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Delito de Opinião

Ontem voltei a ver o meu poeta preferido

Marta Spínola, 10.06.18

Foi a segunda vez que vi Chico Buarque ao vivo. Doze anos separaram uma vez de outra, mas ambas valeram cada segundo. 

Gosto de Chico Buarque há muitos anos, na família materna sempre se ouviu MPB, posso dizer que cresci a ouvir génios como Jobim, Vinicius, Toquinho, Chico ou Caetano, para mencionar apenas alguns. Das vozes às letras há uma serenidade, e uma quase ingenuidade, que sempre me comoveu. Sempre me foram passados como temas engraçados, simpáticos, numa língua que nos era muito (literalmente) familiar. 

Tenho pena que não cante alguns dos êxitos mais antigos, os que me levam à infância, aos discos em capas de papelão, tenho pena que a versão de "Partido Alto" partilhada com Caetano Veloso nunca se ouça, mas é uma pena egoísta. Ouvir Chico vale sempre a pena. 

A minha relação com as letras de Chico Buarque é um caso de amor. Os sambas, os desamores, as felicidades ao luar, os boleros, os amantes, os fait divers cantados numa voz grave e tão calma (na voz tranquila só Jobim o bate), são talvez o happy place em que nunca penso quando alguém fala nisso. Quis guardar a sua voz na memória mais uma vez, o que, mesmo sabendo as letras, me fez ficar em silêncio só para o ouvir cantar. 

É seguro dizer: "Foi bonita a festa, pá, fiquei contente."

A âncora da memória, 1: Caetano Veloso

Inês Pedrosa, 17.11.16

convite Caetano Cicero.jpg

 

A MENSAGEM DO TROPICALISMO

 

Caetano Veloso

 

Em 1968, atendendo ao convite de uma emissora de televisão e ao pedido de meu empresário, o fascinantemente esclarecido carioca Guilherme Araújo, apresentei uma canção chamada É proibido proibir. Como eu não via valor intrínseco na canção, animei-me a enriquecê-la com os timbres da banda Os Mutantes em arranjo estruturado pelo maestro Rogério Duprat e a transformar a apresentação num happening complexo. E como a abreviadíssima peça se resumia à repetição de uma frase francesa tratada com procedimentos do rock anglo-americano, tudo isso influenciado pela música eletrónica erudita alemã, decidi recitar as seguintes palavras enquanto os três músicos disparavam sons atonais sobre um ritmo de marchinha quebrado (ou desdobrado) em seis por oito:

 

«Sperai! Cahi no areal e na hora adversa

Que Deus concede aos seus

Para o intervalo em que esteja a alma imersa

Em sonhos que são Deus.

 

/Que importa o areal, a morte e a desventura

Se com Deus me guardei?

É O que eu me sonhei que eterno dura

É Esse que regressarei.»

 

Assim o fiz porque queria e precisava me aproximar do que me atraía e me amedrontava – sem falar no que me repugnava – na mística sebastianista que conhecera através de amigos que tinham, na Bahia, tido contato com o professor Agostinho da Silva. A apresentação aconteceu no auge do que veio a se chamar tropicalismo. Fazia exatamente um ano que essa aventura começara e esse momento – sem sequer uma boa canção – significava para mim o ingresso de corpo inteiro no desconhecido. Dada a reacção furiosa da platéia, Gilberto Gil, meu parceiro no projeto, ficou amedrontado. Eu também fiquei. Mas, por imaturidade e desconhecimento da vida, bem menos do que ele. O misto de atração e pavor, tingidos por certa repulsa, não estava ausente de minha aproximação do rock ou da música atonal. Assim, o sebastianismo seria apenas mais uma terra semi-incógnita entre as tantas que tentava visitar. Mas eu sabia que, por mais que essa fantasia de volta do encoberto fosse a mais estranha aos interesses compartilhados pelas pessoas com quem eu convivia – direta ou indiretamente – ela era central e estruturante do movimento que desencadeávamos. Ela, e não o rock ou a vanguarda erudita, podia servir de substrato ideológico ao tropicalismo.

O apelido que nosso movimento ao princípio ganhara e com o qual, em parte, se identificava, era som universal. Tropicalismo me parecia restritivo – e o sebastianismo de Agostinho como sua infraestrutura, redutor, equivocado e assombroso. Mesmo assim, era ele, e nada mais, que se sustentava por trás do enfrentamento da ditadura militar sem adesão ao imaginário de esquerda vigente, por trás do redimensionamento da cultura popular norte-americana e do amor aos experimentalismos formais da arte e da poesia.

Minha vinda a Lisboa agora me exige a pergunta: como avalio hoje o papel que Mensagem – e a visão de Agostinho sobre ela; Fernando Pessoa – e a visão de Agostinho sobre ele – tiveram na minha música ligeira, nas minhas escolhas políticas e no meu pensamento íntimo?

Não deixa de ser significativo que me tenham convidado para falar ao lado de Antonio Cicero – e que ele tenha me trazido a casa, entre outras coisas para ler antes da nossa vinda – e estendendo-o em primeiro lugar – exatamente o livro Um Fernando Pessoa, de Agostinho da Silva, que foi também o que me deram a ler na Bahia quando, tendo assistido a uma conferência do professor, disse ao meu amigo (que era o mais entregue discípulo entre os que Agostinho tinha em Salvador) que dela saíra impressionado. O que Cicero, na contramão das modas pós-estruturalistas, foi buscar no nascedouro da modernidade, ou seja, em Descartes, sua ideia de absoluto negativo, o cogito ultracartesiano e, como ele próprio já disse com belas palavras aqui mesmo em Lisboa, encontrou no racionalismo pessoano (e na concepção pessoana do eu  independente do sujeito empírico) ilustrações para sua tese. Isso me põe numa situação bastante sugestiva e algo incômoda: «A Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana»  – são as palavras de Agostinho da Silva num de seus momentos de revelação do sentido geral de Mensagem e da poesia de Fernando Pessoa. O que poderá reconciliar uma afirmação como essa com a decisão filosófica de Antonio Cicero? No entanto, mesmo na apreciação – por mais vaga, inexperta e desavisada que seja – que esboço do pensamento de Cicero, essa perspectiva sebastianista ainda se apresenta como pano de fundo ou como arcabouço provisório. Quer me parecer que o fato de que se tenha escrito justamente em português brasileiro a mais consequente defesa do fundamento cartesiano diz muito sobre a originalidade brasileira; e, mais importante, sobre a responsabilidade brasileira com relação à criação desabusada de um futuro cheio de grandeza espiritual. Fernando Pessoa não desprezaria essa incoerência, esse paradoxo.

Uma outra ideia de Agostinho pensando Pessoa que reluz à aproximação de Cicero é a complexa observação de que a atitude de Ricardo Reis diante da vida que existe à sua volta é, em parte, como a de um romano, «mas não com a alegria que, estranhamente, nós passsamos do nosso cristianismo para o paganismo antigo – e o julgarmos o cristianismo triste é ainda um resto do nosso paganismo –  mas com uma tão intensa melancolia que os próprios jogos do amor, o desabrochar das rosas e o saborear dos vinhos têm sempre diante de si o homem impassível que já está pressentindo como hão-de os ventos de outono varrer amor, flores, aroma».

Meu psicanalista, que se chama MD Magno, e, sendo um inventor dentro da disciplina que elegeu, progrediu do lacanismo para uma produção esotérica que, para minha surpresa, apresenta uma versão de sucessão de impérios, usando termos semelhantes aos de Vieira, Pessoa e da Silva, ao me ouvir comentar esse trecho, disparou: «o cristianismo é depressivo, e dessa perspectiva o paganismo surge como portador da alegria». O que me fez pensar imediatamente: «eu não soube contar bem o que li no trecho citado». Esse MD Magno é muito engraçado e esperto. Possivelmente ele também pensou algo além do que disse, pois viu em minha cara a relativa insatisfação e eu logo vi na sua a insinuação de outra volta do raciocínio –  mas tínhamos coisas mais urgentes a tratar, a vinda a Lisboa e as leituras a isso relacionadas eram apenas parte de um drama mais confuso e abrangente e, de todo modo, o tempo da sessão se esgotara. Mas o que pensei foi que Agostinho flagrara a alegria da luz do Espírito Santo sendo projetada na alegria melancólica dos romanos – e ainda por cima com o cuidado de distingui-los dos gregos, cuja complexidade, se levada em conta na construção da frase, exigiria outras palavras. Agostinho tinha acabado de dizer que Fernando Pessoa julgara Ricardo Reis um semi-helenista e tinha comentado: «e se há algum domínio em que seja difícil ser semi, esse domínio é exactamente o da Grécia:  a Grécia é muito mais complicada do que a fizeram os franceses, e saber só metade de uma complexidade é na realidade não a saber; ao passo que não há perigo nenhum em se saber só metade da simplicidade que foi Roma». Depois disso é que a frase sobre a perspectiva cristã projetar alegria na vida e poesia romanas apareceu no texto. Não posso deixar de notar, aqui, que  ele nada disse sobre o que os alemães fizeram da Grécia.

Seja como for, nem Cicero nem meu psicanalista sentiriam o contentamento de identificação que senti com a frase de Agostinho sobre a alegria do cristianismo, quando ela chegou no correr do texto. No entanto, talvez mais difícil para mim seria aderir à exigência de que, no Império a ser fundado, a definição do conceito Portugal exclua «as formas institucionais que vão, como o autoritarismo político, o liberalismo econômico ou a negação do Espírito Santo, contra o que há de estrutural no próprio homem». Sei que, exatamente no tempo em que Agostinho escrevia essas palavras e em que eu as lia, Portugal e Brasil viviam sob autoritarismo político e aderiam a algum liberalismo econômico. O ritual anual de uma criança vestida de imperador, soltar um preso no dia do Espírito Santo, eu ainda o encontrei na Bahia da minha adolescência. Eu odiava crianças, mas achava bonito esse rito. Confesso que odiava crianças porque a criança aparece como figura idealizada em toda a interpretação que faz Agostinho da obra e dos sonhos de Pessoa. O Menino Jesus do poema de Alberto Caeiro se espalha por toda a visão que Agostinho tinha dos quatro poetas e da mensagem de Mensagem. A trindade fomada por Maria, o Menino Jesus e o Espírito Santo é-me imediatamente muito mais simpática do que a formada por este mais o Pai e o Filho. Assim, como já  não odeio crianças (o nascimento de meus filhos foi o maior acontecimento de minha vida adulta) e continuo a odiar autoritarismos políticos, esbarro na negação em bloco do liberalismo econômico. É bem verdade que, saturado da iconografia católica e um tanto enjoado com as idéias tipo O Pequeno Príncipe como interpretação do chamado de Jesus, «deixai vir a mim as criancinhas», posso por vezes me sentir um pouco incomodado pela supervalorização da infância (uma coisa que as crianças são as primeiras a desprezar: ou será isso um sintoma da glorificação da vida adulta que teria invadido Portugal com a vitória da Europa sobre os atrasos medievalizantes de sua corte?). Mas gosto de ler a revolta que causa em Agostinho o reconhecimento de que na Inglaterra da Revolução Industrial o monstruoso não era que houvesse crianças de oito anos trabalhando em fábricas, mas que aquilo fossem adultos de oito anos. Assim como hoje, nas favelas do Rio, vemos adultos de nove, dez, treze anos trabalhando no tráfico de drogas e carregando armas de fogo. O que não consigo ver é como as liberdades políticas se podem dar sem que haja algo como o liberalismo econômico. Mas que digo? Se justamente a força de sonho que me encanta no projeto sebastianista que Agostinho achou desenvolvido em Pessoa e passou, tanto por meu intermédio quanto pelo de Glauber, para os tropicalistas? Será? Se me maravilho diante de declarações como «Portugal já civilizou Ásia, África e América, falta civilizar Europa», por que esbarraria numa condenação do liberalismo? Pela simples razão de que vejo esses arroubos, esses mitos e esses sonhos como a sugestão de assumir tarefas.  

Faz pouco, causei, meio involuntariamente, um pequeno escândalo no Brasil por ter aparecido num jornal dizendo que o presidente é analfabeto. Era realmente algo feio de se ler na primeira página do jornal. Feio porque, primeiro, não é verdade factual: Lula não é analfabeto. Segundo: porque esse tom me aparecia semelhante ao tom grosseiro que tanto me desagrada na nova direita que faz sucesso nos media (ou na mídia, como se diz no Brasil). No entanto, nem quis corrigir o que me pareceu edição sensacionalista de minhas palavras: estava mais interessado em quebrar o tabu de, em certas rodas (amplamente majoritárias) estar proibido dizer-se mal de Lula. Mas a verdade é que, à luz tropical do sebastianismo de Pessoa via Agostinho, Lula surge a meus olhos como uma figura de grandeza histórica e épica. Uma grandeza bem do tipo épico em versos líricos que se encontra em Mensagem. Sinto ternura, simpatia, amor pelas figuras que parecem carregar a tocha dessa caminhada em que me descobri implicado desde menino: um uso da visão supersticiosa para assumir tarefas em que a superstição desaparece. E que pretende livrar-me, e a todos nós,  para sempre, das superstições. Perante as superstições tomadas a sério, como os marxismos de minorias de massa, o sebastianismo que me ficou do acaso de ter nascido no Brasil, falar português e ter sido apresentado a Pessoa (e ao que dele disse Agostinho) num momento crucial de minha vida se traduz hoje assim: ver a imagem do Cristo Redentor do Rio de Janeiro subir como um foguete na capa da The Economist na mesma semana em que fui informado de que não poderá haver turnée do meu show nos Estados Unidos por causa da enorme desvalorização do dólar. E completar essa trama com a nota de Paul Kruegman sobre Obama ter titubeado e mostrado insegurança em entrevista à Fox News me dá angústia. Penso em MD Magno dizendo que a passagem do Império do Filho para o do Espírito Santo não se dará sem muito sofrimento e que já estamos em começos dela. É demasiado simbólico que Obama seja o primeiro presidente negro e que ele tenha um nome-do-meio árabe (suponho que Barak seja bíblico, Hussein, árabe, e Obama, subsaariano). Que ele tenha assumido num momento de desestabilização do Império Americano e de ameaças ao Ocidente por parte de extremistas muçulmanos só amplia e intensifica essa impressão. O Brasil de Lula que é o Brasil de Fernando Henrique, o primeiro Brasil realmente pós-ditadura, já que Collor apenas abriu o Mercado e quase destruiu o país, não é só o Brasil do inchaço do Estado. É sobretudo o Brasil da promessa de ganhar crescente poder mundial e apresentar uma maneira nova de exercê-lo: sem a força das armas nem da grana como determinantes. Mas como chegaremos a algo assim, se há adultos de nove anos segurando armas pesadas nas favelas e a crueldade da polícia contra os pobres pode ser imensa; e a crueldade dos grupos que detêm poderes econômicos ilegais, mas fortes, pode ser infernal? É na coragem do enfrentamento disso que se encontra a nossa tarefa. De minha parte, apenas canto canções ligeiras e busco pensar como se exerce essa atividade entre nós.

 

Conferência proferida na Casa Fernando Pessoa a 4 de Dezembro de 2009, posteriormente publicada no 1º número da revista Pessoa, em Dezembro de 2010.