A Caixa dos suspiros
Ando há dias a fazer numa agência da Caixa Geral de Depósitos uma data de transferências porque de casa só é possível fazer uma por dia e muitas excediam em valor o limite diário. Trata-se da liquidação de uma herança e o número de herdeiros poderia repovoar uma dessas micro-aldeias abandonadas perdidas nos montes.
A agência é moderna, com a mão do design contemporâneo: muitas cores, muitas arestas vivas, muita luz, muita piroseira e completa ausência de privacidade (quem está numa mesa ouve a conversa na vizinha). Graças a Deus, os materiais são reles e portanto daqui a dez ou vinte anos é preciso renovar tudo.
Há atendimento prioritário para velhos, grávidas e deficientes, mas não há cadeiras. De modo que os velhos, as grávidas e os deficientes esperam de pé no caso de as mesas estarem ocupadas. E até mesmo os sãos de corpo, como eu (também de espírito, mas isso não interessa nada) correm o riso de ficar com varizes ou morrerem de tédio, se quem está a ser atendido forem uns casais que têm coisas intermináveis para tratar.
Enfim, acabou e ontem tentei fazer de casa, na aplicação que um funcionário, a meu pedido, tinha instalado no telemóvel, uma modesta transferência, já não para liquidar heranças mas para tratar da minha vidinha.
Grande galo: em certo momento foram-me pedidos uns códigos que estariam num misterioso cartão. Cartões não tenho, nem sequer de visita ou do bingo, de modo que hoje lá regressei à agência, a dois passos de casa, para dilucidar a matéria. Sim senhor, era preciso um cartão e, preenchidas umas larachas no computador, foi-me entregue um envelope com o cartãozinho, que vai fazer chumaço na carteira junto com os outros.
Moderadamente orgulhoso com o meu acesso à modernidade, regressei a casa e à transferência, iniciando com diligência a operação. É preciso digitar o IBAN do destinatário, que tem quase tantos números como o pi, e, preenchido o montante, uma pessoa ingénua manda prosseguir. Mas não, é preciso voltar atrás e pôr um nome, a fim de o sistema, cumprida a formalidade, escrever o nome completo, decerto para humilhar o cliente no caso de este não saber que a Maria Morais é afinal Maria da Encarnação dos Prazeres e Morais.
Tudo certo? Não, é necessário pôr os números do cartão por uma certa ordem que vai sendo indicada (indicada é como quem diz, não fosse o meu secretariado e jamais adivinharia), após o que o cristão manda prosseguir, decerto para se despedir.
Mas não. Falta ainda um código que vem pelo telemóvel, razão pela qual o indivíduo vai às mensagens para lá encontrar o abençoado, regressando açodado à aplicação para constatar que ela foi à vida.
Reguila como me prezo de ser, resolvi abrir no computador, em páginas diferentes, o mesmo acesso, mas o sistema não se deixou enganar, informando-me que já estava aberto. Devia ter adivinhado que é como as mulheres: não podem ser virgens duas vezes. Além disso, descobri com grande agudeza que a aplicação é uma coisa e o acesso directo via PC outra, a primeira permite fazer tudo e a segunda é a fingir.
Escarmentado, pedi a assistência do meu secretariado, que me foi pilotando para navegar nos mares da burrice informática.
Que bem que foi, cheguei rapidinho à fase final, a da mensagem pelo telemóvel. Fui vê-la prestes e, regressando triunfante, a aplicação já se tinha ausentado para parte incerta.
De modo que amanhã lá estou na agência. Os funcionários, quando me veem, já sentem uma súbita necessidade de se concentrarem no que estão a fazer. Sento-me no chão.




