Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Vida de filme

Sérgio de Almeida Correia, 20.04.20

21775563_Ovzeq.jpeg

 

O livro não é muito recente, mas só agora me chegou às mãos graças à generosidade de um amigo.

Histórias de espionagem e agentes secretos sempre constituíram um tema interessante, em especial quando relacionadas com situações políticas reais de que apenas se tomou conhecimento por curtas notícias da televisão ou dos jornais. Quando o tema se prestava, por vezes, dava origem a interessantes filmes/documentários para televisão ou cinema.

O que este livro tem de diferente, um pouco como nas memórias de Forsyth, é que todas as histórias são verdadeiras. Independentemente da perspectiva que nos dão do interminável conflito israelo-palestiniano, os operacionais, os heróis e os mortos existiram mesmo, e alguns dos primeiros ainda estão vivos para trazerem o passado até nós e acenderem algumas luzes que nos ajudam a compor o puzzle, completando memórias anteriores.

Longe da imagem de uma Mata Hari, Sylvia Rafael, de seu nome, ou Patrícia Roxenburg, a identidade que assumiu após chegar ao Canadá, foi uma das lendas da Mossad, participando em numerosas operações sob diversos disfarces.

Feita agente clandestina, dotada de uma vontade férrea, educada, culta, com a classe e o charme suficientes para despertar paixões, o seu nome sempre foi uma dor de cabeça para a Fatah, o Setembro Negro e em particular para Ali Hassan Salameh, o cérebro da Força 17, responsável pelos atentados de Munique, pelo desvio de aviões comerciais e um rasto de atentados e inocentes mortos ao longo de vários anos.

Depois do fiasco da operação Lillehammer, recuperaria a sua identidade, acabando por casar com o advogado que a defendeu no processo de Oslo, Annaeus Schjødt, e a acompanhou até ao fim dos seus dias.

Foi este quem, no dia do seu funeral no kibbutz onde Sylvia foi voluntária durante os seus primeiros anos em Israel, sugeriu a elaboração do livro a Moti Kfir. Doutorado em História pela Sorbonne, tendo dirigido a Escola de Operações Especiais da Mossad, Kfir foi o seu recrutador, e hoje empresta o seu know-how a uma empresa portuguesa, pelo que se um destes dias se cruzarem com ele não se admirem.

Enquanto o filme não chega, e outras versões não aparecerem ("No story ever truly ends, and no account of a person's life can be all-inclusive"),  fiquemos com o documentário que entretanto se fez, e com o muito interessante livro de Kfir e do jornalista Ram Oren sobre a vida de Sylvia Rafael. O prefácio é do reformado Major-General Shlomo Gazit, ex-director dos serviços de inteligência militar e ex-presidente da Universidade de Ben Gurion.

Humidade partilhada

Sérgio de Almeida Correia, 23.03.19

2.-humidade-dos-dias.jpg

(Da Sessão de Apresentação, na Livraria Portuguesa)

Conheço o Luís Mesquita de Melo desde os tempos em que foi assessor jurídico da Assembleia Legislativa de Macau, e o Hélder Beja pelo seu trabalho como jornalista e organizador, em anos anteriores, da Rota das Letras. Estas duas circunstâncias de natureza pessoal seriam, só por si, manifestamente insuficientes para que aqui estivesse deste lado a sujeitar-me ao vosso escrutínio.

Não sei de quem partiu a ideia porque sobre isso não conversei com nenhum deles, mas correspondendo à afabilidade do editor, e com o aval do autor, estou aqui hoje para dar um pequeno contributo ao lançamento de “A Humidade dos Dias”, obra seminal do autor e a primeira editada pela Capítulo Oriental.

Faço-o porque para além da admiração e da estima que tenho por ambos, pessoal e pelo que nas actividades profissionais respectivas vão fazendo e de que vou tendo notícia, “A Humidade dos Dias” reúne um conjunto de textos que desde o primeiro momento prenderam a minha atenção.

Das razões para tal, não sendo especialista em literatura e sem outras pretensões que não sejam as impressões do leitor interessado, procurarei adiante dar-vos conta.

Para já gostaria de começar por sublinhar a feliz coincidência do autor ser açoriano e de a programação deste ano do Festival Rota das Letras, embora dedicado em primeira linha à poesia, congregar entre o conjunto dos poetas e escritores que pretendeu homenagear, alguns que, por uma razão ou por outra, pela genealogia, pela obra ou pela vida, aparecem com ligações aos Açores, ilhas de terra, mar e povo generosos.

Refiro-me desde logo a Jorge de Sena, também ele filho de um açoriano, que enquanto professor das Universidades de Wisconsin e da Califórnia, em Santa Bárbara, desenvolveu actividade profissional que o levou a um contacto constante e profícuo com as comunidades açorianas nos Estados Unidos. E essa aproximação foi de tal sorte que ele próprio, num texto publicado na Gávea, chegou a escrever que “embora eu seja contra a independência dos Açores, uma vez que tal facto seja consumado e o governo de lá seja a meu contento, pedirei a cidadania açoriana: no fim das contas, a minha família paterna é de lá, meu pai nasceu lá, e de vários troncos sou de lá até pelo menos ao seculo XVIII, ainda antes da independência dos Estados Unidos.”[1]

Nesse grupo incluo também Sophia, que não deixou de nos encantar quando se referiu a essas ilhas em que “(...) o antigo / Tem o limpo do novo” e “Há no ar um brilho / De bruma e clareza”.[2]

E depois há Melville, que, integrando o mar dos Açores, os seus pescadores e os seus cetáceos na narrativa do seu fantástico Moby Dick, percorreu oceanos imensos, preenchendo com as suas aventuras muitas horas da infância de tantos de nós, meninos que despertavam para o mundo e teimavam em adormecer sonhando com baleias, orcas, cachalotes, tubarões e viagens sem fim até aos mares do Sul.

Tudo isto nos transporta até “A Humidade dos Dias”, cuja belíssima capa de Konstantin Bessmertny, por onde um olho espreita distante, nos abre uma janela luminosa e refrescante para o que se segue.

Com um prefácio de Victor Rui Dores, poeta, escritor, ensaísta, professor, personalidade sobejamente conhecida da vida artística e cultural dos Açores, e com um posfácio de Ângela de Almeida, investigadora e escritora, dir-vos-ei que estamos perante um conjunto de vinte pequenos textos que percorrem os anos da juventude do autor, recuperando a memória dos seus horizontes, vividos e desejados, nos caminhos do Faial e do Pico, em passeios de barco e em mergulhos que atravessam os desfiladeiros da afectividade, do amor e da amizade, nas múltiplas tonalidades dos azuis metafísicos, transcendentais, que orientam o autor até ao presente pelos caminhos de uma geografia toda ela feita de imagens e de cheiros, que atravessando as veredas da saudade se prolongam até ao presente em palavras e gestos de ternura recuperados pelo seu próprio percurso de vida. Como se não houvesse, jamais tivesse havido, lonjura. Como se o autor nunca tivesse sentido o sabor da partida e a distância física e espiritual das ilhas.

Distância que, por esse prisma, mesmo nas ausências tem o condão de não conseguir impedir o autor de voar nas asas das ganhoas ou dos cagarros, de o prender à luz dos dias, à linha perfeita das estações do ano que se recortam no seu horizonte de cada vez que se faz ao largo, transportando-o num movimento de vaivém entre o Oriente e as ilhas, por um percurso cujos marcos, não obstante a bruma que impregna as páginas do livro, estão minuciosamente definidos e se tornam aconchegantes à medida que os percorremos.

O menino que manobra corajosamente o lusito de velas de lona, “sonhando transatlanticamente”, não fica atrás do capitão-de-mar-e-guerra Manuel de Azevedo Gomes. O tal, pelo relato da baronesa da Urzelina, nesse incontornável Mau Tempo no Canal, que cruzara o lendário estreito de Simoneseki [Shimonoseki] na ponte da sua bateirinha, o Diu, e deslumbrara ingleses e franceses manobrando à vela, pelo porto de Hong Kong, no rasto de um tufão.[3]

Porque o autor, como ele próprio confessa, leva escritas na pele as coordenadas do seu regresso, “porque a ilha arquiva-se na alma ... sem remédio[4].

Luís Melo 20190322_183652.jpg

Em “A Humidade dos Dias” há como que uma fusão quase religiosa entre o autor e as ilhas, independentemente do lugar onde está, daí emanando um sentimento de pertença que atravessa gerações e correntes oceânicas, as tais que “empurram os sonhos”, e onde “começa sempre a viagem de regresso, um dia, porque só nas ilhas se cumpre o nosso destino e amordaçamos a saudade com paredes de lava”.[5]

A mesma lava que molda o carácter daquelas gentes, e a que o autor não foge quando assume as suas raízes no diálogo que trava com seu Pai ao escrever: “aquilo de que nós somos feitos: lava e ausências, sós, trazendo nos olhos a saudade e a tranquilidade de um ou outro anticiclone teimoso[6].

Um pouco à semelhança do que sentia Vitorino Nemésio quando escrevendo sobre a sua açorianidade, cujo desterro, segundo ele, afina e exacerba, referia que “como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra”.[7]

De certa forma, o destino é um misto de fatalidade e ternura, de solidão e encantamento, onde se sente a tal “solidão algodoada” de que falava Raúl Brandão[8]ao referir-se ao Pico, também presente em Pedro da Silveira quando nos diz “E é tudo tão igual, tão encharcado de solidão / Que a gente às vezes já nem sabe/ se vive”[9]. Afinal a mesma solidão que aparece, igualmente, num pequeno mas belíssimo texto do pai do autor, Fernando Melo, quando depois de concluir a 4.ª classe e sair do Pico, para ser largado no Faial, onde iria continuar os estudos liceais, vê o progenitor afastar-se na lancha que vai de volta enquanto as lágrimas lhe rebentam “maiores que pingos de chuva”, para só secarem na casa onde ficaria hospedado, “sobre as páginas dos livros”, ainda para ele desconhecidos.[10]

O Luís vive intensamente esta condição de ilhéu, este “torpor açoriano”. “[U]ma doença quase de alma”, escreveu Nemésio, interiorizada logo na infância e que se cola à pele ao longo da vida, tal como a humidade, uma constante na literatura açoriana que também aqui estabelece um paralelo com Macau.

É a humidade, aquele ar morno, como escreveu Brandão, que “é uma carícia de pele de encontro à nossa pele e que pesa sobre o peito como bloco”. Ou o cansaço, de que falava o saudoso poeta Santos Barros, que se respira quando se abre a porta[11], que aproxima os Açores dos mares do Sul da China, da névoa quase permanente. Mas isso também acontece com o Monte da Guia, com a Nossa Senhora da Guia, com a Ermida no cimo do monte dominando a paisagem, com a procissão do Senhor dos Passos ou até com os bilhares do Real Clube Faialense, cujo feltro verde, porventura menos gasto, não será muito diferente daquele que por aqui forra a mesa do Clube Militar. Enfim, circunstâncias que até na toponímia unem lugares tão geograficamente distantes e tão próximos na vida do autor.

Deixei para o fim uma breve referência ao belíssimo Canto da Doca, escrito de intenso significado no contexto do livro, “espécie de passagem para os arredores da alma, e da cidade, uma fronteira em forma de esquina que não se dobra”. É por ali que passa a linha que separa a Primavera do Verão, a estação que divide a cidade da infância e juventude da maturidade. Ali, onde se faz a transposição do sonho para a realidade da vida adulta, do Verão para o Outono e o Inverno. Do botequim do Setenta para Porto Pim. E para o Bote de Tabucchi[12]. No botequim do Setenta “as mulheres não entram”. E “joga-se à lerpa em dias de procissão”. O Bote “não é um lugar para senhoras”.   

Numa escrita simples, marca distintiva só ao alcance dos melhores, “A Humidade dos Dias” é uma homenagem às pessoas e aos lugares da memória do autor. E é, igualmente, uma declaração de amor às ilhas “onde o mar é maior[13].

Como leitor e amante dos Açores, do voo dos queimados e do azul profundo das suas baixas, só lhe posso estar agradecido.

“A Humidade dos Dias” é um livro que pela intensidade das imagens que transmite podia ser um filme. Uma viagem. Ou apenas palavras, lidas como um poema murmurado à vista do azul basáltico do canal, na antecipação de qualquer coisa que foi, promessa de algo que há-de vir. Ou chegar. Em silêncio; “[q]ue no mar não se anda aos berros para não acordar os deuses”.[14]

Macau, 22 de Março de 2019

[1]Jorge de Sena, Ser-se imigrante e como, in Gávea-Brown, Revista Bilingue de Letras e Estudos Luso-Americanos, Vol. I, n. 1, Janeiro-Junho 1980, p. 14  

[2]Sophia de Mello Breyner, Açores, O Nome das Coisas, Morais Editores, 1977

[3]Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Edição Círculo dos Leitores, 1986, p. 247.

[4]Cfr. Partida

[5]Cfr. Uma Carta de Marear

[6]Ibidem.

[7]Vitorino Nemésio, "Açorianidade", Insula, Número Especial Comemorativo do V Centenário do Descobrimento dos Açores, nº 7-8, Julho-Agosto, Ponta Delgada, 1932. p. 59.

[8]Raúl Brandão, As ilhas desconhecidas – Notas e Paisagens, 1926

[9]Pedro da Silveira, Quatro Motivos da Fajã Grande, citado por Onésimo Teotónio de Almeida, Quadro Panorâmico da Literatura Açoriana nos Últimos Cinquenta Anos, 1989

[10]Fernando Melo, Sózinho no Cais, Boletim da Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta, Ano 1, n.º 2, 1999

[11]José Henrique dos Santos Barros, Humidade, 1979

[12]Antonio Tabucchi, A mulher de Porto Pim, Difel, 1998.

[13]Sophia de Mello Breyner, obra e lugar citados.

[14]Cfr. Baleeiros

Painel Rota 20190322_182110.jpg

A ler

Sérgio de Almeida Correia, 21.01.19

eliete.jpg

"Somos a nossa memória, começou por dizer, a memória determina o que sentimos, o que sabemos, o que imaginamos, o que intuímos, somos a nossa memória e quando lhe perdemos o acesso, mergulhamos num vazio inimaginável, sem acesso à memória não poderemos saber dos valores morais que nos guiam, dos amores e dos medos, das ambições, dos erros e fracassos, tornamo-nos tão imprevisíveis e misteriosos como qualquer recém-nascido, mas enquanto o recém-nascido é um desmemoriado programado para criar memória, para se tornar um adulto autónomo e independente, estes desmemoriados estão impedidos de criar e guardar memórias, estão impedidos de tornar a ser, de mentis, do latim, mente vazia, podemos dizer sem exagero que se assiste à construção do nada, percebe?" (Dulce Maria Cardoso, Eliete, Tinta-da-China, Lisboa, 2018, pp. 244/245)

 

Parti para a sua leitura sem saber o que iria encontrar, embora pensasse que de uma consagrada como Dulce Maria Cardoso, vencedora de inúmeros prémios, traduzida e publicada em duas dezenas de países, nunca se pode esperar pouco. E não me enganei.

Não sei se existe aquilo a que já alguém chamou uma "escrita no feminino", expressão que considero detestável mas que entendo como querendo referir-se a uma escrita feita por mulheres e que por isso mesmo carregaria um estilo muito próprio, com preocupações que não seriam as decorrentes de um texto sobre o mesmo tema escrito por homens.

Pensei nisso várias vezes ao longo da leitura desta "Parte I A Vida Normal". A vida de uma mulher escrita por outra mulher, num período histórico muito próprio, percorrendo momentos pré e pós-revolucionários, a revolução social operada em Portugal e o universo muito particular e espacialmente localizado de Cascais e da linha do Estoril, percorrendo a emancipação profissional e sexual da mulher, os dramas da família e do casamento, a partida, a separação, a ausência, a dor, o esquecimento, o nascimento, a velhice e a morte. Um olhar que até no julgamento que faz de Jorge se torna cruel de tão cristalino. 

Está lá tudo numa narrativa consistente, com uma escrita poderosa, que flui e nos agarra ao longo das quase três centenas de páginas, antes de um final que será tudo menos expectável. A linguagem é desprovida de ornamentos, forte, por vezes mesmo agreste, rude, apesar de perfeitamente enquadrada nas cenas descritas, nas deambulacões da personagem principal. 

Costumo dizer que os melhores livros são os que me surpreendem pela qualidade da escrita do seu autor e pela projecção da narrativa. Quando um livro me faz esquecer as suas páginas ao longo da leitura, para me fazer saltar as suas próprias barreiras e é capaz de me levar para uma outra dimensão do pensamento e da palavra, com a mesma simplicidade com que me transporta ao longo dos seus parágrafos, quase como que projectando as suas diversas histórias numa só, e misturando as nossas com as do texto, é sinal de que está muito para lá daquilo que é o romance ou a novela convencional, fazendo esquecer a obra em que todos os cânones se revêem, são respeitados, onde tudo surge muito limpinho, muito formal, muito compenetrado e insípido.

O sal da escrita de Dulce Maria Cardoso está na luz que projecta, no modo como ilumina ao leitor o trajecto de Eliete e o faz dele participar, muitas vezes sem que seja possível para quem lê aperceber-se logo das opções tomadas pela autora e da multiplicidade de sentimentos que assolam vidas aparentemente simples e normais. Como que a dizer-nos que não existem vidas simples nem normais. Há apenas vidas. Cada uma tem a sua cor. O segredo está em saber colocá-las todas nas páginas de um livro, sem cansar e enriquecendo-nos a memória.

A guerra na primeira pessoa

Alexandre Guerra, 24.10.18

20181024_160352.jpg

 

Quando estive há cerca de dois meses na Bósnia, conheci um jovem guia, que está a tirar o doutoramento numa universidade de Ancara e que tem estado envolvido no museu de Srebenica. Este projecto ocupa as antigas instalações do que foi o então quartel-general do tristemente célebre contingente holandês ao serviço da UNPROFOR, localizado em Potacari, a poucos quilómetros da vila de Srebrenica, que viu serem assassinados de forma sistemática mais de oito mil bósnios muçulmanos (bosniaks), entre 11 e 16 de Julho de 1995, sob os ordens militares do general sérvio Ratko Mladic. A meio de uma das conversas que tive com Jasko, fiquei impressionado com o conhecimento que detinha sobre a presença portuguesa nas missões da ONU e NATO. Apesar de ele não ter mais de 30 anos, tinha bem presente a boa prestação que o contingente português teve ao serviço da força de manutenção de paz da NATO (IFOR), em 1996, cujo objectivo era a “implementação” das linhas dos Acordos de Dayton (1995). Tratava-se da primeira projecção de forças militares nacionais em larga escala desde o fim da Guerra Colonial.

 

Já antes, em pleno conflito nos Balcãs, Portugal teve uma participação muito limitada, mas importante, na missão UNPROFOR (United Nations Protection Force), destacando para a Bósnia e Croácia, entre 1992 e 1995, um pequeno grupo de “observadores militares” não armados de capitães e majores do Exército e Força Aérea. Esta operação acabou por ser uma extensão da missão europeia de verificação do cessar-fogo entre a recém-proclamada independente Eslovénia e a (ainda) Federação da Jugoslávia. Quando a Missão de Monitorização da CEE/UE deu lugar à força da ONU, os primeiros capacetes azuis portugueses chegaram no primeiro trimestre de 1992. Nesse primeiro momento, foram apenas cinco “observadores” integrados na United Nations Military Observation (UNMO), um ramo da UNPROFOR.

 

Entre 1992 e 1995, tempo do mandato da UNPROFOR, Portugal foi mantendo “observadores” no terreno, que iam desempenhando missões diárias que, embora não sendo de perfil militar puro e duro, se revelaram de enorme importância na criação de um clima de confiança no seio das populações tocadas pelos soldados nacionais. Como se pode ler na introdução do recente livro “A Guerra na Antiga Jugoslávia Vivida na Primeira Pessoa” (Colibri, Maio de 2018), coordenado pelos militares Carlos Branco, Henrique Santos e Luís Eduardo Saraiva, os observadores “viveram com a população em locais recônditos com quem partilharam o infortúnio. Sentiram o pulsar das comunidades onde estavam inseridos, conheceram os seus dramas em primeira mão. Pisaram minas, foram atingidos com estilhaços de granadas, tiveram acidentes de viatura, estiveram nas miras dos snipers, em zonas de morte, foram vítimas de ataques e assaltos, supervisionaram a troca de cadáveres e de prisioneiros de guerra. Foram testemunhas em primeira mão de violação de acordos. Sofreram a prisão e interrogatórios agressivos. Viveram em condições precárias, por vezes, sem electricidade, sem água corrente, aquecimento ou vidros nas janelas, oq eu se tornou numa minudência para que estava diariamente debaixo de fogo de morteiros de artilharia.

 

Foram ainda apanhados entre fogos cruzados, controlaram o tráfego aéreo, lidaram diariamente com as facções, pediram evacuações médicas, e tiveram de tomar decisões eticamente difíceis, algumas delas com consequências dramáticas. Testemunharam em directo o sofrimento. Viveram as agruras da guerra na sua plenitude.

 

São estes testemunhos que agora podem ser lidos num livro que reúne textos (em português e inglês) de militares que fizeram parte da UNMO. Com prefácio do embaixador José Cutileiro, este livro é um contributo inestimável para o conhecimento de quem se interessa pelo conflito da antiga Jugoslávia, que tantas marcas geopolíticas deixou naquela região da Europa. Mas é também uma janela para se perceber de que forma a “experiência jugoslava” marcou um novo período na projecção internacional das Forças Armadas Portuguesas no âmbito de nova ordem sistémica... Mais cosmopolita, interdependente e difusa.

 

Texto publicado originalmente n'O Diplomata

Lviv

José Navarro de Andrade, 11.06.12

Não será prudente recomendar assim sem mais nem menos “Les Bienveillantes” (trad. pt: “As benevolentes”, D. Quixote). Escrito directamente em língua francesa pelo americano Jonathan Littell, será provavelmente um dos melhores romances do séc. XXI, foi decerto um dos mais controversos, e mesmo numa época em que predomina a sensação de já se ter visto tudo, a sua leitura é capaz de perturbar ou até traumatizar os espíritos menos prevenidos.

O horror que se desprende das páginas de “Les Bienveillantes” deriva não tanto das cenas cruas e brutais nele descritas, mas sobretudo do modo meticuloso e prático como Maximilien Aue, o fleumático, se não blasé, oficial das SS, desempenha o seu trabalho. Este consiste em expurgar os territórios conquistados pela Wehrmacht a leste do Reich de qualquer resquício de semitismo, de modo a prepará-los para a radiosa colonização germânica. O nosso Aue, cujas preocupações pouco ou nada divergem das de qualquer bom profissional, afigura-se como um executivo competente, contrariando o acomodamento burocrático de alguns camaradas e procurando sempre aperfeiçoar a sua performance. Dito de outro modo: Maximilien Aue dedica-se a exterminar dezenas de milhares de judeus maximizando as cotas, a eficácia e os custos da sua operação – sim ele podia ser qualquer um de nós.

A primeira missão de Aue passa-se em Lemberg, que em polaco teve o nome de Lwów, enquanto cidade russa chamava-se L’vov e agora que pertence à Ucrânia tomou o nome de Lviv. À chegada o Einsatzgruppe de Aue é recebido em festa, o povo saiu à rua com bandeiras amarelas e azuis, acolhendo os nazis como libertadores e aclamando o líder nacionalista Stefan Bandera. Aos festejos não falta um pogrom.

Seria ignóbil discutir qual é o instantâneo mais horrendo dos muitíssimos horrores que se praticaram na II Grande Guerra. Este é dos que mais me impressionam e foi recolhido no pogrom de 1941 em Lviv.

É possível imaginar que a mulher da fotografia, menos de uma semana antes, não passasse de uma recatada matrona pequeno-burguesa, conservadora, mãe ou tia numa família de artesãos e lojistas, que levava a sua vida com pudor e discrição. E de repente, por ser judia, vê-se assim exposta e em pânico, fugindo seminua e sem destino rua abaixo, perseguida por um bando de rapazes na mais pura reinação, que de vez em quando lhe ferram uma paulada, para que ela não pare de correr aos tropeções e só para gozarem o seu desespero. A humilhação é um castigo mais desumano do que a morte.

Não sei se depois da Guerra os alemães terão regressado a Lviv antes deste Euro 2012, onde no Sábado jogaram contra Portugal.