alargou-se, e a nós juntou-se uma italiana que tinha vivido no Brasil e que por isso não nos obrigou a mudar de idioma. Falamos da Giorgia Meloni, de Bolsonaro e Lula, das invasões Francesas, da fuga da Família Real para o Brasil e de como isso pode explicar a sua tão precoce independência. Esta italiana já tinha feito também o Caminho Francês que lhe exigiu quase um mês. Falámos também da muito afamada e difícil passagem pela Serra da Labruja, que nos esperava logo depois de Ponte de Lima e de como o Caminho pode ser uma metáfora da vida, pois todos nos deparamos com muitas Serras da Labruja no nosso dia-a-dia.

Em cada cruzamento há sempre uma seta amarela a apontar a direcção certa e todos nos saudamos com o cumprimento  "buen camino".

Com o acumular dos quilómetros, com as inúmeras subidas e descidas, as etapas, as estórias, as pessoas com que nos cruzamos, é improvável aproximar-se de Santiago de Compostela sem sentir um crescendo emocional. Isso também aconteceu connosco. Nos metros finais, as muitas horas de conversa esgotaram-se e ficámos quase sem saber o que dizer.

Pôr os pés ao Caminho é o oposto a ficar resignado, ou reduzido, ao conforto do sofá. O Caminho exige entrega e disponibilidade, física e mental. Cada um dar-lhe-á o significado que entenda, mas ninguém o poderá fazer com indiferença, nem regressará dele igual ao que partiu.