Cadáver Esquisito (15)
1. UM LIVRO, 2. CA...... SARKIS G........N, 3. OLHOS, 4. ESCAVAR, 5. IN VINO VERITAS, 6. TO THE LEFT, AS PERNAS DE STELLA, 7. O MEDALHÃO, 8. O SEGREDO, 9. LABIRINTOS, 10. FRAGMENTOS DE HISTÓRIA, 11. UMA VIAGEM, 12. REVELAÇÕES E MAIS DÚVIDAS, 13. NÃO PODES APAGAR UM FOGO COM CUSPO, 14. A INSPECTORA SONHA COM UM ESQUELETO
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ST. MARY MEAD E A BASE NACIONAL DE ADN
Hoje, dia 28 de Maio, José Augusto levantou-se cedo e preparou-se com esmero para a sua romagem anual. Dormira mais uma vez nos Candais, mas já viera munido da competente farpela e atavios de circunstância. Não deu grande conversa a ninguém. Entre todos, só Vivelinda e a dona da casa conheciam esta sua escapadela misteriosa, mas não lhe sabiam o destino. Em frente ao espelho do quarto de vestir do falecido, ajeitou o nó da gravata de riscas azuis, verificou os vincos das calças, meteu o relógio ao colete e por fim, com indizível gozo, cravou com cuidado o emblema na lapela de lealíssima alpaca, respirando fundo. Queria sair muito cedo, era o dia da memória. Os outros legionários aguardavam-no, ainda tinha muitas horas de viagem até Santa Comba e mais: queria ir buscar o Bentley sem dar nas vistas. O Bentley que a sua Stella lhe vendera.
Entretanto, a recuperar de uma curta noite de sonhos agitados, a inspectora espumava de frustração: pior do que um quarto espeluncoso era acordar sem poder dispor do sagrado direito a um café. O mundo era uma desordem sem cafeína... Enquanto tirava do seu fiel estojo de emergência o milagroso concealer da Bobbi Brown (um, dois, três pequenos toques e adeus olheiras) ouviu o ruído ronceiro de um aspirador e de um salto já estava à espreita, a meio do corredor da pensão. Viu-a logo, à escrava do lar, vestindo uma farda de duvidoso asseio. Chamou-a, e nada. Decidida, aproximou-se, desligou o indolente Hoover do tempo da guerra de 14 e disse-lhe, sem rodeios:
– Bom dia! Preciso urgentemente de um café duplo. Pode ir buscar-mo? – desferiu, enquanto lhe metia no bolso uma nota de 5. Atarantada, a rapariga retorquiu: – É p’ra já! M… m… mas vai chegar morno! – Não faz mal, é mesmo assim que eu gosto! Enquanto a empregada galgava as escadas, ainda lhe disse: – E que venha bem servido, ouviu?
Entrou no quarto poeirento e ouviu o telemóvel. Enfim, o mundo parecia estar a compor-se! O visor piscava: “Paulo a chamar, Paulo a chamar”. Pronto, está bem… nem que fosse o mundo a normalizar-se pela mão dos chefes (jamais perceberia como chegara ele a coordenador de equipas especiais.... só mesmo à força da lei das calças. Ou seria a lei do avental…?) Tinham-se despedido zangados.
– Paulo… então? – Helena, minha inspectora de eleição! Como estás tu? – Péssima! Vou regressar ao Ministério Público, estou farta disto…
– Calma, minha cara! Porquê tanto azedume? – O meu sentido de missão não suporta tanto, e tu não me dês sermões, sabes? Estás onde? No jogging da marginal, com a tua querida? – Helena… eu vinha justamente dizer-te que bem perto daí tenho uns amigos que te vão receber nos próximos dias, podes largar isso. Vais até Alvito e é logo na povoação a seguir: Vila Nova da Baronia. Ah, e não te esqueças de jantar no 'Camões', ouviste? Uma tasca imperdível!
– Hum...
– Mas o mais importante é que tenho dados novos: as amostras do cadáver seguiram para a 'Base Nacional de ADN'. Em breve teremos respostas sobre a identidade da vítima.
– Boa, Paulo! Uma luz de civilização, enfim!
Desligou, procurou na lista “INML” (Instituto Nacional de Medicina Legal, 239854230) e perguntou: – Posso falar com o Prof. Tiago da Veiga? – Não está, minha senhora – E sabe a que horas posso ligar para o encontrar? – Ele está no Kosovo, só deverá regressar a Coimbra dentro de três dias, mas se quiser…
Não queria e desligou, indelicadamente. Preferiu telefonar-lhe: – Tiago? Olá… Helena Portas! Bem, Helena Cunha, tu sabes. Vou ser rápida:
– Podes dar prioridade aos resultados dos testes de ADN de um suspeito meu? Por favor!, senão dou em doida! Não é só uma questão de celeridade processual, é que nem imaginas: estou em plena vila das Mónicas, no meio de um deserto na planície, tenho uma família de cromos para interrogar que não encaixa em nenhum perfil psicológico e... pura e simplesmente não sou Miss Marple, percebes? Este St. Mary Mead português vai dar comigo em doida!
– Vou tratar disso, Helena. descansa. Quando nos vemos?
– E eu sei lá, Tiago... Estás mais por Lisboa do que eu, marca.
Fechou a pequena mala, prescindiu de puxar a asa telescópica – para quê? – e desceu:
– Quanto devo? – Quarenta euros.
Abafou um riso. – Olhe, pegue 41 e mande arranjar a máquina do café, faça uma quotização entre os seus hóspedes…
– Oh, também não temos cá mais ninguém: só o Sr. Sebastião Cosme (mas é segredo...) e o Senhor Fernando Justo Cusca, das Finanças…
E antes que me esqueça: deixaram uma carta para si, Inspectora. Aí tem.
Helena saiu, enfrentou o sol impenitente e o cheiro provocador dos jasmins a cobrir a sacada da pensão, toda em barras azuis. Estivesse ela em férias e...
Abriu a carta e leu, numa caligrafia encadeada e elegante, bem pouco ao gosto português, o seguinte:
– Não se deixe levar. Os medalhões não são iguais. Atente na palavra “memoriam” no verso da foto, e, se pegar numa lupa, na letra “O” do medalhão verdadeiro verá em pontilhado uma outra palavra: Cosmus.
(Este é o décimo quinto capítulo do nosso 'cadavre exquis', desenvolvido aqui. O próximo criador é o Luís M. Jorge.)