Posso esperar sentada e o 'big brother' protege-me
Pode esperar sentada - dizia-me o agente do comando distrital da PSP, no seu jeito rústico-polido. Eram quase 8 da noite e fazia um frio de quebrar ossos no moderno átrio da entrada onde ele recebia os demandantes, aparentemente imbuído do papel de anfitrião magnânimo na distribuição dos seus confortos.
Olho em volta e vejo vários gabinetes modernos, envidraçados, mas apenas um ocupado.
Declaro: - Venho participar um roubo, onde posso ser atendida? - Ali, naquele colega, apontava ele. Havia 6 pessoas sentadas. Perguntei se não havia mais ninguém disponível para receber participações.
- Mais ninguém.
Entretanto, entravam e saiam agentes, cumprimentavam o comparsa, passavam. Uns seguramente a sair do plantão. Outros a render a guarda. Mas reforços administrativos... nem vê-los.
O recepcionista era boa gente. Meio incomodado e vendo-me infernizada depois de 2 cigarros na noite crua, pergunta-me ao que venho.
- O meu carro foi assaltado. Partiram o vidro de trás e surripiaram o que puderam, ate à bagageira foram. À porta do sítio onde trabalho, nas barbas de 2 reis de Portugal e debaixo dos badalos da cabra mais famosa do país. Ainda não estou em mim, é inacreditável, o senhor não concorda? - Pois é (condoído) isto está cada vez pior... Devia era ter chamado uma brigada ao local, assim não esperava tanto. - Mas vou ter de esperar muito? - Está a ver, para além da pessoa que lá está dentro, são estas três e depois aquelas duas - Ah, estão em grupo, menos mau. - É, mas sabe que isso não adianta, antes pelo contrário. Quantos mais ao mesmo tempo, pior.
Isto devia ser como nas urgência hospitalares, pensei eu. Entrava o queixoso e mais ninguém.
Lá dentro, o 'ouvidor ' esmifra-se entre as armadilhas do teclado e as do linguajar autêntico dos depoentes.
Perguntei se não havia formulários para uma pré-participação, onde descrevesse os factos, o local, a hora, a identificação... - Está a ver? Depois era só validar e completar, adiantava muito serviço! Não precisa, não precisa. É falar clarinho e às vezes, com sorte, aquilo já lá tem quase tudo na máquina... – Mas quase tudo, como? (pergunto) – Está meio feito, percebe?
Às dez da noite, ainda decorria a audição dos segundos demandantes da fila.
Posso esperar sentada, posso...
Passava das onze horas quando fui atendida. Urbano e desenvolto, o inquiridor começa: – Nome? Identifico-me. - Muito bem, mora então na Rua… (e debita o meu endereço). - E o seu número de telemóvel ainda é este? (e debita). Eu, abismada: - Então os senhores agora trabalham em rede? Sorriu: - Vamos tentando, vamos tentando. - E qual a participação? - Roubo. – Tem a certeza que é roubo, não será antes um furto? (clássica exibição). - Sei perfeitamente o que digo, trata-se de um roubo de bens que estavam dentro do meu automóvel.
- Está a falar do XX-DO-XX? (e debita a matrícula). - Marca tal, ano tal? Só me falta a cor… dizia, com ar deliciado. Eu, estupefacta: - Sim, é isso mesmo, mas o ano não é esse. – Ah-ah! solta, exultante. - Esta aqui eles falham sempre, o ano nunca vem certo!
E pronto. Afinal, eu não estava muitos anos à frente daquela administração, esta é que estava muito para além do que eu poderia imaginar...
Descritos os factos - que doravante farão parte integrante do meu ficheiro da 'aldeia global'- foi só reler, assinar a participação e a notificação da acção de indemnização, guardar a cópia. E sair. Tudo em menos de meia hora.
Estamos assim: Dá-me a tua vida privada, dar-te-ei a minha segurança. E menos tempo de espera, claro: é a desburocratização.
Jantei praticamente à meia-noite. E apeteceu-me perguntar ao 'big brother' se era servido. Coitado, deve ter uma vida difícil.