Os painéis entre os seus
João Pedro Pimenta, 22.10.21
A obsessão da vida de Almada Negreiros realizada: a obra maior da pintura portuguesa na obra maior da arquitectura nacional, no seu espaço mais nobre.
Em 1918, de visita ao Museu de Arte Antiga, Almada, Santa Rita-Pintor e Amadeo Souza Cardoso fizeram um pacto (que implicou rapar o cabelo e as sobrancelhas, como disciplina e provocação digna do Orpheu) de que estudariam os painéis conhecidos como de S. Vicente até descobrirem todos os seus segredos. Santa-Rita e Amadeo morreriam no espaço de um ano e Almada ficou sozinho com uma missão perpétua. Tinha ficado fascinado pelos painéis e por um Ecce Homo exposto ao seu lado. Sendo um artista de vanguarda, afirmava que "a arte moderna sabe que o novo está perpetuamente no antigo".
Os painéis, atribuidos a Nuno Gonçalves (tal como o Ecce Homo, erradamente, como se comprovou mais tarde) como representando S. Vicente, padroeiro de Lisboa, já tinham dado origem a discussões e teses várias, que duram até hoje, e a dada altura tornaram-se motivo de discussão artística, histórica e até política e ideológica. Havia quem defendesse que quem estava representado era o Infante Santo, D. Fernando, levando a polémica tão ao extremo que provocou o suicídio a um investigador que tinha sido enganado, Henrique Loureiro, e a uma cena de pancadaria no Chiado entre Almada e José de Bragança pela autoria da descoberta do "mistério", e que era do próprio Almada. Tempos em que polémicas estéticas levavam a vias de facto.
Descobrindo um pormenor nos ladrilhos do quadro e partindo de raciocínios puramente geométricos, Almada considerou que os painéis fariam parte de um conjunto maior, de 15 peças, projectadas para figurar na parede Norte da Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, ao lado dos túmulos de D. João I, Dona Filipa de Lencastre, D. Afonso V, D. João II e do Infante D. Henrique, entre outros, sendo que alguns estão representados na obra. A tese tinha lógica, mas também os seus "buracos": há poucos anos determinou-se que o Ecce Homo, figura central do conjunto, era do séc. XVI, e por isso nunca poderia ser concebido antes para figurar ali. Ainda assim, há outros elementos que dão razão a Almada, mesmo que ele duvidasse que seja S. Vicente a figura central dos painéis. As discussões e as interrogações sobre essa pintura fascinante hão de continuar sempre. Se há dúvidas sobre a verdade, escolha-se a lenda.
O que é certo é que a obsessão de uma vida de Almada Negreiros está agora exposta na Capela do Fundador, na Batalha, até ao fim do ano, a quem a quiser ver.