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Delito de Opinião

A sorte da Torre Bela

João Pedro Pimenta, 31.12.20

Do desaparecimento de Wilson Filipe e da sua acção e consequências na Torre Bela já o Paulo Sousa escreveu no outro dia, num post que vale bem a pena ler. Mas há coincidências que se entrelaçam quase de propósito. Precisament quando se voltou a falar na herdade da Torre Bela, por causa daquela matança de gamos e javalis disfarçada de caça, e se recordou a ocupação da propriedade em 1975 e o célebre vídeo da "enxada da comprativa", eis que morre o protagonista de ambas, da ocupação e do filme, Wilson Filipe. 

A tentativa de criar uma cooperativa popular naquela terra, à altura propriedade dos Duques de Lafões, uma das últimas famílias aristocráticas pré-liberalismo, é um bom resumo do PREC. Embora fosse uma expropriação selvagem, a verdade é que esteve longe das barbaridades dos sovietes. Olhando os numerosos testemunhos audiovisuais de tudo aquilo, há momentos de evidente comicidade, notando-se também bastante ingenuidade da parte dos ocupantes, à mistura com o oportunismo de uns tantos aventureiros e revolucionários de ocasião. 

A história da propriedade acompanha desde então o percurso recente de Portugal. De imensa herdade de caça de uma das principais casas ducais, passou a "cooperativa popular", fruto da revolução, durando uns anos, até ser encerrada pela Lei Barreto e o fim do PREC; entretanto, os antigos proprietários receberam a correspondente indemnização, e a agora propriedade, crê-se, de testas de ferro de uma família angolana, preparava-se para ver parte do seu terreno transformado numa central fotovoltaica, pelo que tinha de se transformar a antiga coutada através de uma "montaria" cirúrgica, que também daria para ganhar uns euros extras, e que tão mal caiu nas notícias e nas redes sociais. Coutada de caça, cooperativa popular, central fotovoltaica: as vidas da Torre Bela ao longo das décadas.

Paralela a essas metamorfoses ao sabor dos tempos, temos também duas opções ambientais que se excluem: a reserva florestal de vida selvagem e a central de produção de energia solar. Para se obter energia limpa que não a dos combustíveis fósseis e não renováveis, há que sacrificar um raro habitat de fauna livre. Nada de espantar: as barragens também armazenam água e produzem electricidade, ao mesmo tempo que mudam o clima local, os ecossistemas e retêm sedimentos levando à redução as praias. As ventoinhas eólicas enxameiam as nossas serras. Para não falar das opções da energia nuclear. Valores ecológicos que se excluem mutuamente e que dependem de um sem número de outros factores. 

Por fim, outra história, mais distante e de outro país, mais indirecta mas ainda assim ligada. A saga da Torre Bela foi contada por Thomas Harlan, um realizador alemão de "cinema activista", entusiasta da esquerda radical, talvez para fugir da sombra do pai, Veit Harlan, um dos cineastas mais notórios do Terceiro Reich. Harlam pai dirigiu O Judeu Suss, provavelmente o mais conhecido filme propagandístico anti-semita da época, que no fundo também correspondem a duas gerações alemãs: à que aderiu (ou se adesivou oportunisticamente) ao nazismo e à seguinte, com simpatias pela esquerda radical e até pela extrema-esquerda, que levou à criação de grupos terroristas como os Baader-Meinhof, para se afastar da precedente, numa tentativa de expiar os seus crimes. Escrevi sobre isso quando morreu Thomas Harlan, há uns anos, pelo que não vale a pena repetir-me.

Resta saber se a Torre Bela se tornará uma central fotovoltaica, voltará a ser um terreno de (autêntica) caça, ou o que mais for. Certo é que é um manacial imensos de histórias e de episódios dos quais podemos tirar inúmeras comparações.

E já que não vale a pena estar com grandes "resoluções de ano novo", que seja um ano melhor para todos.

A Selva

Cristina Torrão, 24.12.20

Para todos os que acharam não haver mal nenhum na “montaria” levada a cabo na Torre Bela, ou porque alegam gostar muito de carne, ou porque logo apelidam de animalista quem se insurge sobre excessos deste tipo, venho esclarecer o seguinte:

Os responsáveis pela quinta já se vieram distanciar:

Em comunicado hoje enviado às reda(c)ções, os responsáveis pela quinta reiteram esta posição: "A Herdade da Torre Bela repudia firmemente a forma errada, ilegítima e abusiva como decorreu uma montaria na sua propriedade, no passado dia 17 de d(D)ezembro, tendo tido conhecimento do sucedido a posteriori e apenas através da comunicação social".

Palavras da proprietária: "É inequívoco que o grupo de caçadores excedeu em larga medida os direitos de caça adquiridos, ultrapassando os limites acordados por contrato com a entidade exploradora e que se coadunam com o permitido pela licença de zona de caça que se encontrava à data, em vigor".

O Ministro do Ambiente também já reagiu:

O ministro do Ambiente, Pedro Matos Fernandes, repudiou o abate, classificando-o como “um a(c)to absolutamente vil e ignóbil”, e assegurou que a prioridade do Governo é “fazer tudo para que isto não se repita”, admitindo uma revisão da Lei da Caça, designadamente no que diz respeito às montarias.

E a empresa espanhola organizadora da “montaria” já se escondeu (como aliás é apanágio dos cobardes):

A empresa espanhola “Huntings Spain and Portugal, Monteros de La Cabra” terá sido a responsável pela organização da montaria, mas, desde então, o site encontra-se ina(c)tivo – ou em construção.

Há caçadores e caçadores. Os dignos desse nome primam por respeitar regras e a ética ligada à actividade cinegética. Pelos vistos, em Portugal, continua a reinar a lei da selva.

A selva é um sítio muito bonito. Mas deixou de ser apropriado para nós humanos. É mais adequado a animais que não evoluíram.

N'A Torre Bela

jpt, 22.12.20

torre bela.jpg

A "Torre Bela" foi um ícone da Reforma Agrária - aquele momento horroroso em que os miseráveis tomaram os bens dos que tudo tinham, indo estes a coberto daquele imundo regime no qual tantos de nós nascemos e vivemos (oops, "seu comunista!", a cutucar a memória do dr. Salazar, "grande obra, grande homem ..."). 

 

(Torre Bela, de Thomas Harlan, 1.21.01 h.)

A "Torre Bela" foi então ocupada e isso foi documentado, num filme de Thomas Harlan - é desse filme o até célebre debate sobre a "farramenta" (a partir dos 24, 48  minutos), quando um dos trabalhadores está renitente em entregar a sua enxada à cooperativa apesar dos esforços do "comissário político". Que magnífico momento, essa discussão, a condensar em registo vox populi vastíssimos confrontos ideológicos e mesmo filosóficos. Extraordinário!
 
Enfim, o PREC acabou, a paz social regressou, a "ordem e progresso" vigorou. Depois o maldito muro de Berlim caiu, a China tornou-se capitalista - tanto que o engenheiro Sócrates quis ser dela intermediário em África -, os trotskistas e os enverhoxistas já são sociais-democratas, tudo voltou ao estado natural. O nosso país desenvolveu-se na Europa. E nisso a família Lafões reassumiu a sua "Torre Bela" (em tempos adquirida devido à política de "nobility empowerment" seguida durante algum tempo no reino e na república). Neste bom caminho, dito mercantil se assim se quiser, agora mesmo num só dia, e para júbilo orgiástico de 16 afortunados caçadores, ali se abateram 500 e tal animais.
 
E ninguém lhes dá com a "farramenta" nos cornos.