Lembro-me de antes do virar do milénio ouvir dizer que uns fulanos registavam o domínio informático de algumas marcas conhecidas e depois os vendiam por um dinheirão. Talvez fosse um mito urbano, mas garantiram-me que a própria expo98 teve de negociar o seu domínio .com com alguém que se tinha antecipado.
À época, imaginar o que era um domínio, o que permitia e como este poderia ser comprado e vendido, era algo de uma escala quase esotérica.
Os anos foram passando. Com a progressão e penetração da internet nas nossas vidas esse e muitos outros conceitos impossíveis de explicar nos nossos tempos de juventude tornaram-se banais. O conceito de blog faz parte deste grupo de coisas. Como poderíamos explicar ao nosso avô o que é que afinal é isto do delito de opinião ponto blogs ponto sapo ponto pt?
Tendo já todos estes conceitos enraizados e clarificados, está em curso nos dias de hoje uma outra revolução. Já aí está, mas ainda só mexe nas franjas das massas. Refiro-me ao blockchain. Há muitas fontes de informação, mas nem todas são muito claras. Ouvir algumas dessas explicações traz-nos à memória aquela sensação de 1998 quando tentávamos entender como se podia negociar um domínio.
Sem me querer substituir aos entendidos, julgo que podemos explicar a tecnologia blockchain como algo que permite realizar registos comparáveis aos feitos num livro-razão mas de forma partilhada e descentralizada. Pode ajudar imaginarmos que esta tecnologia permitirá o equivalente aos registos públicos centralizados, mas que dispensa uma autoridade que os valide, pois podem ser verificados por todos e por isso tornam-se incorruptíveis.
Quando nos afirmarmos donos de um carro ou de um imóvel, baseamo-nos no registo que temos em nosso nome na Conservatória do Registo Automóvel ou Predial, conforme o caso. Ora, a tecnologia blockchain permite algo comparável, mas dispensando o registo centralizado. Segundo algumas opiniões é o próprio conceito de comunidade que sai reforçado face ao controlo centralizado.
É nesta lógica que assentam as criptomoedas, mas há um mundo imenso para além disso.
Daniel de Oliveira Rodrigues é um colunista convidado do Observador que aborda frequentemente estes temas e sobre os desafios que tudo isto coloca aos estados, à democracia e à liberdade. Como já disse não pretendo substituir explicações mais competentes, mas em termos das criptomoedas existe uma outra fronteira entre as que são efectivamente descentralizadas e aquelas que os estados pretendem programar como forma de controlar os movimentos financeiros e os assim os seus cidadãos.
A China, que não permite que nada das vidas dos seus cidadãos fique fora do controlo do Partido, quer banir as criptomoedas e subsitui-las pelo yuan digital que passará a ser mais uma ferramenta dentro do seu sistema de créditos sociais. O yuan digital é uma criptomoeda programada que, ao contrário das descentralizadas, além de permitir saber onde os seus cidadãos gastam cada um dos seus cêntimos de yuan, permite ainda que o stock de moeda de cada cidadão seja valorizado ou desvalorizado de acordo com o comportamento do seu detentor. Nem George Orwell se lembrou disto.
As criptomoedas descentralizadas funcionam como se de uma cortina se tratasse, na medida em que para além das quais não se consegue seguir o trajecto de pagamentos e transferências de valores. Os criminosos sabem disso e até se pode dizer que estas acabam por fazer concorrência às offshores.
Desde Setembro passado que a moeda oficial de El Salvador é o Bitcoin. Este pequeno país da América Central, que mais facilmente associamos aos narcotraficantes do que à inovação financeira, tornou-se assim o primeiro estado do mundo a abdicar de uma moeda convencional e a confiar numa criptomoeda descentralizada.
Se por um lado os estados, tal como os conhecemos, pretendem continuar a cobrar impostos sobre todos os movimentos comerciais, financeiros, sobre todas as remunerações de trabalho, valores patrimoniais e tudo mais, e ao mesmo tempo abdicar de invadir a última esfera de controlo sobre a privacidade dos cidadãos, acabarão por ter de decidir se permitem que esta realidade funcione de forma descentralizada ou se, tal como a China, exigirão que só funcione de forma programada. Tudo isto num mercado sem fronteiras e onde a concorrência é efetiva.
Como é visível, o debate sobre as possibilidades que esta tecnologia irá acarretar nas nossas vidas está atrasado face ao seu potencial impacto.
Mas, muito para além das criptomoedas, o blockchain permite também transaccionar outros activos, como obras de arte, música, domínios, “cromos” coleccionáveis, mundos virtuais para jogos, tudo isto e ainda mais um par de botas.
O meu próximo postal será sobre os NFT.