A intransigência artística de Bill Watterson
Bill Watterson faz hoje 65 anos.
Não houve na segunda metade dos anos oitenta e nos anos noventa uma tira de jornal tão popular como Calvin & Hobbes - e é bem possível que tenha sido o último grande sucesso de um formato que praticamente desapareceu das páginas dos jornais. No seu auge, as pranchas escritas e ilustradas por Watterson eram publicadas em milhares de jornais por todo o mundo; e a popularidade persistiu para lá do fim das tiras, em 1995, e para lá dos próprios jornais, também eles em declínio - os livros continuam a vender-se, e as histórias daquele miúdo irrequieto e do seu tigre sarcástico continuam a cativar leitores novos e antigos.
Não há muita gente que, como Watterson, tenha abdicado com tal desapego de largos milhões de dólares como ele abdicou. Isto não é hipérbole: se tivesse continuado a desenhar, e sobretudo se tivesse cedido ao licenciamento e ao merchandising, teria garantido uma fortuna com séries de desenhos animados, filmes, inúmeros brinquedos, publicidade e, sei lá, atracções em parques temáticos. E hoje Calvin & Hobbes seria mais uma marca, mais um franchise, mais uma "propriedade intelectual" reduzida a mero "conteúdo" (a mercantilização da expressão artística nos tempos das redes sociais é uma tragédia pouco falada), esvaziada de significado ou simbolismo. Watterson sabia-o bem - viu isso com os Peanuts de Schulz ou com o Garfield de Davis. E sabendo-o bem, optou pela via mais difícil: ainda no activo, lutou pela expansão do formato da tira de jornal, lutou ferozmente para manter os direitos sobre as personagens que criou e para evitar que elas fossem morrer fora das suas pranchas; e, no auge da sua carreira e da sua popularidade, decidiu parar. "Creio que fiz tudo o que podia fazer dentro dos limites de prazos diários e vinhetas pequenas", disse na sua nota de despedida em Novembro de 1995. A última tira de Calvin & Hobbes seria publicada a 31 de Dezembro desse ano.
Na prática, não existe merchandising de Calvin & Hobbes, ou pelo menos não nos formatos mais habituais. Há um manual escolar intitulado Teaching with Calvin and Hobbes (hoje um objecto de colecção), dois calendários feitos ainda nos anos 80, e uma t-shirt de uma exposição de banda desenhada no Museu Smithsonian. Ficaram os livros, que são o que de facto interessa: das várias colectâneas de banda desenhada em formatos de bolso a livros maiores, até à magnífica edição completa em três grossos volumes de capa dura, que pesa 10kg e é um pequeno luxo. Calvin & Hobbes não se dispersaram na voragem do consumo - resistem no seu formato original, impresas, palpáveis, reais. Há fãs de Snoopy e de Garfield que nunca leram ou lerão uma tira de Schulz ou Davis - o que, note-se, em si não tem mal algum. Mas todos os fãs de Calvin & Hobbes leram as tiras de Watterson, maravilharam-se com os seus desenhos e as suas palavras, encantaram-se com a sua espantosa imaginação. E isso deve-se tanto aos seus méritos artísticos, que são enormes, como à defesa acérrima que fez da sua obra.
Daqui por algumas décadas, quando Watterson já cá não estiver, a sua obra reverterá enfim para o domínio público - e estarão então abertas as portas para a mercantilização das suas personagens. Haverá então os brinquedos, os desenhos animados, os filmes, tudo e mais um par de botas. Eu, como Watterson, já cá não estarei para conhecer essa realidade - do meu tempo levarei as tiras maravilhosas que começaram a ser ilustradas no ano em que nasci, que descobri ainda em miúdo, e que continuarei a reler ao longo da vida. Ou seja, levarei o que de facto importa. Que Bill Watterson ainda celebre muitos aniversários, e que todos nós continuemos a maravilhar-nos com a sua imaginação.
(a quem se interessar, deixo o link para uma entrevista - antiga, claro - que ilustra muito bem a personalidade e as posições que Watterson sempre defendeu)