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Delito de Opinião

Kafka à moda lusitana

José Meireles Graça, 16.01.23

Henrique Pereira dos Santos conta aqui uma história sobre o Estado disfuncional – palavra dele. E um imigrante de nome Lira Neto conta esta outra sobre o Gólgota que vem percorrendo.

Do que tratam? No primeiro caso a Autoridade Tributária pontapeia a lei; e a Presidência do Conselho de Ministros, que não deveria ter nada a ver com uma questão corriqueira mas tem, “não atende o telefone, nem responde a mails, nem sequer para dizer qual é o ponto de situação do processo, e leva meses nisto”. Nisto e no mais é o reino de Kafka, o Checo que, sem saber, escreveu sobre Portugal, o país que era um tanto burocraticamente lerdo no princípio do séc. XX, e é muitíssimo no do XXI.

No segundo um imigrante arrepela os cabelos. “Detenham-me, prendam-me, deportem-me”, diz ele, que vem sendo jogado como uma pela de sites internet para números de telefone impedidos, e destes para endereços de e-mail que emitem respostas em linguagem de pau significando nada.

O primeiro caso faz ranger os dentes de impotência e irritação com o Estado que temos, mormente com a AT, uma organização maléfica de inquisidores; e o segundo de asco e ódio contra o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, um desserviço que trata os imigrantes abaixo de cão sarnento.

Escabichando, numerosos textos legais são ofendidos, direitos de cidadania ignorados e a pessoa de bem que o Estado deveria ser, mas não é, negada com descaso e insolência.

Histórias destas são às dúzias e os jornais e as redes só não estão inundados delas porque o assunto não desperta entusiasmo, o cidadão achando que a si não acontece nada ou, se acontece, que o seu caso é raro e que de todo o modo há uma maneira de resolver as coisas: “conhecendo as pessoas certas, usando os canais de comunicação adequados e entregando moedas de troca úteis a quem tem o poder de decidir”, como diz, e bem, o HPS. Cunha e corrupção, resumindo.

Se, raramente, alguém responsável se lembra de aprofundar um caso qualquer vai bater na parede da falta de meios, legislação inadequada e contraditória, conjugação infeliz de circunstâncias e falta de formação. O que tudo alimenta a ideia de que são precisas mais contratações, mais pessoas dentro de salas a ensinar o que não sabem a quem tem um interesse menos do que moderado em aprender, e que de todo o modo é palavreado de chacha mais vezes sim do que não. No melhor dos casos, e tendo poder, emite directivas ou legislação que enredam um pouco mais as coisas, ou, se não tiver, faz um relatório que algum responsável lê em diagonal antes de dizer “concordo” e despachar para uma gaveta.

Um serviço, a AT, é irreformável por definição porque as exacções e outros abusos sortidos, as ilegalidades, se corrigidas, provocariam uma redução, ainda que temporária, da receita, o que afectaria a propaganda das “contas certas”. Disto é prova o tradicional atraso das sentenças dos tribunais administrativos e fiscais, aqui verberada pela presidente do STAF. Embora o sistema da Justiça seja, todo ele, opaco, é fatal como o destino que os responsáveis, se inquiridos, esgrimam números provando que as pendências diminuíram e pérépépé. E isto por uma razão simples: se dedicassem mais tempo, como deveriam, a processos mais antigos, ainda que mais complexos, não teriam, et pour cause, números com algum progresso, mesmo que medíocre, para apresentar.

Mas não é provável que expliquem satisfatoriamente por que razão subsiste o escândalo de processos que se arrastam há oito, dez ou mesmo vinte anos, assim como não é provável que se lhes o pergunte: os jornalistas fazem geralmente as perguntas erradas, engolem as respostas como se não fossem beberagens imundas, e têm um indevido e atávico respeito pelos poderes.

Deixemos em paz a AT, que de todo o modo é um Estado dentro do Estado, de onde o Direito está ausente.

Por que motivo a generalidade dos serviços claudica frequentemente, quando há décadas que responsáveis políticos se propõem aproximar, simplificar, desmaterializar e simplexar?

A primeira razão é não se entender a natureza da burocracia, seja a pequena de uma câmara municipal, seja a grande do governo ou das instâncias europeias: o burocrata não tem qualquer incentivo para diminuir a sua importância, e isso nada tem a ver a sua diferença em relação ao comum cidadão, mas sim com a sua semelhança: é humano defender primeiro os nossos interesses próximos e só depois os da comunidade, sendo que quanto a esta a maioria das pessoas é tributária das modas de pensamento do tempo.

A segunda é ignorar a tradição: Portugal é um país em que o Estado sempre teve uma importância central e, modernamente, em que quantidades crescentes de pessoas dependem da mesa do Orçamento para viver porque é na máquina do Estado que estão empregadas. Isto faz com que mexer com a burocracia seja mexer com muitas pessoas, que resistem pacificamente ou nem tanto.

A terceira é a natureza do poder político: este resolve problemas e distribui benesses, e as eleições são, entre outras coisas, concursos de engenho para encontrar a resposta aos primeiros e leilões de bens roubados para cumprir parte das segundas. Acabar com subsídios a empresas, por exemplo, uma fonte inevitável de corrupção e de financiamento da concorrência desleal, é coisa que ninguém defende, nem na Europa nem entre nós: et pour cause, nenhum político subscreve a diminuição do seu poder e, no nosso caso, a chupice do contribuinte europeu é vista como um desígnio nacional, e não como a maldição dos recursos que provavelmente é.

Não é porém lícito negar alguns esforços que legislação vária tem feito, nomeadamente o Código do Procedimento Administrativo, cuja leitura conforta: direitos dos cidadãos abundam; o que falta é que não sejam, na prática, ocos.

Que falha? Responsabilização do Estado quando as coisas não funcionam. E como o Estado, na sua relação com os cidadãos, tem a mediação de serviços públicos e portanto funcionários ou políticos, seriam necessários mecanismos simples de indemnização do cidadão ofendido e perseguição tenaz dos responsáveis envolvidos, incluindo sanções disciplinares e financeiras dos primeiros, e execração pública e igualmente financeiras dos segundos.

Todos os casos? Não, seria impossível. Os que pudessem funcionar como exemplo dissuasor. Estes dois serviriam perfeitamente: por trás deles está um ou vários patifes inimputáveis.

A burocracia não se reforma por dentro, nem com o apoio dos burocratas – só por poderes externos, e sob a ameaça de severa férula. E enquanto os detentores do poder político não entenderem isto, podem parir quantos códigos e decretos quiserem que a realidade não mudará.

Simplex paraláxico

José Meireles Graça, 09.05.22

Vital Moreira conta uma história de abusozinho de um serviço público, semelhante a inúmeras outras que se passam todos os dias, e a historieta tem, para quem conheça razoavelmente o país em que vive, o selo da autenticidade.

Infelizmente, não percebeu bem o problema e caracteristicamente sugere uma solução que o não é. E como a personagem tem audiência nos círculos do Poder (ainda ontem no Princípio da Incerteza Alexandra Leitão reproduzia quase palavra por palavra a argumentação jurídico/burocrática, impecável no seu formalismo e estúpida na sua substância, deste prestigiado constitucionalista, para isentar a Câmara de Setúbal no escândalo da russofilia – um assunto de que não me vou ocupar aqui) o que escreve tem consequências.

O caso começa por a GNR reter abusivamente um documento. Abusivamente porque reter um documento por causa da falta de outro é um expediente do bully que a autoridade não deveria ser. Ou o procedimento está legalmente previsto e deve ser alterado; ou não está e o agente, ou quem o comanda, deve ser imbuído da convicção de não estarmos no Texas, através da competente sanção disciplinar. Vital, porém, este passo achou bem.

Continua com o cordato cidadão a produzir presencialmente o documento em falta mas nem assim lhe devolverem o outro, sob um pretexto capcioso. Não achou bem mas em vez de pedir para falar com o chefe do serviço e expor-lhe a situação (o homem reconhecê-lo-ia e isso seria provavelmente suficiente), que seria o expediente tuga na versão desenrascada, ou fazer um barulho dos demónios e cobrir a funcionária de sarcasmos, que seria o expediente da versão cidadão insolente, desestimada pelos costumes, foi fazer uma procuração – grande trabalheira.

A procuração dava-lhe plenos poderes mas não há maior poder do que o do funcionário atrás do seu balcão – uma realidade com a qual se esfrega quotidianamente o cidadão comum mas que jamais penetrou os espessos muros da Academia, pelo menos em Coimbra. O funcionário tem dentro de si, o mais das vezes, um pequeno ditador, não por ser diferente das outras pessoas mas por ser igual, sendo as excepções raras. De modo que Vital foi de requitó fazer um requerimento, regressou, lá resolveu o problema, e vem queixar-se e propor soluções.

Que soluções? Uma só, o Simplex, que infelizmente chegou a muitos lados mas não ao IMT de Coimbra, um esquecimento imperdoável. Noutros lugares e com outros documentos (o cartão de cidadão e o passaporte, refere expressamente Vital) é trigo limpo farinha Amparo: é tudo fácil e rápido. Chega a ser ternurenta esta fé, não se desse o caso de as redes sociais, que Moreira não frequenta, estarem inçadas de histórias de desesperos com os serviços, via internet: se aqueles não responderem, não esclarecerem, nem teimosamente deixarem de insistir numa nebulosa de procedimentos abusivos, atropelos e blackouts, o cidadão e o contribuinte não podem escaqueirar a tromba dos responsáveis como seria, senão desejável, ao menos compreensível, nem podem falar com o chefe, nem com o funcionário amigo de um amigo que dá um jeitinho, mas podem partir o telemóvel da penúltima geração, ou o computador da antepenúltima, com efeitos ademais benéficos na diminuição dos níveis de tensão arterial momentaneamente alterados.

O Simplex é, e sempre foi, um equívoco, porque não simplifica significativamente o funcionamento do Estado, nem altera o seu modelo de relacionamento com o cidadão, nem diminui custos para este: apenas desmaterializa por vezes papéis e poupa deslocações, que está por demonstrar valham mais do que a multiplicação de procedimentos e taxas, além de anonimizar uma relação que, por passar a ser impessoal, abre a porta a toda a casta de abusos insindicáveis. Não prevê sanções para atropelos e descasos, confiando em que o aparelho disciplinar que existe é amplamente suficiente. Mas não é, nem nunca foi: que vai acontecer a esta funcionária, ou a quem nela superintende no caso de estar realmente a cumprir ordens? Nada.

O bom do Vital acha que colocando esta idiota atrás de um computador sucedem três coisas: produz mais e recebe dois kilobytes de sensatez e pelo menos um de eficiência.

Isto ele acha e também que com o PS o país não será ultrapassado pela Roménia. Confere.

Tantos que não servem para nada

Pedro Correia, 23.10.20

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1

Existe em Portugal, desde 2016, uma coisa chamada Conselho Nacional de Saúde (CNS). 

Serve para quê?

Segundo a página oficial deste organismo, para «apreciar e emitir pareceres e recomendações sobre temas relacionados com a política de saúde», por iniciativa própria a solicitação do Governo. «Produz e apresenta ao ministro da Saúde e à Assembleia da República um relatório sobre a situação da saúde em Portugal, formulando as recomendações que considerar necessárias». E visa «promover uma cultura de transparência e prestação de contas perante a sociedade» . 

É composto, espantosamente, por 30 membros. Reunindo em plenário pelo menos duas vezes por ano e sempre que for considerado necessário, por decisão do presidente deste mesmo órgão ou de um terço dos seus membros, ou em qualquer ocasião a pedido do Governo. Beneficia do apoio permanente de um conjunto de peritos.

Fui à página oficial do CNS, cliquei em "a[c]tas das reuniões plenárias": a mais recente remonta a 4 de Julho. Podia ser pior: ainda não se cumpriram quatro meses de intervalo. Menos actuais são os  "relatórios de a[c]tividades": a contabilidade parece ter parado em 2018.

Enfim, senti curiosidade em perceber que notícias tinha produzido este órgão de consulta do Governo durante todo o Verão pandémico. Nada. Lembrou-se há dois dias de dar sinal de vida, interrompendo um pesado sono para parir uma "reflexão" em dez pontos. Em forma de decálogo e com a linguagem solene e desajustada da realidade a que os burocratas nos habituaram.

Lá surgem inanidades como esta: «Definir e implementar urgentemente um plano nacional de retoma da prestação de cuidados de saúde, que contemple estratégias de resposta à epidemia de COVID-19, assim como estratégias dirigidas ao cuidado das outras doenças agudas e crónicas e da promoção da saúde. Este plano deverá ser inclusivo e ter especial atenção às pessoas mais afe[c]tadas pela pandemia e às em situação de maior vulnerabilidade.» Ou esta: «Reforçar e investir em estratégias de promoção da saúde física e mental e de prevenção da doença, contribuindo para a literacia em saúde e a resiliência da população, envolvendo os recursos disponíveis em entidades governamentais, profissionais de saúde, media e redes sociais para a criação de espaços seguros e promotores de saúde, nomeadamente em escolas, lares e locais de trabalho.»

Fiquei esclarecido: isto não serve mesmo para nada.

 

2

Já havia este Conselho Nacional de Saúde. Mas o Governo, não satisfeito com isso, decidiu criar em Janeiro um Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP). Outro organismo de consulta, este especificamente destinado a emitir recomendações «no âmbito da prevenção e do controlo das doenças transmissíveis». 

Segundo o despacho ministerial que o criou, na tal linguagem pastosa e burocrática que menciono acima, o CNSP «integra representantes dos se[c]tores público, privado e social, incluindo as áreas académica e científica, pretendendo-se eclé[c]tica e abrangente, mas operacional e a[c]tuante».

Não fazem a coisa por menos: este órgão integra 20 membros, aqui enumerados - incluindo um pleonástico assento destinado ao presidente do Conselho Nacional de Saúde. 

O CNSP existe, fundamentalmente, para «análise e avaliação das situações graves, nomeadamente surtos epidémicos de grande escala e pandemias». Pensaríamos, portanto, que teria reunido diversas vezes desde que o surto epidémico em curso provocou a primeira vítima mortal no nosso país, a 16 de Março. Pura ilusão: não reuniu vez nenhuma.

Esta galeria de sumidades juntara-se apenas uma vez, antes dessa triste data, e manteve-se posta em sossego - como a doce Inês de Castro nos versos de Camões - até agora. Mais de seis meses depois, volta a reunir-se esta tarde com a ministra, por vídeo-conferência, para analisar a «implementação de medidas de saúde pública». A anterior reunião havia ocorrido a 11 de Março. E produziu uma inútil recomendação, que o Governo fez bem em não seguir, pronunciando-se contra o encerramento das escolas no âmbito do combate à pandemia.

 

3

Balanço de tudo isto: já havia um órgão inútil, criado por este Governo. Desde Janeiro, passou a haver dois. Enquanto a pandemia alastra a um ritmo avassalador, já com mais de três mil infecções diárias, esta gente nem se dá ao incómodo de fingir que mostra serviço.

Estão lá para quê?

Amor e Vistos Gold

Diogo Noivo, 26.07.18

Instalou-se a ideia de que Lisboa cria condições de excepção para estrangeiros europeus ou endinheirados que desejem residir na capital. Comprovei ontem que a percepção é completamente falsa. Embora, lamentavelmente, nada possa dizer sobre os endinheirados, vi que o calvário ao qual os cidadãos europeus são submetidos pela Câmara Municipal de Lisboa é pior do que aquele sofrido pelos portugueses residentes.

Apesar de qualquer cidadão europeu ter um Cartão do Cidadão ou um passaporte que atestam a sua condição europeia, Portugal exige-lhes um certificado de cidadania europeia, emitido pelo município competente. Reitero, para que não sobrem dúvidas: não se trata de um certificado de residência, mas sim de certificar que alguém com documentos oficiais emitidos por um Estado-Membro da União Europeia é, de facto, europeu. A tautologia custa 15€ por cabeça. Fui informado que “é assim em todo o lado”, embora não me recorde de ter sido obrigado a uma certificação semelhante quando residi noutros países do espaço comunitário. Adiante.

Chegados ao serviço de atendimento do município de Lisboa por volta das 10 da manhã, o número da senha, o 003, augurava um tempo de espera curto. Apenas duas pessoas à nossa frente, e uma já estava a ser atendida. Mas às 13h20 continuávamos à espera. Enquanto as senhas para tratar de outros assuntos – EMEL, execuções fiscais, urbanismo – se sucediam a uma média de onze por hora (havia tempo livre e tinha de me entreter), para tratar do certificado europeu a média era inferior a um. As pessoas entravam e saíam, enquanto nós e um simpático casal alemão olhávamos para o monitor, ansiosos pela nossa vez.

Às 14h15, quando finalmente fomos atendidos, a funcionária informou-nos que Lisboa não é o município competente (aliás, a falta de competência era evidente há mais de duas horas), mas sim um outro. Portanto, de nada serviu ter ligado na véspera para aquele mesmo serviço, ter facultado toda a informação, e me ter sido confirmado que sim, que era ali que me deveria dirigir para tratar do malfadado certificado. Valeu-nos a simpatia da pacata funcionária – que contrastava com a hiperactividade de um negreiro que por lá andava disfarçado de polícia municipal.

Moral da história: os estrangeiros só se mudam para Lisboa com Vistos Gold ou por amor à cidade – e porventura a um lisboeta. Pela competência dos serviços não é certamente.

Burocracias

Sérgio de Almeida Correia, 08.01.18

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Em 2006, por decisão do primeiro governo de José Sócrates, a pretexto da "implementação cabal de uma política de segurança de documentos de identidade e de viagem em consonância com as directrizes fixadas no âmbito da União Europeia e das organizações internacionais competentes", foi alterada a legislação relativa à emissão de passaportes. Por via das alterações então consagradas (Decreto-Lei n.º 138/2006, de 26 de Julho), os cidadãos nacionais passaram, a ser titulares de um documento de viagem moderno e seguro, o chamado passaporte electrónico PEP de leitura óptica e por radiofrequência, cuja tecnologia viria a ser exportada para outros países, e que incorpora um chip com, entre outros, os dados biográficos, a imagem facial do titular e a informação descritiva da emissão gravada a laser.

O problema é que esse documento de viagem, para além de se ter tornado significativamente mais caro, o que apesar de tudo é compreensível pela necessidade da sua modernização, passou também a ter um prazo de validade de apenas cinco anos, no que constituiu uma "golpada".

Este prazo de validade é manifestamente curto e tem vindo a causar grande transtorno os cidadãos nacionais, em especial aos residentes no estrangeiro, atentos os prazos que normalmente leva a emissão desse documento fora do País.

O prazo de validade de cinco anos conferido ao documento, na prática representa um prazo inferior a quatro anos e meio, visto que muitos países não permitem a entrada de cidadãos nacionais com documentos de viagem cuja caducidade ocorra nos seis meses anteriores.

Como em relação a alguns desses países é também necessário obter um visto de entrada, isso significa que objectivamente o prazo acaba por ser ainda mais curto. Pior ainda quando podendo-se obter um visto válido por dois ou mais anos para um determinado país, se é obrigado a solicitar um visto de apenas um ano porque o segundo ano já iria cair nos últimos seis meses de validade do documento.

A isto acresce o outro aspecto referido que se prende com o prazo normal que leva a emissão de um passaporte num dos muitos consulados e que pode ascender a vários meses, período durante o qual o cidadão nacional se vê impedido de viajar.

Em muitos países os emigrantes também não têm os consulados à porta de casa, o resultado é que os transtornos e despesas provocados pela emissão desse documento passaram a ser mais frequentes, sem que daí advenha outro benefício ao Estado que não seja uma maior sobrecarga dos já de si deficientes serviços que presta e um, não menos despiciendo na perspectiva das finanças públicas, acréscimo de receita.

Seria importante que o Governo português, agora que voltou a ter alguma margem de manobra para pensar, voltasse a este problema e que se procurasse alargar o prazo de validade dos passaportes nacionais, se não para os antigos dez anos, pelo menos para um período não inferior a oito anos, de maneira a minorar o transtorno que provoca o curto prazo de validade dos actuais. E ainda que isso representasse um custo proporcionalmente acrescido pela sua emissão por um prazo mais longo – para não prejudicar as contas do ministro Centeno –, o qual seria sempre menor do que aquele que é actualmente provocado aos seus titulares residentes no estrangeiro. 

À atenção do Governo da República

Sérgio de Almeida Correia, 07.04.17

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O tempo não é elástico, as solicitações são muitas, o espírito nem sempre é o melhor, mas é preciso voltar, regressar aos combates de todos os dias, voltar a percorrer o caminho.

Num país que nos últimos anos viu sair muitos dos seus jovens profissionais, alguns bastante qualificados, para paragens longínquas, admira-me que ainda ninguém tivesse levantado a questão. Não vai passar de hoje porque já não é caso virgem, e vou contá-lo em termos tão resumidos quanto possível.

Duas arquitectas portuguesas, ambas actualmente a estudar e a trabalhar na Austrália, para onde se mudaram de armas e bagagens à procura de uma vida melhor, viram-se na necessidade de se inscreverem no equivalente local da Ordem dos Arquitectos – Architects Accreditation Council of Australia –, a fim de verem reconhecidas as suas qualificações na terra que as acolheu e onde agora residem. Cada uma delas tratou de solicitar aos serviços competentes da universidade pública que ambas frequentaram a emissão dos documentos pertinentes, a saber: uma certidão académica contendo os nomes das disciplinas e respectivos créditos e uma certidão do programa de licenciatura em arquitectura contendo uma descrição sucinta das matérias leccionadas e incluídas em cada uma das disciplinas. Aparentemente seriam dois documentos corriqueiros, em tudo idênticos tratando-se de arquitectas que foram colegas de curso e do mesmo programa de estudos (pré-Bolonha).

O problema é que o resultado obtido com a emissão das certidões requeridas é de bradar aos céus. Sumariamente, só para perceberem o que cada uma das requerentes conseguiu da mesma entidade emitente, foi o seguinte:

a) Nas duas certidões académicas as disciplinas de Estática II, do 2.º ano, e de Teoria da Arquitectura II, do 4.º ano, estão descritas como disciplinas semestrais, sendo atribuídos 1 e 2 créditos, respectivamente, quando pelo Despacho nº 1723/2002, publicado no DR n.º 19, II Série, de 23/01/2002, as disciplinas de Estática II e Teoria de Arquitectura II são anuais, conferindo-se-lhes 2,5 e 4 unidades de crédito, o que significa que estavam as duas erradas apesar de terem tido um custo de € 80,00 cada;

b) Uma certidão contendo o conteúdo programático das disciplinas tinha o inacreditável número de 188 páginas, levou dois meses a ser emitida, e teve o custo de € 157,00, a outra tinha "apenas" 68 páginas;

c) Numa certidão a disciplina de Arquitectura I apresenta 18 páginas de descrição, enquanto na outra ocupa apenas 2 páginas;

d) Na certidão com 188 páginas, quanto à maioria das disciplinas, os ano lectivos correspondentes e as datas foram removidos de forma "artesanal";

d) Numa das disciplinas em que o ano lectivo não foi removido, o nome da disciplina foi escrito à mão como “Projecto II”, quando no rodapé se identificou a disciplina como “Projecto IV”;

e) Nesse mesmo documento e em relação a essa mesma disciplina, o ano lectivo que surge na descrição desta disciplina é 2003/2004, o qual não corresponde à realidade, visto a requerente frequentou a disciplina de Projecto II no ano lectivo de 200/2006;

f) Este documento incluía cópias de um plano de estudos que fora alterado, omitindo a rectificação que corrigiu uma inexactidão anterior que trocava um total "semestral" por um total "semanal";

g) Na certidão com 68 páginas faltava uma disciplina do 3.º ano;

h) Uma das certidões não incluiu a coluna dos créditos das disciplinas...

Este rol poderia continuar, mas o que fica basta para exemplificar o modo como, depois de tantas "reformas", continuam a funcionar alguns serviços da nossa administração pública.

Para lá do custo exorbitante do papel, do inacreditável número de páginas dos documentos e dos erros, imaginem o que fica a pensar das instituições e de Portugal, a entidade australiana junto da qual aquelas profissionais têm de fazer prova das suas qualificações para poderem exercer a sua actividade profissional. Isto sem esquecer a quantidade de questões que suscitam a quem recebe esses documentos, que deviam ser em tudo idênticos, de quem os apresenta, como se algum deles, ou ambos, tivesse sido rasurados ou falsificados pelos apresentantes. 

Depois, é preciso não esquecer o tempo que tudo isto leva a resolver. O tempo que se perde a escrever para explicar os disparates, mais o tempo e as despesas acrescidas para os documentos serem devolvidos, antes de no final as requerentes humildemente pedirem que as certidões devidamente corrigidas lhes sejam passadas no mais curto prazo, sem custos acrescidos, visto que os erros não foram da sua responsabilidade. Como se estivessem a pedir um favor a quem em nome do Estado português emitiu tais documentos.

Desconheço se as autoridades públicas têm a noção do transtorno que tudo isto causa a quem precisa de trabalhar, que teve de sair de Portugal para poder fazê-lo e que ainda por cima está longe, não podendo deslocar-se pessoalmente aos serviços para resolver o assunto.

Trago por isso mesmo este caso ao conhecimento dos leitores, deixando aqui publicamente uma sugestão que já tive oportunidade de recentemente fazer ao Secretário de Estado das Comunidades: que o Governo português encontre rapidamente um modelo único de documento, se possível em português e inglês, que seja emitido por todas as instituições de ensino universitário e, eventualmente, pelas ordens profissionais, que de uma forma simples, clara e uniforme, com um número de páginas razoável e um custo aceitável e acessível a qualquer bolsa, possa ser apresentado internacionalmente com a chancela do Estado português, de maneira a evitarem-se problemas como o descrito aos cidadãos nacionais, assim lhes facilitando a vida dentro e fora de portas.

O que se passou com as duas arquitectas portuguesas, uma residente em Sidney e a outra em Melbourne, para lá da incompetência que revela por parte de quem emitiu os documentos, dá sinal de uma terrível incapacidade de reforma e modernização das instituições públicas e de uma tremenda e persistente ineficiência.

Por isso mesmo peço desta tribuna a intervenção urgente do Governo português sobre esta matéria, para que não continuemos a ser vistos como uma espécie rara, como um povo de suicidas, e não volte alguém como o Manuel Laranjeira a escrever a um qualquer Unamuno que (cito de cor) "em Portugal a única crença ainda digna de respeito é a crença na morte libertadora".

 

Burrocracia

Ana Vidal, 04.11.13

Duas horas à espera de vez numa conservatória servem para perceber os requintes da novilíngua da burocracia, imposta pela todo-poderosa brigada do politicamente correcto. Por cima do balcão há uma placa onde se lê "Prioridade de atendimento a portadores de deficiência". É justo. Mas fico a saber que a deficiência é uma coisa portátil, pormenor que até hoje me tinha escapado. Resta-me recomendar a todos os deficientes que nunca se esqueçam da sua deficiência em casa, para não terem de esperar muito nas repartições públicas.