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Delito de Opinião

Do princípio ao fim (3)

João Campos, 25.09.16

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Permitam-me a batota de começar pelo fim, e aos quadradinhos.

 

É bem possível que o fim definitivo de Calvin & Hobbes, a tira cómica que Bill Watterson escreveu e ilustrou entre 1985 (o ano em que nasci) e 1995, marque o fim de uma época. De um tempo em que a banda desenhada ainda ocupava um lugar privilegiado nos jornais, e de um tempo em que estes ainda eram relevantes enquanto veículo de informação privilegiada. É provável que o próprio Watterson tenha adivinhado a segunda tendência - Calvin & Hobbes, afinal, foram uma tira de jornal especialmente sintonizada com o seu tempo, repleta de uma crítica cuja subtileza em nada lhe retirava mordacidade, e que, volvidas duas décadas, se revela tão persciente como pertinente. Basta recordarmos a importância das suas observações sobre a televisão e a cultura televisiva, mais actuais do que nunca tanto para o pequeno ecrã como para os múltiplos pequenos ecrãs que Watterson não adivinhou, mas que elevaram ainda mais a cultura do efémero contra a qual o pai de Calvin já se insurgia. Quanto à primeira, enfim, ficou famosa a recusa absoluta de compromisso na sua arte, algo que o levou ao isolamento após 1995 e que faz com que ainda hoje, quando a comercialização reina de forma absoluta, não exista merchandising oficial de Calvin & Hobbes. Só as tiras que Watterson escreveu e ilustrou, e que continuam a ser publicadas em inúmeros jornais em todo o mundo, e reeditadas em álbuns intemporais. Mas mais importante do que isso: no que à tira de jornal diz respeito, talvez Watterson tenha também elevado o formato ao seu expoente máximo. 

 

Convenhamos: não há nas tiras de jornal nada que se compare a Calvin & Hobbes. Não, nem Schulz - desculpem. Sem querer tirar mérito aos PeanutsCalvin & Hobbes não chega sequer a ser uma daquelas obras que eleva a fasquia - Watterson simplesmente jogava noutro campeonato, como nos comics norte-americanos de super-heróis jogaram Alan Moore e Neil Gaiman quando escreveram WatchmenThe Sandman, respectivamente. Se o seu olhar sobre a sociedade era especialmente arguto, já a sua perspectiva sobre a imaginação é inigualável: ninguém capturou como Watterson o absoluto prodígio da imaginação infantil. E fê-lo através de algo tão simples como a interação daquele miúdo vivaço de seis anos e do seu amigo imaginário, que para todas as outras personagens era apenas um tigre de peluche. Nos territórios férteis da imaginação de de Calvin jogámos calvinbola, demos vida a bonecos de neve (que se tornaram monstruosos), deixámos mensagens para extra-terrestres gravadas na neve, fizemos todo o tipo de travessuras em casa, na vizinhança ou na escola, discutimos filosofia num trenó. Fomos a Marte num reboque de bicicleta, viajámos no tempo numa caixa de cartão, vivemos aventuras noir com Tracer Bullet, tornámo-nos super-heróis com o Homem Estupendo, fomos aos confins do espaço com o Astronauta Spiff. Let's go exploring! foram as últimas palavras que lemos de Calvin e de Hobbes, como que um convite para que cada um de nós continuasse a descobrir aquelas aventuras - tanto as que Watterson nos deixou e que tão intransigentemente recusou continuar (um acto que só pode merecer aplauso), como todas aquelas que nunca escreveu, e que podemos imaginar livremente. Como só Calvin e Hobbes faziam.