Moedas e Paulinho
Ontem foi a já tradicional (mas um pouco despropositada) recepção na Câmara Municipal ao campeão nacional de futebol. Os lisboetas (e vizinhos) que encheram a praça do Município brindaram o presidente da câmara com uma enorme e prolongada vaia. É certo que depois o presidente do clube, Frederico Varandas, no seu discurso foi institucional, conciliador, e dourou a pílula - agradecendo a Moedas a colaboração e oferecendo-lhe uma placa celebratória. Mas também exigiu das instituições estatais (polícia et al) mais respeito pela população, menos sobranceria, menos arrogância. No fundo, traduzo eu, que os seus agentes - civis, policiais ou militares - se entendam como “servidores públicos” e não como “funcionários públicos”…
O episódio que causou tudo isto é conhecido (e já a ele aludi): a câmara mandou encerrar os restaurantes e cafés em torno do estádio de Alvalade no dia do último jogo do campeonato, quando se perspectivava a festa do título, o ambicionado bicampeonato que escapava ao clube há 71 anos!
A isto aduzo uma ressalva: cruzei as zonas vizinhas do estádio durante a tarde, antes do jogo, depois deste percorri as “avenidas novas” onde jantei. E segui para o Marquês de Pombal, onde fiquei durante horas, misturado com uma gigantesca mole humana. Num ambiente de enorme, jubilosa, alegria - aquela que o futebol por vezes permite - e totalmente pacífico…
O encerramento dos redutos comensais junto a Alvalade foi um acto que denotou a arrogância das instâncias estatais, e é isso o grave. Mas mostrou também a incompetência dos seus serviços: como disse aqui o jornalista Bernardo Ribeiro, encerraram-se os imediatamente adjacentes ao estádio enquanto, paredes-meia, as célebres roulottes sob a 2ª Circular fervilhavam de clientela e as mercearias da zona vendiam bebidas alcoólicas - e em vasilhame de vidro. Tudo isto também convocando os estudantes universitários que, nas redondezas, tinham uma cerimónia de graduação.
Ou seja, se a intenção policial e camarária era a de dispersar os adeptos e condicionar o consumo de bebidas espirituosas, a altaneira medida foi incompetente. E decerto que foi decidida (pelo menos caucionada) não só pela hierarquia policial como também pelo pessoal sito na câmara. E neste caso não tanto por meros “funcionários” mas decerto que pela assessoria política que secunda Moedas. Assim sendo foi um erro político, com origem atitudinal: um fastio pelo povo (sportinguista ou outro) a comandar a acção dos eleitos e seus avençados.
Mas retiro uma dimensão extraordinária do episódio. O presidente Moedas encetou o seu discurso e sofreu um continuado apupo. A seu lado, na varanda, estava o célebre Paulinho, o simbólico roupeiro do Sporting. É conhecida a história de Paulo Gama, de denodada superação individual e de afronta aos estigmas. Mas também demonstrativa dos préstimos das associações acolhedoras dos necessitados: nascido com défices psicomotores, abandonado pela família, cresceu num instituição solidária e ao atingir a maioridade foi integrado e formado num clube desportivo, o SCP. Tornando-se um símbolo, de excelência profissional e pessoal. Acarinhado por todos, sportinguistas e outros - decerto porque face a ele sentimos o respeito pela sua grandeza pessoal, mas também porque através dele percebemos a relevância da solidariedade. Social. Paulinho, Paulo Gama, é uma luz.
Mas Paulinho é também o roupeiro (no linguajar gentrificado de agora diz-se “técnico de equipamentos” mas isso é pouco relevante). Ou seja, é tradicionalmente a figura mais humilde do mundo do futebol - “do presidente ao roupeiro…” era uma expressão usada para definir a transversalidade do esforço colectivo num clube.
Ora o que aconteceu ontem foi extraordinário, um magnífico exemplo de democracia: o presidente da câmara assomou à varanda para discursar e foi apupado pelos seus munícipes. Mal conseguia proferir o seu discurso protocolar. E a seu lado o tal “humilde” roupeiro, o grande Paulinho, repetidamente acenou aos do seu povo, instando-os para que deixassem falar a presidencial figura. A este caucionando, no fundo. Foi um momento épico de democracia. E de constatação do desajuste altaneiro.
Espero que tenha servido de lição: a políticos. E ao cortejo, sempre fiel, de assessores.
(O episódio a que aludo está à 1h 04mm 45 segundos)