Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Emoções #5

Banda desenhada

Maria Dulce Fernandes, 01.05.21

22075939_QtGta.jpeg

 

Tex Willer e o Signo da Serpente

Por volta dos meus quinze ou dezasseis anos, todas as sextas-feiras depois da escola eu ou o meu irmão íamos à CaJor e trazíamos emprestadas as novidades aos quadradinhos da semana.

Desde os fascículos do Tintin, com publicações como o Blueberry, o Michel Vaillant, o Olivier Rameau, o Cubitus,  Blake & Mortimer, etc, passando pelos Almanaques Disney, o Falcão com o Major Alvega e o Ene 3 e, naquela altura particular, os livros do Tex Willer.

Estranhamente, nunca fui fã de cowboiadas e dispensava westerns, porque partia do pressuposto errado de que quem viu um, viu todos, mas a história da Serpente Emplumada, passada na Mesoamérica com muito sobrenatural e o culto Quetzalcoatl à mistura, era por demais emocionante para pôr de parte por um capricho de julgamento.

Era uma festa à sexta-feira à tarde poder sentar-me nas almofadas encostada à cama, com um enorme prato de torradas com manteiga e geleia de marmelo caseira, garrafa do leite à mão e uns poucos de livrinhos para também devorar e actualizar a narrativa gráfica, que me iria deixar numa emocionante expectativa durante mais sete dias.

Ler sempre foi uma emoção. 

Ler BD ainda é uma emoção redobrada.

Acabámos por coleccionar todos os livros com as aventuras do Tex Willer, que muito mais tarde foram oferecidos a uma instituição quando a minha mãe mudou de casa. De algum modo, aprendi com a sua leitura a ver westerns sem ter em conta apenas o preconceito do enjoativo índio-bandido/cowboy-herói, mas sobretudo a arte da sua concepção.

Há pouco tempo um amigo emprestou-me o Signo da Serpente.

Eu ainda sei toda a história de trás para a frente, mas, como tantas outras histórias em tantos outros livros lidos e relidos, foi uma indescritível emoção voltar a ler.

Mafalda e o fim do jornalismo

Pedro Correia, 08.10.20

recurso.gif

 

O recente desaparecimento de Quino, o criador da inesquecível Mafalda, constitui um marco simbólico da morte do jornalismo. Porque as suas histórias centradas na menina preocupada com os males do mundo se inseriam numa longa linhagem com diversos outros expoentes, tanto por via ascendente (basta lembrar o Charlie Brown, de Charles Schulz) como descendente (Calvin & Hobbes, de Bill Waterson, por exemplo), todas criadas para publicação na imprensa. E a ela unidas por um cordão umbilical.

Durante décadas, os leitores de jornais conviveram com a banda desenhada: não havia jornais de referência sem histórias aos quadradinhos - sérias ou cómicas, com argumentos longos ou curtos, a cores ou a preto e branco. Tal como não havia jornais sem caricaturas, com frequência inseridas em espaços nobres - até nas primeiras páginas. É uma tradição que remonta ao apogeu da imprensa como veículo de informação e conhecimento, na segunda metade do século XIX, e prolongada por todo o século XX.

 

A voragem trituradora da "globalização" foi pondo fim a tudo isto. O argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón (imortalizado com o nome artístico Quino, diminutivo que era aumentativo) não conseguiria hoje encontrar espaço para publicar as suas vinhetas. Muito menos de exportá-las para o mundo inteiro, como sucedeu com a Mafalda.

Basta ver o que acontece cá: a banda desenhada desapareceu dos jornais. As caricaturas que outrora contribuíram para a fama de Rafael Bordalo Pinheiro, Almada Negreiros e Stuart de Carvalhais foram praticamente abolidas da imprensa cordata, reverente e "normalizada", cada vez mais dependente da agenda (e da verba) oficial. Os cartunistas que restam policiam-se a todo o momento, com receio de serem apontados a dedo pelas brigadas da correcção política ou, no limite, conhecerem o dramático destino dos seus colegas do Charlie Hebdo.

 

Numa das suas tiras mais famosas, Quino desenhou a sua personagem favorita encontrando na praia uma menina baixinha e magrinha, de tamanho irrelevante, e perguntou-lhe: «És tão pequenina! Como te chamas?» E ouviu esta resposta: «Liberdade.»

Foi há meio século, mas poderia ter sido hoje. Quino experimentou o peso da ditadura no país natal, como aconteceu com tantos criadores noutras paragens. Hoje há mais democracia no planeta, sem dúvida, mas nada garante que exista mais liberdade. E o problema central é mesmo este.

Poderíamos questionar-nos o que diria a Mafalda de tudo isto. Existirá uma nova Mafalda escondida por aí?

O Banquete Final

jpt, 25.03.20

7le-combat-des-chefs.jpg

Este maldito vírus quebra-nos a vida, angustia-nos presente e até futuro. A morte de Uderzo, ainda que tão natural aos seus 92 anos, e felizmente ocorrida na placidez do sono, sem qualquer ligação a esta pandemia, encontra-nos confinados. Trazendo isto de nem podermos fazer o requerido banquete final, exigível ao final deste episódio, o uderziano. Majestoso.

Que o seu legado, e não só Astérix, nos acompanhe agora, até avivado na memória pela sua morte. No seu humor e beleza servindo mesmo de estratégia da necessária mitigação. Banqueteemo-nos com os livros. E com as memórias das anteriores leituras.

Deixo aqui ligação a um bom e muito informativo texto sobre a obra do autor: Uderzo (na Comiclopédia). Bem recomendável.

 

Blogue da semana.

Luís Menezes Leitão, 19.01.20

Chamou-se em tempos a nona arte, mas hoje anda muito esquecida. Recordo, no entanto, com saudade o tempo em que tínhamos inúmeras revistas de banda desenhada à nossa disposição. Comprava sempre com imenso gosto o Mundo de Aventuras, o Tintin (que se intitulava a revista dos jovens dos 7 aos 77 anos), o Jacaré e o Spirou, que faziam questão de nos fornecer semanalmente as melhores histórias de banda desenhada que apareciam. Infelizmente, com o passar dos anos, todas essas magníficas revistas foram desaparecendo, mas hoje há um blogue que faz questão de nos recordar o melhor que se produziu em banda desenhada. O BDBD é por isso o blogue da semana.

Parabéns meu querido Tintin, nos teus 90 anos

jpt, 10.01.19

tintin.jpg

Hoje o Tintin faz 90 anos, que bela idade. E por ele parece que o tempo não passa. Continua lindo, enérgico, cavalheiro pois cavaleiro dos pobres e desprotegidos. E tão actual - acabei de reler (pela quantésima? vez) "A Orelha Quebrada", um espanto do tão contemporâneo que é, sendo também jovial, arte de associação que se perdeu.

pubXX.jpg

E foi aqui, no Petit Vingtième (jornal católico. Ou seja: belga) de 10 de Janeiro de 1929 que o Tintin se apresentou. Na sua viagem ao país soviético. "Anti-comunista" disseram-no, como se isso defeito e não extrema qualidade. E por isso alguns, foucauldianos tapiocas-alcazares, ainda o invectivam, apontam-lhe pústulas e rugas, inventando-lhe outras ditas malevolências. Comemoro-o, sempre: hoje relendo, com a alegria de sempre, "As Sete Bolas de Cristal" e "O Templo do Sol". Mergulhando, com felicidade, naquela espantosa actualidade.

Deixo aqui Hergé, o avatar de Tintin, a contar como apareceram:

Viva o Tintin. 

Viva Hergé.

E viva eu ...

haddock-tintin.jpg

E para quem tiver meia hora para dedicar à história aqui deixo

Reencontro no Grande Prémio

Sérgio de Almeida Correia, 16.11.18

Vaillant 20181115_181530.jpg

Que o livro iria ser lançado por estes dias já o sabia há muito tempo. O que não me passava pela cabeça, num momento em que se desenvolvem diligências no sentido de elevar o Circuito da Guia a património protegido e reconhecido internacionalmente; depois do Rendez-Vous à Macao, no início da década de 80 do século passado, e em semana de Grande Prémio, já com os motores a rugirem no asfalto, era vir a reencontrar o eternamente jovem Michel Vaillant, num final de tarde, no hospitaleiro Grand Lapa, antigo Mandarim Oriental, onde noutros anos tantas aventuras reais pude viver. Mas foi o que efectivamente aconteceu.

Com Corto Maltese, Michel foi meu companheiro de muitas tardes e de sonhos de juventude, quando acreditava que lá em casa, um dia, me deixariam ingressar num dos cursos de pilotagem da Elf e seguir uma vida nas pistas, o que só mesmo na fértil imaginação de um jovem seria possível num pós-25 de Abril dominado pelo PREC e em que os meios e as oportunidades de competir e de fazer uma carreira no desporto autómovel eram escassos para quase todos.

Volvidos todos estes anos, em que tirando efémeras experiências nos karts me tenho limitado a acompanhar, com gosto, diga-se de passagem, campeonatos e amigos infinitamente mais dotados por algumas pistas desse mundo, tive o privilégio de assistir à apresentação do último livro (77.º) da saga Vaillant, agora continuada por Philipe Graton, Lapière e Benjamin Béneteau (ilustrador), tendo junto a mim amigos e heróis de carne e osso como o André Couto, Tiago Monteiro ou o sempre bem disposto Tom Coronel.

Para quem ainda não leu, posso dizer que é mais uma aventura que mistura a realidade com a ficção, lugares de todos os dias e uma pista de que também eu gosto muito, exaltando os valores saudáveis do desporto, da competição, da justiça e do fair play numa história e com desenhos que honram a herança de Jean Graton.

Sacha Fenestraz, também ele a competir na edição deste ano, tal como André Couto, até hoje o único piloto local a vencer o Grande Prémio de F3, integra o lote dos personagens que conferem autenticidade à história.

Confesso que por momentos voltei a ser um menino. E foi com o mesmo prazer de há mais de 40 anos que recebi o livro autografado das mãos dos autores e dos pilotos e que, depois, no conforto de casa com gozo li.

Espero que também o possam ler e retirar dele o mesmo prazer que por instantes senti. E se por vergonha não o quiserem comprar para vós, sempre podem aproveitar o pretexto do Natal que aí vem para o oferecerem a filhos, sobrinhos e afilhados, estimulando-lhes o gosto pela leitura, também pelo sonhos que vivem paredes-meias com a realidade, para que depois vós próprios, assim como quem não quer a coisa, o possam ler às escondidas, sentindo as cores, os cheiros e a textura das suas páginas.

Vaillant 20181115_173232.jpg

46381396_10212968134701692_6847929091199336448_o.j

Pensamento da semana

jpt, 11.11.18

tardi.jpg

 

Como não desprezar toda esta pompa comemorativa se lendo Jacques Tardi, décadas de magistral vasculha da história sem fim da I Guerra Mundial, no mostrar da desgraça de cada poilu, milhões de Varlots, subjugados ao miserando militarismo alimentado do mais torpe e ávido dos nacionalismos, na mais ignóbil das guerras, a do estertor suicidário dos velhos impérios?

E como não resmungar diante do nosso empertigamento falsário, esquecendo aquela república logo-trôpega vendo a guerra como única forma de se sustentar, gulosa da presença no festim dos despojos? Escamoteando um país agressor, na volúpia de mais um pedaço de terra longínqua, subtraída aos que também já dela se haviam apropriado? Glorificando a pobre tropa da Europa, ali indesejada pois inútil no desequipada e impreparada que era, mera má carne para canhão? E falsificando a guerra de África, dizendo-a ainda, com impudicícia neste XXI, "campanhas de pacificação" indígena? Escamoteando a incompetência das expedições, nas quais a pobre soldadesca arregimentada, ali obrigada, tão vítima foi da inexistência de comando, conhecimento de terreno ou material adequado, este aldrabado pelas corrupções da administração militar? E de ter sido aquilo ainda uma tropa de antigo regime, de oficiais privilegiados, com rações e equipamentos superiores, deixando os meros praças morrer à míngua diante da inclemência dos elementos? E o silêncio sobre o descalabro demográfico que foi a hecatombe dos arrebanhados carregadores africanos? Como aceitar tantos meneios contextualizadores quando se refere a "guerra colonial" de 1961-74 e tantos encómios embrutecidos a esta mera guerra colonial de 1915-1918? Como compreender que surjam políticos, ignorantes ou malévolos, apenas netos herdeiros daquele malvado republicanismo, chamar a tudo isto "patriotismo"? 

E diante deste cerimonial patético, alarido de sociedade disfucional, como esquecer Pemba, a antiga Porto Amélia, lá no Cabo Delgado, onde Von Lettow-Vorbeck se cumulou de glória face aos britânicos, diante da total irrelevância inepta do corpo expedicionário português, devastado pelas doenças, palmilhando a selva incapaz até de combater? Como esquecer, ainda para mais vendo as encenações lisboetas d'agora, aquele cemitério militar? 

 

pemba 1.jpeg

pemba 2.jpeg

Ali a irritar-me até envergonhado, no verdadeiro patriotismo, não este de pacotilha, vigente no "Terreiro do Paço", de Belém a São Bento ... A descer destes talhões militares até à baixa da cidade, ao comerciante português residente, "arranja lá uns homens, deixo-te aqui 100 dólares, eles que vão lá capinar aquilo, que é uma vergonha", ainda para mais separado por um mero murete, tão mero que se cruza no alçar da perna, do talhão da Commonwealth, esse arranjado todos os meses, impecável, túmulos à antiga, que os britânicos andaram a recolher os corpos do mato e ali os sepultaram: uma ala de europeus, uma outra de indianos, uma outra de africanos. Todos com uma lápide, um nome, posto, regimento de pertença e datas. Sim, era um império, diferenciavam raças e religiões, hierarquizavam-nas. Mas, pelo menos na morte, cada um era um. Com nome, túmulo e respeito. Até hoje. E os nossos? Anónimos e desgraçados na vida, anónimos e desengraçados na morte.

E depois em Maputo ao adido de defesa, "ó comandante, vá lá ver aquilo, sff, que é uma vergonha". E ele, mar-e-guerra como deve ser, a tomar-se de brios, a visitar, a informar. E, meses depois, "ó doutor, Lisboa diz que não pode ser, em trabalho de arquivo para identificar mortos e arranjo de túmulos seriam para aí mil contos (5 mil euros agora) e não há dinheiro". Mil contos?, "mas isso não são 2 ou 3 bilhetes de executiva para essas missões que cá vêm fazer nada?" avanço eu, no sarcasmo desiludido de quem vai a sul do Equador (ou será do Tejo?). E o comandante, sábio, "ó Zé Teixeira, o que é que quer que eu lhes faça?" e a gente a saber que nada se pode, doutor de gabinete posto é doutor. E uma década depois, numa visita do PR Cavaco Silva, eu a aprumar-me comendador e a avançar para o homem da casa militar, e a explicar ao "nosso" tenente-coronel disto tudo e ele, simpático, que "sim, já estamos informados", até porque este nem é caso único. Pois não, sei bem.

Patriotismo, dizem estes, agora, em festividades encenadas. E lembro, a la Tardi, aquela pobre geração, camponeses arrancados às courelas, operários e serviçais conscritos em nome de uma madrasta, a sorte que lhes coube, "putain". Para serem húmus de capim. E da vaidade de gerações.

Pensamento da semana? Estes d'agora cantam mal e não me encantam.

  

Adenda: escrevi este postal sem saber do conteúdo do discurso de ontem do PR, para o qual um comentário logo me chama a atenção (excerto aqui. Ainda não está colocado no sítio presidencial mas decerto que em breve o estará). Não vale a pena alimentar grandes debates sobre isso, pois as coisas são simples: o que o PR disse é absolutamente crível sobre a II Guerra Mundial. Recaindo sobre a I Guerra Mundial é pura ignorância. Ou, pior, é falsificar a história. 

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

 

Outras galáxias muito distantes (7)

João Campos, 18.01.18

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Esta é a última das sugestões de galáxias a descobrir na literatura e na banda desenhada. Pelo menos, por agora.

 

Ody-C Vol01 Cover.jpg

 Ody-C

Uma odisseia no feminino

 

Esta curta série de sugestões de leitura de space opera começou na banda desenhada, pelo que me parece muito adequado concluí-la também com banda desenhada. E com uma não menos sofisticada: se Saga inova pela forma como pega nos elementos clássicos do género e os recombina numa narrativa moderna e arrojada, já Ody-C recupera uma das mais clássicas histórias da cultura ocidental - a Odisseia de Homero -, dá-lhe uma nova perspectiva pela alteração do género de praticamente todas as personagens, e transporta-a para um futuro espacial e psicadélico narrado por Matt Fraction e ilustrado de forma assombrosa por Christian Ward.

 

Seria talvez simples reduzir Ody-C a uma versão gender-bent da Odysseia - aliás, seria porventura simples para os autores limitarem-se a essa ideia original. É certo que são exploradas algumas das passagens mais icónicas da Odisseia, como o encontro com Polifemo ou a visita a Éolo, mas Fraction e Ward levam mais longe as atribulações de Ulisses, Menelau e Agamemnon, aqui Odyssia, Ene e Gamem, uma vez terminada a guerra centenária contra Troiia-VII. Se alguns mitos são simplesmente adaptados, outros são transformados com vista à criação de um universo ficcional próprio - e as viagens de regresso das três rainhas-guerreiras, perante a oposição de um panteão liderado por Zeus que vê nas proezas marciais das três combatente e no saque de Troiia-VII um desafio ao seu poder, combinam de forma tão elegante como surpreendente as inspirações clássicas (homéricas e não só) com alguns elementos tradicionais da space opera numa narrativa moderna. 

 

Ody-c vol 01 page.png

 

Fraction opta por narrar esta odisseia de forma pouco convencional, aludindo ao poema épico original com um texto breve e minimalista tanto na descrição como no diálogo - é uma opção porventura estranha para alguns leitores, mas que se revela muito eficaz no modo como se funde à ilustração tão inventiva como psicadélica de Ward, cheia de cores e de formas improváveis. Folhear as páginas dos fascículos ou dos paperbacks é uma experiência singular, que não remete para a tradição dos comics norte-americanos mas antes para algumas bandas desenhadas europeias; e se à primeira vista é impossível não reparar na arte de Christian Ward, uma leitura mais atenta revela a forma hábil com que pega nas ideias que as palavras de Matt Fraction evocam para recriar com absoluta originalidade personagens que todos já vimos vezes sem conta em inúmeras narrações dos mitos da Grécia Antiga. 

 

Pelo tom e pelo estilo muito próprios, é possível que Ody-C não seja uma banda desenhada para todos os leitores - as críticas tendem a polarizar-se entre quem não consegue entrar na história pela forma como esta é narrada e entre quem se maravilha a cada página pela forma imaginativa como uma história tão contada pode ser reinventada com tanta originalidade e com tanto arrojo conceptual e artístico. Pesoalmente, coloco-me no segundo grupo: das bandas desenhadas que comecei a ler em 2017, Ody-C estará sem dúvida entre as melhores. Merece uma oportunidade, e deixa uma garantia: goste-se ou não, não se lhe ficará indiferente. 

Do princípio ao fim (3)

João Campos, 25.09.16

last calvin-hobbes.jpg

 

Permitam-me a batota de começar pelo fim, e aos quadradinhos.

 

É bem possível que o fim definitivo de Calvin & Hobbes, a tira cómica que Bill Watterson escreveu e ilustrou entre 1985 (o ano em que nasci) e 1995, marque o fim de uma época. De um tempo em que a banda desenhada ainda ocupava um lugar privilegiado nos jornais, e de um tempo em que estes ainda eram relevantes enquanto veículo de informação privilegiada. É provável que o próprio Watterson tenha adivinhado a segunda tendência - Calvin & Hobbes, afinal, foram uma tira de jornal especialmente sintonizada com o seu tempo, repleta de uma crítica cuja subtileza em nada lhe retirava mordacidade, e que, volvidas duas décadas, se revela tão persciente como pertinente. Basta recordarmos a importância das suas observações sobre a televisão e a cultura televisiva, mais actuais do que nunca tanto para o pequeno ecrã como para os múltiplos pequenos ecrãs que Watterson não adivinhou, mas que elevaram ainda mais a cultura do efémero contra a qual o pai de Calvin já se insurgia. Quanto à primeira, enfim, ficou famosa a recusa absoluta de compromisso na sua arte, algo que o levou ao isolamento após 1995 e que faz com que ainda hoje, quando a comercialização reina de forma absoluta, não exista merchandising oficial de Calvin & Hobbes. Só as tiras que Watterson escreveu e ilustrou, e que continuam a ser publicadas em inúmeros jornais em todo o mundo, e reeditadas em álbuns intemporais. Mas mais importante do que isso: no que à tira de jornal diz respeito, talvez Watterson tenha também elevado o formato ao seu expoente máximo. 

 

Convenhamos: não há nas tiras de jornal nada que se compare a Calvin & Hobbes. Não, nem Schulz - desculpem. Sem querer tirar mérito aos PeanutsCalvin & Hobbes não chega sequer a ser uma daquelas obras que eleva a fasquia - Watterson simplesmente jogava noutro campeonato, como nos comics norte-americanos de super-heróis jogaram Alan Moore e Neil Gaiman quando escreveram WatchmenThe Sandman, respectivamente. Se o seu olhar sobre a sociedade era especialmente arguto, já a sua perspectiva sobre a imaginação é inigualável: ninguém capturou como Watterson o absoluto prodígio da imaginação infantil. E fê-lo através de algo tão simples como a interação daquele miúdo vivaço de seis anos e do seu amigo imaginário, que para todas as outras personagens era apenas um tigre de peluche. Nos territórios férteis da imaginação de de Calvin jogámos calvinbola, demos vida a bonecos de neve (que se tornaram monstruosos), deixámos mensagens para extra-terrestres gravadas na neve, fizemos todo o tipo de travessuras em casa, na vizinhança ou na escola, discutimos filosofia num trenó. Fomos a Marte num reboque de bicicleta, viajámos no tempo numa caixa de cartão, vivemos aventuras noir com Tracer Bullet, tornámo-nos super-heróis com o Homem Estupendo, fomos aos confins do espaço com o Astronauta Spiff. Let's go exploring! foram as últimas palavras que lemos de Calvin e de Hobbes, como que um convite para que cada um de nós continuasse a descobrir aquelas aventuras - tanto as que Watterson nos deixou e que tão intransigentemente recusou continuar (um acto que só pode merecer aplauso), como todas aquelas que nunca escreveu, e que podemos imaginar livremente. Como só Calvin e Hobbes faziam. 

Calvin & Hobbes e Garfield de regresso à imprensa portuguesa

João Campos, 21.01.14

É com alguma surpresa que descubro nas páginas do Correio da Manhã não uma mas duas bandas desenhadas diárias. E, pasme-se, bandas desenhadas clássicas: Garfield, de Jim Davis, e a incontornável Calvin & Hobbes, de Bill Waterson, provavelmente o melhor cartoon jamais concebido para o formato. Sim: já foram publicadas e republicadas milhares de vezes; e, no caso do gato cor-de-laranja, já passou há muito para a televisão, para o cinema e para merchandising diverso (Watterson, por seu lado, sempre rejeitou qualquer exploração comercial de Calvin & Hobbes). Nem por isso, porém, perderam qualidade ou pertinência.

 

Honra seja feita ao Correio da Manhã, tantas vezes criticado pela sua linha editorial popular, por manter viva a tradição da banda desenhada de qualidade na imprensa diária - finda a publicação de anos da célebre tira de Rick Kirkman e Jeryr Scott, Baby Blues, o diário da Cofina opta por não por um mas por dois títulos incontornáveis na história do formato. Diga-se de passagem que está bem acompanhado nessa tradição: o Diário de Notícias continua a publicar as excelentes tiras do nosso Bandeira, e tanto o Público (que durante anos publicou a tira de Bill Watterson) como A Bola mantêm tiras diárias do bem-humorado Luís Afonso (que também publica semanalmente na Sábado). Os outros dois desportivos, RecordO Jogo, também mantêm as suas bandas desenhadas.