Kafka à moda lusitana
Henrique Pereira dos Santos conta aqui uma história sobre o Estado disfuncional – palavra dele. E um imigrante de nome Lira Neto conta esta outra sobre o Gólgota que vem percorrendo.
Do que tratam? No primeiro caso a Autoridade Tributária pontapeia a lei; e a Presidência do Conselho de Ministros, que não deveria ter nada a ver com uma questão corriqueira mas tem, “não atende o telefone, nem responde a mails, nem sequer para dizer qual é o ponto de situação do processo, e leva meses nisto”. Nisto e no mais é o reino de Kafka, o Checo que, sem saber, escreveu sobre Portugal, o país que era um tanto burocraticamente lerdo no princípio do séc. XX, e é muitíssimo no do XXI.
No segundo um imigrante arrepela os cabelos. “Detenham-me, prendam-me, deportem-me”, diz ele, que vem sendo jogado como uma pela de sites internet para números de telefone impedidos, e destes para endereços de e-mail que emitem respostas em linguagem de pau significando nada.
O primeiro caso faz ranger os dentes de impotência e irritação com o Estado que temos, mormente com a AT, uma organização maléfica de inquisidores; e o segundo de asco e ódio contra o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, um desserviço que trata os imigrantes abaixo de cão sarnento.
Escabichando, numerosos textos legais são ofendidos, direitos de cidadania ignorados e a pessoa de bem que o Estado deveria ser, mas não é, negada com descaso e insolência.
Histórias destas são às dúzias e os jornais e as redes só não estão inundados delas porque o assunto não desperta entusiasmo, o cidadão achando que a si não acontece nada ou, se acontece, que o seu caso é raro e que de todo o modo há uma maneira de resolver as coisas: “conhecendo as pessoas certas, usando os canais de comunicação adequados e entregando moedas de troca úteis a quem tem o poder de decidir”, como diz, e bem, o HPS. Cunha e corrupção, resumindo.
Se, raramente, alguém responsável se lembra de aprofundar um caso qualquer vai bater na parede da falta de meios, legislação inadequada e contraditória, conjugação infeliz de circunstâncias e falta de formação. O que tudo alimenta a ideia de que são precisas mais contratações, mais pessoas dentro de salas a ensinar o que não sabem a quem tem um interesse menos do que moderado em aprender, e que de todo o modo é palavreado de chacha mais vezes sim do que não. No melhor dos casos, e tendo poder, emite directivas ou legislação que enredam um pouco mais as coisas, ou, se não tiver, faz um relatório que algum responsável lê em diagonal antes de dizer “concordo” e despachar para uma gaveta.
Um serviço, a AT, é irreformável por definição porque as exacções e outros abusos sortidos, as ilegalidades, se corrigidas, provocariam uma redução, ainda que temporária, da receita, o que afectaria a propaganda das “contas certas”. Disto é prova o tradicional atraso das sentenças dos tribunais administrativos e fiscais, aqui verberada pela presidente do STAF. Embora o sistema da Justiça seja, todo ele, opaco, é fatal como o destino que os responsáveis, se inquiridos, esgrimam números provando que as pendências diminuíram e pérépépé. E isto por uma razão simples: se dedicassem mais tempo, como deveriam, a processos mais antigos, ainda que mais complexos, não teriam, et pour cause, números com algum progresso, mesmo que medíocre, para apresentar.
Mas não é provável que expliquem satisfatoriamente por que razão subsiste o escândalo de processos que se arrastam há oito, dez ou mesmo vinte anos, assim como não é provável que se lhes o pergunte: os jornalistas fazem geralmente as perguntas erradas, engolem as respostas como se não fossem beberagens imundas, e têm um indevido e atávico respeito pelos poderes.
Deixemos em paz a AT, que de todo o modo é um Estado dentro do Estado, de onde o Direito está ausente.
Por que motivo a generalidade dos serviços claudica frequentemente, quando há décadas que responsáveis políticos se propõem aproximar, simplificar, desmaterializar e simplexar?
A primeira razão é não se entender a natureza da burocracia, seja a pequena de uma câmara municipal, seja a grande do governo ou das instâncias europeias: o burocrata não tem qualquer incentivo para diminuir a sua importância, e isso nada tem a ver a sua diferença em relação ao comum cidadão, mas sim com a sua semelhança: é humano defender primeiro os nossos interesses próximos e só depois os da comunidade, sendo que quanto a esta a maioria das pessoas é tributária das modas de pensamento do tempo.
A segunda é ignorar a tradição: Portugal é um país em que o Estado sempre teve uma importância central e, modernamente, em que quantidades crescentes de pessoas dependem da mesa do Orçamento para viver porque é na máquina do Estado que estão empregadas. Isto faz com que mexer com a burocracia seja mexer com muitas pessoas, que resistem pacificamente ou nem tanto.
A terceira é a natureza do poder político: este resolve problemas e distribui benesses, e as eleições são, entre outras coisas, concursos de engenho para encontrar a resposta aos primeiros e leilões de bens roubados para cumprir parte das segundas. Acabar com subsídios a empresas, por exemplo, uma fonte inevitável de corrupção e de financiamento da concorrência desleal, é coisa que ninguém defende, nem na Europa nem entre nós: et pour cause, nenhum político subscreve a diminuição do seu poder e, no nosso caso, a chupice do contribuinte europeu é vista como um desígnio nacional, e não como a maldição dos recursos que provavelmente é.
Não é porém lícito negar alguns esforços que legislação vária tem feito, nomeadamente o Código do Procedimento Administrativo, cuja leitura conforta: direitos dos cidadãos abundam; o que falta é que não sejam, na prática, ocos.
Que falha? Responsabilização do Estado quando as coisas não funcionam. E como o Estado, na sua relação com os cidadãos, tem a mediação de serviços públicos e portanto funcionários ou políticos, seriam necessários mecanismos simples de indemnização do cidadão ofendido e perseguição tenaz dos responsáveis envolvidos, incluindo sanções disciplinares e financeiras dos primeiros, e execração pública e igualmente financeiras dos segundos.
Todos os casos? Não, seria impossível. Os que pudessem funcionar como exemplo dissuasor. Estes dois serviriam perfeitamente: por trás deles está um ou vários patifes inimputáveis.
A burocracia não se reforma por dentro, nem com o apoio dos burocratas – só por poderes externos, e sob a ameaça de severa férula. E enquanto os detentores do poder político não entenderem isto, podem parir quantos códigos e decretos quiserem que a realidade não mudará.