Segunda de manhã
Comecei a manhã de ontem antes das 8.
As encostas mais próximas do Parque Natural de Serra d’Aire e Candeeiros (PNSAC) são íngremes, especialmente para serem subidas de bicicleta. Ali, os nevoeiros são frequentes. O manto branco que ontem se abatia sobre o seu relevo, criava uma penumbra que abafava quase tudo. Quase tudo, excepto o grasnar dos corvos, que embora invisíveis, continuavam a ouvir-se. É um ambiente estranho, que não deixa de surpreender.
Naquela sequência de trajecto, as antenas da Protecção Civil e o Arco da Memória são os pontos de passagem que se seguem. À memória vem a proverbial pergunta que já alguém colocou durante uma outra subida, porque é que raio não colocaram as antenas lá em baixo no vale?… visitávamo-las mais vezes.
Mais à frente fica o Arco da Memória, outrora marco divisório entre o termo de Porto de Mós e os Coutos de Alcobaça, já foi um distinto monumento feito num calcário branco que contrastava com a escura vegetação que o rodeia. Agora, não passa de um anão rodeado de gigantescas torres eólicas, que com elas trouxeram um largo estradão que quase o atropelou.
Uns quilómetros mais adiante, começa a longa descida até aos Moleanos, povoação que vive entalada entre as gruas que retiram pedra, com o mesmo nome, do interior da serra e os camiões do IC2. Estes, que como formigas gigantes em fila, transportam várias vezes o seu peso em mercadorias, seguem em direcção às prateleiras onde nos abastecemos.
De seguida, já a acusar falta de combustível, parei no Restaurante “A Dulce”. O corpo aspirava pelo maior bolo de pastelaria da casa e por uma cafezada. Ali servem-se refeições, bifanas e demais acepipes. O dia gastronómico de quem trabalha por ali perto funciona à volta daquele espaço. A meio da manhã pára-se, para queimar um cigarro, beber uma bica e encher uma garrafa de água (a que vi era das pequenas) com um palmo de tinto, que segue dali para fora disfarçada dentro de uma algibeira. O conceito da economia circular já chegou aos recantos mais improváveis.
Folheei o Correio da Manhã que descansava no balcão. A secção de crimes nunca desilude. “Traficante em cadeira de rodas mata pianista por herança”. Bastava acrescentar-lhe um detective que fosse anão e celíaco e teria tudo para inspirar uma série vencedora na Netflix.
De regresso à berma da estrada, comecei por procurar o cruzamento para a Ataíja, que fica junto ao antigo lagar de azeite dos Coutos de Alcobaça. Pelo caminho, lá estavam as senhoras que vêm cedo de Lisboa para ali pendurarem roupa colorida a secar. Já me disseram que, tal como nas praias com vigilância, há para ali uns códigos de cores, mas são reservados a entendidos.
Já com a chaminé de casa quase à vista, cruzei-me com um amigo que não via há uns anos. Falamos uns minutos. Disse-me que mudou de vida. Constituiu família e desfez-se de um negócio que tinha. Explicou-se que decidiu fazê-lo quando reparou que se tinham invertido os papéis. Era o negócio que o tinha a ele e esgotava-se a trabalhar só para o conseguir manter. Está feliz com a decisão.
Com esta volta terminada, depois de enxaguados os suores e da farda mudada, segui para um almoço marcado há bastante tempo com um grupo de amigos. A data foi escolhida com detalhe. Os 12 anos que nos distanciam da derrota eleitoral que livrou o país de Sócrates merecem sempre um dúzia de brindes. Um balão de CRF depois de almoço ajuda a distrair do facto dos portugueses não terem mandado os seus correligionários para um aterro sanitário. Raios partam a economia circular.