A propósito da dominância dos homens sobre os outros seres humanos e sua consequente impunidade, lembrei-me de algumas histórias passadas na aldeia de origem do meu pai, perdida nos montes transmontanos, no concelho de Macedo de Cavaleiros. Das que conheço, escolhi quatro, todas passadas durante a primeira metade, ou meados, do século XX. Achei interessante apresentar testemunhos deste contexto especial, porque, devido ao isolamento da aldeia até aos anos 1970, a justiça raramente lá chegava. Era um mundo fechado. E este acaba por ser um retrato da nossa província, pois em todo o lado haveria casos semelhantes.
1 - Um pastor passava o Verão com o rebanho no monte, não ia dormir a casa meses a fio. Uma sua filha costumava ir levar-lhe a comida, todos os dias, começou a fazê-lo com cerca de dez anos, uma caminhada de várias horas, tanto a ida, como a volta. Quando tinha 12 ou 13 anos, engravidou do pai. Aquele era um tempo cheio de superstições, o fruto resultante de uma relação incestuosa era considerada diabólica, ou coisa parecida, e a miúda foi escondida/isolada durante toda a gravidez. Não consta que o pai dela sofresse restrições ou censuras. O meu pai, que me contou esta história, também não faz ideia do que foi feito ao bebé. Só sabe que desapareceu.
2 - Uma mulher, à volta de quarenta anos, acabou por morrer devido aos maus tratos infligidos pelo marido e deixou seis filhos entre os dois e os dezasseis anos. O homem ficou impune e tornou a casar. A sua segunda mulher não quis os filhos do primeiro casamento, só ficou com a mais pequena, de dois ou três anos. Os outros foram simplesmente abandonados. Os padrinhos dos dois meninos levaram-nos para as suas casas. Das meninas ninguém quis saber. O pai das crianças ficou impune também por este crime, ninguém o denunciou às autoridades. A filha mais velha, de dezasseis anos, tinha um namorado, com quem ficou a viver, e levou consigo uma das irmãs. Mas eram muito pobres, não podiam ter mais ninguém a cargo deles. Outra irmã, de doze anos, foi trabalhar numa pensão, em Macedo de Cavaleiros. Acabou por casar aos quinze com um cliente dessa pensão. A mais nova, que ficou em casa do pai e da madrasta, era sujeita a muitos maus tratos por esta. Uma vez, deu-lhe tal tareia e deixou-a tão pisada (a menina tinha três anos!), que duas senhoras da aldeia, ricas e moradoras em Lisboa, tiveram pena dela e levaram-na consigo (foi assim que me contaram, não sei mais pormenores). Pelos vistos, não se deram com ela e acabaram por a entregar à Santa Casa. A miúda fugiu, em adolescente, e terá enveredado por uma vida de prostituição.
3 - Numa casa rica da aldeia, faziam-se serões de fado, a que assistiam várias famílias, também a do meu pai, criança, à altura. Cantavam e dançavam. Um dos cantores/tocadores de guitarra fugiu para Angola com uma das mulheres que costumavam participar nesses serões. Ela era casada e deixou duas filhas de seis e oito anos com o pai. Poucos dias depois de a mãe desaparecer, a mais velha surgiu morta. Estranhou-se muito este caso, pois não se conheciam doenças à miúda. Passados mais alguns dias, surgiu morta a mais nova. Desconfiou-se do pai. Mas ninguém o denunciou às autoridades, não foi aberto nenhum inquérito. As meninas foram enterradas e o pai continuou a sua vida. Tornou a casar e a formar família.
4 - Um homem de outra aldeia foi trabalhar para a do meu pai como sapateiro. Deixou a mulher e os filhos na sua aldeia de origem e engraçou com outra, na localidade de acolhimento. Começou a assediá-la, mas ela recusou-o sempre. Até que a paciência dele se esgotou. Um dia de manhã, foi a casa dela munido de um machado e começou a agredi-la. A vizinha deu conta e foi ajudar a amiga. Acabou por morrer com uma machadada. Entretanto, surgiu mais gente, o homem acabou por ser controlado e a mulher que ele tencionara matar sobreviveu, apesar dos muitos ferimentos infligidos. O assassino cumpriu pena, não havia como ignorar o seu ato. A mulher que ele matou deixou seis ou sete filhos, o mais novo tinha quatro anos.
Freguesia do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros, anos 1960
Camilo Castelo Branco também nos fala da violência que, no seu tempo, imperava nas relações humanas. Da leitura de Amor de Perdição, não foi o caso amoroso que retive, mas sim, a violência extrema no seio das famílias e a forma vergonhosa como as filhas eram tratadas:
«- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência de um pai é sempre amor (p.33)».
«Não sofras com paciência», diz Simão numa das suas cartas a Teresa, «luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta» (p. 67).
«Que a não desejava morta, mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquilo, e com a sua honra sem mancha» (p. 103).
Nota: a paginação diz respeito à edição ebook disponível no Projecto Adamastor.