No silêncio, entre cadáveres
Hoje, mais que nunca, estas palavras devem merecer-nos profunda meditação.
* Tradução (excelente) de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes para a editora Contexto (2001)
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A motivação, o pretexto, se quiserem, é cada vez menos compreensível. E pela forma como se exprime, saindo violento das entranhas guturais das bestas, resume-se a uma frase banalizada. A grandeza Dele é ofuscada pela sua miséria moral.
O que aconteceu em Nice e regularmente se repete numa espiral incontrolável, muito mais em França, também na Bélgica e noutros locais outrora marcados pela aceitação do vizinho, de quipá ou com turbante, e pela outorga de um espaço de liberdade e responsabilidade a cada um, numa fraternidade serena e acolhedora mesmo quando as marcas da vida tornaram os dias mais longos e as noites difíceis e sofridas, tornou-se uma distante recordação.
Agora já não se trata de recebermos o outro com fraternidade e igualdade. O outro vai obrigar-nos a repensar a nossa relação, a deixar tudo o que se construiu para trás. Porque na violência insana nada se constrói, e nem mesmo o que foi erguido com o sacrifício de todos se mantém de pé.
Quando uma igreja, local de entrega, reflexão e paz se torna em local de emboscada para os indefesos, quando a loucura faz dela um talho onde o cutelo processa a degola dos sacrificados inocentes, e as bestas se comprazem vendo o sangue fresco escorrer pela pedra fria e silenciosa, não há diálogo possível.
Deixou de ser um problema de diálogo intercultural ou inter-religioso para se tornar num problema de sobrevivência. De todas as civilizações. Da humanidade.
Sim, porque se a violência, a barbárie, o terror, tudo isso a que estamos a assistir e cujo nome já não faz a diferença, é afinal, como escreveu Camus, "l'hommage que de haineux solitaires finissent par rendre à la fraternité des hommes", então não se poderá continuar a assistir à homenagem passivamente, deixando que a indiferença, o relativismo moral e ético e a banalização do mal, de que falava Hannah Arendt, façam apodrecer o que ainda resta de saudável para se voltar a construir.
É preciso matar o caruncho que se apoderou das estruturas e subiu pelas colunas dos templos. Há que domar a besta, trazê-la de novo ao caminho da razão. Sem vacilar.
A esperança é um pranto. A tolerância está de luto.