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Delito de Opinião

Ler (31)

Os melhores livros do meu ano - III

Pedro Correia, 03.02.24

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Há os livros pequenos, os livros grandes e os livros gigantes. Os primeiros, por motivos que ignoro, vão-se tornando cada vez mais raros. Lamento, pois alguns dos mais deslumbrantes livros que li na adolescência eram de formato breve, prodígios de concisão, ainda mais admiráveis por não esbanjarem uma palavra. Obras que fixei para sempre, que transporto comigo na memória grata de leitor atento: A Metamorfose, de Kafka; A Peste, de Camus; O Velho e o Mar, de Hemingway; O Triunfo dos Porcos, de Orwell. Também de autores portugueses. Recordo, por exemplo, O Barão (Branquinho da Fonseca), O Anjo Ancorado (José Cardoso Pires), Casa na Duna (Carlos de Oliveira), Angústia para o Jantar (Luís de Sttau Monteiro), até O Que Diz Molero (Dinis Machado). Sem esquecer O Mandarim (Eça de Queiroz).

A partir de certa altura, quase todos os escritores abandonaram o formato curto e dedicaram-se em exclusivo à escrita mastodôntica, julgando-se émulos de Victor Hugo (Os Miseráveis), Herman Melville (Moby Dick) ou Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido). Tenho junto a mim três desses romances de vasta dimensão, que exigem mergulho prolongado, disponibilidade total: Uma Casa para Mr. Biswas, de V. S. Naipaul (759 páginas), Rua Principal, de Sinclair Lewis (459 páginas) e Auto de Fé, de Elias Canetti (525 páginas).

Entre os calhamaços à minha espera, além dos que já mencionei aqui, incluem-se Breve História da Filosofia Moderna, de Roger Scruton (Guerra & Paz, 343 pp), Neoconservadorismo, de Irving Kristol (Quetzal, 482 pp) e Lenine, o Ditador, de Victor Sebestyen (Objectiva, 662 pp). Quase 1500 páginas, só nestes três.

Há-de chegar o tempo deles  Agora fica o registo dos dez melhores romances que li em 2023 - todos de autores estrangeiros. Alguns estavam há muito na minha lista de leituras prioritárias, foram sendo ultrapassados por motivos que já não recordo.

Ler é uma actividade sinuosa, com os seus rituais indecifráveis e sujeita a contingências de vária ordem. Pegamos com entusiasmo num livro que acaba de nos chegar às mãos enquanto vamos ignorando outros, que nos acompanham em resignado silêncio durante anos. Como se tivesse de ser mesmo assim, sem que saibamos explicar porquê.

 

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A ESTRADA, de Corman McCarthy (2006). Impressionante novela que nos transporta a um mundo apocalíptico, na sequência de uma devastação nuclear. A luta pela sobrevivência domina o quotidiano dos raros sobreviventes e toda a crença num futuro promissor foi reduzida a cinzas. O estilo de escrita adapta-se ao tema em comunhão perfeita: é uma das ficções literárias mais marcantes deste século XXI. Edição Relógio d' Água.

 

ANIQUILAÇÃO, de Michel Houellebecq (2022). Até que ponto o mundo que conhecíamos na próspera fortaleza europeia já morreu, restando-nos apenas a sombra de uma ilusão que ainda nos sugere estar vivo? Interrogação do polémico autor francês neste perturbante romance que nos fala de política, religião, família, corrupção moral, decrepitude e morte. Sempre com mais perguntas do que respostas. Edição Alfaguara.

 

GUERRA E PAZ, de Lev Tolstoi (1869). O clássico dos clássicos. Tolstoi rivaliza com historiadores ao descrever com espantosa minúcia o impacto das invasões napoleónicas na Rússia do início do século XIX. Alternando vívidos quadros bélicos com a ansiedade palaciana de uma aristocracia ameaçada pelo alucinante carisma de Bonaparte. E assim, várias décadas depois dos factos, revolucionou também a literatura. Edição Inquérito.

 

IMPÉRIO, de Gore Vidal (1987). Decalque anacrónico do romance oitocentista que nos envolve na atmosfera política e jornalística dos EUA no final do século XIX e da primeira década do século XX, durante os mandatos dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, com a sombra gigantesca de Lincoln a pairar com irresistível nostalgia. Um dos pontos culminantes da ficção norte-americana das últimas décadas. Edição Presença.

 

LUZ EM AGOSTO, de William Faulkner (1932). Nobel da Literatura em 1949, Faulkner legou-nos uma porção de admiráveis romances sobre o sul profundo dos EUA, terra seca e dilacerada por confliltos raciais, onde o fanatismo religioso era corrente, o rasto da civilização parecia longínquo e preconceitos de toda a espécie impunham uma lei não escrita, conduzindo com frequência à morte. Obra-prima absoluta. Edição Dom Quixote.

 

O HOMEM DO CASTELO ALTO, de Philip K. Dick (1962). Distopia regressiva, opus magnum de um dos principais autores da chamada literatura de antecipação. Aqui, por uma vez, reescrevendo o passado. Com base neste mote: e se as potências do Eixo tivessem vencido a II Guerra Mundial, com a Alemanha e o Japão a dividirem os despojos do planeta? Ainda dá muito que pensar, a tantos anos de distância. Edição Relógio d' Água.

 

O OLHAR MAIS AZUL, de Toni Morrison (1970). Romance de estreia da escritora que viria a ser galardoada em 1993 com o Prémio Nobel. Começou muito bem: é um poderoso libelo anti-racista. Sem chavões, sem usar a literatura para fazer contrabando de cartilhas políticas. A propósito de duas meninas negras, uma das quais sonha ter olhos azuis para ficar parecida com as estrelas de cinema há quase cem anos, nos EUA. Edição Presença.

 

PAISAGEM DE OUTONO, de Leonardo Padura (1998). Último título do "Quarteto de Havana": romances que funcionam em separado mas devem ser lidos em sequência. Literatura policial, sim, mas não só. A pretexto de um crime, investigado pelo detective (não privado) Mario Conde, Padura faz a autópsia da sociedade cubana, envolta numa atmosfera cinzenta e opressiva: a esperança rumou a parte incerta. Edição Porto Editora.

 

PARALELO 42, de John dos Passos (1930). Hemingway, que não era de elogio fácil, não hesitou em classificá-lo assim: «Sem dúvida, o maior romance escrito nos Estados Unidos nos últimos cem anos.» Merece o qualificativo: é um original mosaico da sociedade norte-americana nas duas décadas iniciais do século XX, centrado em cinco personagens, com as suas luzes e sombras. Em trepidante toada modernista. Edição Presença.

 

PROFESSOR UNRAT, de Heinrich Mann (1905). Originalíssimo romance, ousado para a época, em torno da degradação moral de um professor, eminente burguês de uma cidade alemã obcecado por uma cantora de cabaré. Personagens credíveis, diálogos mordazes, sátira social muito bem conseguida ao quotidiano do Império Alemão, já em fase crepuscular. Serviu de inspiração ao célebre filme O Anjo Azul (1930). Edição E-primatur.

Ler (30)

Os melhores livros do meu ano - II

Pedro Correia, 26.01.24

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No ano que passou, raros terão sido os dias em que não li algum livro durante pelo menos uns tantos minutos. Em qualquer lado, em qualquer ocasião.

Ao contrário do que tanta gente afirma, confessando-se incapaz de ler na cama, ou na praia, ou em transportes, ou ao sol, ou à sombra, eu não sou nada esquisito. Vou lendo onde calha, aproveitando o melhor que posso.

Haverá melhor maneira de desfrutar momentos livres do que mergulharmos nesses mundos alternativos que a escrita literária nos proporciona?

 

Dos livros que fui lendo, privilegiei a ficção. Para contrastar com as numerosas leituras de âmbito profissional que sou forçado a fazer.

Leio sobretudo à noite. Vinte minutos, meia hora. Se o livro for interessante, o relógio deixa de contar: sigo com ele noite adiante, várias vezes acompanha-me madrugada fora. Sou pouco dado a insónias, mas quando tenho alguma o responsável máximo é quase sempre um livro. Por ser demasiado interessante, por me prender em excesso, por não me apetecer parar ali.

Hei-de falar da escrita de ficção que me acompanhou em 2023 no próximo - e último - texto desta curta série. Li bastante mais autores estrangeiros do que portugueses. Tolstoi, Dostoievski, Conrad, Faulkner, Borges, Thomas Mann, John dos Passos, Doris Lessing, Gore Vidal, Milan Kundera (falecido a 11 de Julho). O norueguês Jon Fosse, recentemente galardoado com o Nobel. Algumas obras-primas.

Falarei delas para a semana. Hoje destaco cinco livros de autores portugueses de diversos géneros: crónica, biografia, ensaio político, ensaio literário. Todas recentes, todas dignas de atenção.

 

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BIBLIOTECA, de Pedro Mexia (2015). Criteriosa recolha de textos de um dos nossos melhores cronistas, que tem a vantagem acrescida de cultivar uma paixão genuína pelos livros. Em evidente contraste com certas eminências académicas, que usam o tema só para exibir erudição postiça. Aqui se confessam amores por obras de escritores diversos, vários dos quais fora de moda. Não é defeito: é virtude. Edição Tinta da China.

 

COMO PERDER UMA ELEIÇÃO, de Luís Paixão Martins (2023). Todos os políticos deviam ler este livro. Também útil para o cidadão comum que se interessa pela política e assume convictamente a sua condição de eleitor. Escrito por quem conhece bem os bastidores da política sem se deslumbrar com ela. Até por não ignorar que «todas as carreiras políticas terminam em fracasso», como Churchill alertou. Edição Zigurate.

 

O DEVER DE DESLUMBRAR, de Filipa Martins (2023). Natália Correia desvendada até onde foi possível nesta biografia escrita com elegância e sem esbanjar vénias à escritora que dividiu opiniões pela sua verve vulcânica. Figura entre os melhores títulos do género publicados em anos recentes, na linha das biografias de Alexandre O'Neill (por Maria Antónia Oliveira) e José Cardoso Pires (por Bruno Vieira Amaral). Edição Contraponto.

 

«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (2022). A mítica revista Almanaque só teve 18 edições, de 1959 a 1961. Mas deixou um rasto que foi perdurando por ter sobressaltado algum imobilismo salazarista. Num registo não destituído de ironia, aqui se traça o percurso acidentado dessa publicação que reuniu uns tantos intelectuais boémios daquela irrepetível Lisboa - meio cosmopolita, meio provinciana. Edição Tinta da China.

 

TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (2022). Um dos melhores ensaios publicados entre nós sobre a famigerada tentação de censurar obras de arte em nome de novas ideologias identitárias que pretendem reescrever a História, castrar a linguagem e no limite guilhotinar o pensamento. Felizmente há sempre alguém que diz não, como este jornalista brasileiro que viveu muitos anos em Portugal. Edição Guerra & Paz.

Ler (29)

Os melhores livros do meu ano - I

Pedro Correia, 19.01.24

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Um ano terminou, outro começa. Mas algo nunca se interrompe, cá por casa: o fluxo de leituras. Mesmo que os filmes sejam vistos em menos quantidade e até várias séries televisivas tenham ficado por consumir - com uma excepção que tenciono mencionar aqui dentro de dias, antes que a agitação política volte a dominar-nos o quotidiano. A leitura merece prioridade.

De qualquer modo, por motivos muito pessoais, em 2023 li menos do que gostaria. E bastante menos do que nos dois anos anteriores. Em 2020 e 2021, conforme dei nota aqui, li 200 livros completos - uma centena em cada ano, nesses tempos que propiciavam poucas saídas e quase nenhumas viagens devido à pandemia. O que constituiu um incentivo suplementar à leitura.

Em 2022, já com o vírus posto à distância, reduzi um pouco o caudal de livros em que mergulhei de fio a pavio durante esses doze meses: foram 88. Mais, apesar de tudo, do que os do ano recém-terminado: desta vez fiquei-me por 70. Quase seis por mês, em média, apesar de tudo. Num país em que 58,1% dos nossos compatriotas (alguns de vocês, presumo) ficaram totalmente em branco: nem um livro para amostra foram capazes de ler em 2022, último ano em que há estatísticas.

Estatísticas que nos envergonham. E que nos deixam atrás de vários países do chamado Terceiro Mundo.

 

Como em anos anteriores, faço agora um balanço das minhas leituras de 2023. Dividindo-o em três partes: os cinco melhores ensaios de autores estrangeiros (já hoje, aqui em baixo), os cinco melhores livros de autores portugueses, os dez melhores romances (todos estrangeiros, em tradução).

Breve apontamento dedicado a cada um. Por ordem alfabética: é a que prefiro.

 

Entretanto, olho para o que se amontoa à minha cabeceira. Livros de centenas de páginas, daqueles que nos absorvem durante semanas ou até meses, exigindo grande parte da nossa atenção, quase em exclusivo.

Eis alguns: Jerusalém, de Simon Sebag Montefiore (657 pp.), Rússia - Revolução e Guerra Civil 1917-1921, de Anthony Beevor (671 pp.), O Novo Czar - Ascensão e Reinado de Vladimir Putin, de Steven Lee Myers (670 pp.), Mao - A História Desconhecida, de Jung Chang (803 pp.), Liderança, de Henry Kissinger (559 pp, das quais já li cerca de metade), O Século de Sartre, de Bernard-Henry Lévy (712 pp.) e Entrevistas, de Jorge de Sena (483 pp.). Sem esquecer Escritores y Artistas Bajo el Comunismo, de Manuel Florentín (910 pp.), que mão amiga acaba de trazer-me de Madrid.

Só estes já são programa para um ano inteiro.

 

Verifico entretanto que vários títulos que constavam do meu plano de leituras para 2023 permaneceram em pousio: ainda não foi desta que lhes peguei. Anoto-os no parágrafo que vai seguir-se, como uma espécie de incentivo suplementar a mim próprio.

Uma Casa Para Mr. Biswas (V. S. Naipaul), Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), O Templo da Aurora (Yukio Mishima), Sagarana (Guimarães Rosa), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti), A Consciência de Zeno (Italo Zvevo), Rua Principal (Sinclair Lewis), Este Lado do Paraiso (Scott Fitzgerald). 

Será desta que os abrirei?

Daqui a um ano, se não for antes, voltamos a conversar.

 

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A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (2022). Minuciosa investigação deste historiador irlandês ao que resta do vasto espólio bibliográfico do tirano soviético, leitor compulsivo. Estaline não se limitava a ler: fazia constantes anotações nas obras que tinha sempre à mão, tanto no Kremlin como na sua confortável mansão de campo. Lia poesia e conhecia grande parte dos clássicos da literatura. Edição Zigurate.

 

A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (2022). Talvez o melhor livro publicado entre nós, até ao momento, sobre as novas censuras que alastram em meios académicos e jornalísticos em nome de boas causas que servem de pretexto para torpedear direitos e liberdades. Louvável liberdade de pensamento expressa nestas páginas: o historiador francês não hesita em navegar contra a corrente. Edição Guerra & Paz.

 

A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (2022). Jornalista de formação, este talentoso carioca nascido em Minas é hoje o melhor biógrafo do nosso idioma. Nesta sua mais recente obra enuncia as regras fundamentais da escrita que podem transformar cada biografia num sucesso literário. Com ele tem sido assim - daí ter tantos leitores, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Edição Tinta da China.

 

DIREITO A OFENDER, de Mike Hume (2015). Excelente reflexão deste jornalista e colunista britânico sobre os limites cada vez mais rígidos à liberdade de expressão impostos pelo ar do tempo. Como tem sido tragicamente demonstrado em acontecimentos que fazem proliferar o medo: aconteceu com o massacre de Janeiro de 2015 na redacção do Charlie Hebdo, em Paris. Não augura nada de bom. Edição Tinta da China.

 

OH JERUSALÉM, de Dominique Lapierre e Larry Collins (1971). Ao contrário do que alguns supõem, os conflitos na Palestina não começaram em 1948, com a fundação de Israel. São muito anteriores, como demonstra esta obra já clássica. Investigação jornalística sobre aqueles dias do pós-Holocausto, quando a ONU deu luz verde ao nascimento do Estado que serviu de refúgio a um dos povos mais perseguidos da História. Edição Bertrand.

Frase nacional de 2023

Pedro Correia, 18.01.24

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«O Governo pôs-se a jeito, cometeu erros.»

António Costa, em entrevista à RTP, para assinalar o aniversário da vitória eleitoral do PS por maioria absoluta, a 30 de Janeiro

(eleita por maioria, pelo DELITO DE OPINIÃO)

 

Também mereceram destaque estas frases:

 

«Esta minha fúria, é a fúria de um tipo gelado.»

Augusto Santos Silva, a 26 de Abril, numa frase captada pelas câmaras televisivas no parlamento

 

«A experiência de trabalho com João Galamba não permite aceitar a sua demissão.»

António Costa, a 2 de Maio, revelando que decidira manter o polémico ministro no Governo

 

«António Costa podia ser rico, mas escolheu ficar pobre, que é o que ele é. Mas é riquíssimo de espírito.»

Diogo Lacerda Machado, a 11 de Maio, na comissão parlamentar de inquérito à TAP

 

«Tenho falado imenso enquanto Presidente, tenciono não falar nada depois.»

Marcelo Rebelo de Sousa, a 22 de Maio, em declarações à RTP

 

«O "maior orgulho da democracia", o Serviço Nacional de Saúde, está a transformar-se no maior falhanço da democracia.»

António Barreto, a 1 de Julho, em artigo no jornal Público

 

«Na Igreja há espaço para todos, todos, todos.»

Papa Francisco, a 3 de Agosto, na Jornada Mundial da Juventude

 

«O PS cometeu um erro terrível na altura da geringonça, foi talvez o erro mais grave: a demonização da direita democrática. Isso é inaceitável.»

Francisco Assis, a 23 de Novembro, em entrevista à SIC Notícias

 

«Apurou-se que no dia 21 o Dr. Nuno Rebelo de Sousa, meu filho, enviou-me um email em que dizia que um grupo de amigos da família das gémeas se tinha reunido e estava a tentar a todo o transe que elas fossem tratadas em Portugal.»

Marcelo Rebelo de Sousa, a 4 de Dezembro, em comunicação ao País a partir do Palácio de Belém

 

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Frase nacional de 2010: «O povo tem de sofrer as crises como o governo as sofre.»

(Almeida Santos)

Frase nacional de 2011: «Estou-me marimbando para os nossos credores.»

(Pedro Nuno Santos)

Frase nacional de 2013: «Com a apresentação do pedido de demissão, que é irrevogável, obedeço à minha consciência e mais não posso fazer.»

(Paulo Portas)

Frase nacional de 2014: «Sinto-me mais livre que nunca.»

(José Sócrates)

Frase nacional de 2015: «Temos os cofres cheios.»

(Maria Luís Albuquerque)

Frase nacional de 2016: «Já avisei a famíia que só volto no dia 11 [de Julho] e vou ser recebido em festa.»

(Fernando Santos)

Frase nacional de 2017: «Este ano foi um ano particularmente saboroso para Portugal.»

(António Costa)

Frase nacional de 2020: «Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?»

(Ferro Rodrigues)

Frase nacional de 2021: «Já posso ir ao banco»?

(António Costa)

Frase nacional de 2022: «Haver 400 casos de abusos não me parece particularmente elevado.»

(Marcelo Rebelo de Sousa)

Facto internacional de 2023

Pedro Correia, 17.01.24

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TERRORISMO DO HAMAS E VIOLENTA RÉPLICA DE ISRAEL

Este foi, por destacada maioria, eleito o Acontecimento internacional de 2023 pelos autores do DELITO DE OPINIÃO: o conflito bélico iniciado a 7 de Outubro com um sangrento ataque de centenas de milicianos do Hamas a civis no sul de Israel, incluindo velhos, crianças e até bebés - atrocidades nunca antes registadas neste país, independente desde 1948. Morreram cerca de 1200 pessoas e centenas de outras foram raptadas e sequestradas, permanecendo muitas em cativeiro nos túneis da Faixa de Gaza. «Foi o nosso 11 de Setembro», repetiu-se em Telavive.

A resposta do Governo de unidade nacional logo constituído em Israel, sob a liderança de Benjamin Netanyahu, foi duríssima e também sangrenta, merecendo a condenação categórica do secretário-geral da ONU e de grande parte da comunidade internacional. Com a evacuação forçada de metade da população palestina residente em Gaza e a morte de milhares de civis a pretexto da perseguição aos membros do Hamas, armados e apoiados pela ditadura teocrática de Teerão.

O conflito, ainda sem solução à vista, tem vindo a ampliar-se, adquirindo dimensão regional. Já com repercussões no Líbano, na Síria (onde se mantém a guerra civil iniciada em 2011), no Iraque, no Irão e no Iémene (outro país em prolongada guerra civil), de onde partem brigadas terroristas que têm condicionado as rotas dos navios no Mar Vermelho, também transformado em palco bélico. Com graves repercussões no abastecimento de bens à Europa, via Canal do Suez.

Já lhe chamam uma nova guerra israelo-árabe - como aconteceu em 1948, 1967 e 1973. Mas esta parece ter contornos mais amplos, como comprovam os navios de guerra norte-americanos e britânicos que agora navegam no Mediterrâneo Oriental e pelas zonas mais tensas do Mar Vermelho. 

 

Eis duas opiniões dos participantes na votação, resumindo esta tragédia em cascata que volta a enlutar a velha Palestina dilacerada por lutas milenares:

«O terrorismo do Hamas provocou uma resposta também com contornos terroristas de Israel.»

«Mesmo quando as causas são justas, os fins nem sempre justificam os meios, muito menos quando os meios envolvem o terror e a morte de inocentes.»

 

Como sempre acontece no DELITO DE OPINIÃO, é possível votar em mais do que um tema. O segundo mais mencionado foi esteeclosão da Inteligência Artificial. Assinalando o lançamento do ChatGPT e tecnologias similares. «Ainda está por compreender - ou sequer imaginar - o alcance do impacto que as nossas vidas vão sofrer», observou um dos participantes na votação.

Registaram-se ainda votos isolados na Cimeira do Clima no Dubai, na resistência ucraniana ao invasor russo, pelo segundo ano consecutivo, e na rebelião do grupo Wagner e morte de Prigójin que sobressaltou durante alguns dias o regime ditatorial de Vladimir Putin.

 

Facto nacional de 2023

Pedro Correia, 16.01.24

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QUEDA DO GOVERNO DE MAIORIA ABSOLUTA

Em 2022, o PS emergia eufórico das urnas: acabara de conquistar a segunda maioria absoluta da sua história - a primeira havido sido em 2005, com José Sócrates. António Costa via-se inesperadamente premiado pelos eleitores após uma campanha desastrosa do PSD, em que Rui Rio foi acumulando erros do princípio ao fim. Com o BE e o PCP a pagarem o preço político de terem contribuído para a geringonça durante quatro anos e chumbado o Orçamento do Estado de 2022.

Mas o impensável aconteceu: o PS absoluto revelou-se muito mais frágil do que o PS relativo. O Governo recauchutado de Costa protagonizou uma sucessão de monumentais trapalhadas - desde os 14 ministros e secretários de Estado que foram abandonando o barco pelos motivos mais diversos até à inenarrável nomeação de João Galamba para ministro das Infraestruturas e à sua manutenção no cargo, contra todas as evidências e o parecer expresso do Presidente da República, por obstinação do chefe do Executivo, já desligado da realidade.

Tinha tudo para correr mal. E correu mesmo. O copo transbordou em 7 de Novembro, com o anúncio de que Galamba estava a ser investigado pelo Ministério Público, tal como o "facilitador" Diogo Lacerda Machado (melhor amigo do primeiro-ministro) e o próprio chefe de gabinete de Costa, Vítor Escária - este apanhado com 75.800 euros em notas escondidas no gabinete de São Bento, a escassos 20 metros da secretária do chefe do Governo. Pior ainda: o próprio Costa era alvo desta "Operação Influencer" por suspeita do crime de prevaricação.

«Obviamente, apresentei a minha demissão a sua excelência, o senhor Presidente da República», declarou o primeiro-ministro ao princípio dessa tumultuosa tarde. Marcelo Rebelo de Sousa anunciaria depois a dissolução da Assembleia da República a 15 de Janeiro (concretizada ontem) e a marcação de eleições legislativas antecipadas para 11 de Março. Virava-se a página, nada voltaria a ser igual.

 

Esta estrondosa queda do Governo de maioria absoluta foi eleita, por larga maioria, o Acontecimento Nacional de 2023 pelos autores do DELITO DE OPINIÃO. Que aqui, como em qualquer outro capítulo das nossas escolhas anuais, podem sempre votar em mais de um tema.

«Inenarrável, tanto o Governo, como a sua queda» - foi um dos comentários registados. «Apenas um ano depois de Costa nos garantir que iriam ser mais quatro anos», houve quem lembrasse. Enquanto a «descoberta de 75.800€ em dinheiro escondidos no gabinete contíguo ao de António Costa» justificava menção específica.

 

Em segundo lugar, não muito distante, ficou o colapso do Serviço Nacional de Saúde - tema que percorreu todo o ano de 2023 em Portugal e já se prolongou para 2024. Algo «gravíssimo», sublinhou um dos autores deste blogue. Enquanto outra voz se levantava para destacar isto: «Foi o facto de maior impacto directo na vida dos cidadãos deste país e é o exemplo acabado da falta de visão e má gestão dos sucessivos governos desde há muitos anos.» Já em 2022 este assunto fora aqui mencionado, oscilando entre as designações "caos nos hospitais" e "derrocada no SNS".

Terceiro lugar para a histórica Jornada Mundial da Juventude, que congregou em Agosto cerca de milhão e meio de visitantes, jovens na sua esmagadora maioria, transfigurando durante mais de uma semana a face de Lisboa. Também com a presença do Papa Francisco, nesta sua primeira visita à capital portuguesa enquanto dirigente supremo da Igreja Católica. 

 

Três outros factos, cada qual com um voto. Passo a enunciá-los para ficarem lavrados em acta como sempre sucede, ano após ano, no nosso blogue:

- Revelações sobre abusos sexuais na Igreja (facto já mencionado no ano anterior).

- A bicicleta atirada contra as portas de vidro do Ministério do Ambiente: «É o símbolo de muito, senão de tudo o que sucedeu, ainda por cima coroado de rídiculo e inverosímil. Quando tentei explicar o que tinha sucedido a colegas estrangeiros, riram-se na minha cara, com imensa dificuldade em acreditar.» 

- A decadência generalizada do regime, envolvendo acontecimentos já mencionados e alguns outros. Desta forma: «A queda do Governo; o afundamento do SNS; a estultificação do ensino público; o caso Galamba; a novela TAP, o que se descobriu na CPI e foi pressurosamente varrido para debaixo do tapete; 75 mil euros em notas encontrados escondidos em São Bento; a promiscuidade na gestão dos assuntos públicos.»

 

Facto nacional de 2010: crise financeira

Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal

Facto nacional de 2013: crise política de Julho

Facto nacional de 2014: derrocada do Grupo Espírito Santo

Facto nacional de 2015: acordos parlamentares à esquerda

Facto nacional de 2016: Portugal conquista Europeu de Futebol

Facto nacional de 2017: Portugal a arder de Junho a Outubro

Facto nacional de 2018: incúria do Estado

Facto nacional de 2019: novos partidos no Parlamento

Facto nacional de 2020: o vírus que nos mudou a vida

Facto nacional de 2021: vacinação em massa

Facto nacional de 2022: o regresso da inflação

Figura internacional de 2023

Pedro Correia, 08.01.24

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VOLODIMIR ZELENSKI

Segunda vitória consecutiva do Presidente da Ucrânia como Figura Internacional do Ano aqui no DELITO. Do quase anonimato, Volodimir Zelenski. tornou-se celebridade à escala mundial. Pelo pior motivo possível, certamente, na opinião dele. Por ser um herói involuntário que soube manter-se de pé e liderar o seu povo agredido por Moscovo. É fácil presumir que nada disto estava nos seus planos quando se candidatou à presidência, em 2019.

Zelenski, que em 2022 teve um triunfo esmagador na votação do blogue, desta vez venceu por maioria simples.

Eis algumas das justificações apresentadas por quem votou nele:

«Essencialmente, pela capacidade de resistência.»

«Apesar de outros conflitos graves [em 2023], não pode ser esquecido.»

«Quem sabe o que sucederá, caso a Rússia ganhe a guerra.»

Enfim, um conflito gravissimo iniciado com a invasão decretada por Vladimir Putin, em 24 de Fevereiro de 2022, e que se mantém neste início de 2024. Sabe-se lá até quando.

 

E quem mais?

O segundo lugar coube à presidente da Comissão Europeia. Ursula von Der Leyen, que já tinha sido eleita Figura do Ano em 2020, esteve perto de revalidar esta distinção. «Interventiva, sem dúvida», houve quem dissesse, justificando ter votado nela.

A tal frase - provavelmente apócrifa - atribuída a Henry Kissinger sobre a impossibilidade de pegar no telefone e contactar alguém que «liderasse a Europa» talvez deixe enfim de fazer sentido com esta ex-ministra alemã da Defesa que tem assumido inegável protagonismo como porta-voz do espaço comunitário. E que parece estar muito longe da aposentação. 

 

O terceiro posto do pódio coube ao recém-eleito Presidente da Argentina, Javier Milei. Um assumido ultraliberal que venceu as eleições de Novembro para a Casa Rosada, com 56%, destronando o rival peronista Sergio Massa num dos países mais proteccionistas do mundo - e também um dos mais depauperados por décadas de péssima gestão económica e financeira.

Seguiram-se votos isolados no Papa Francisco (vencedor em 2013 e 2014), no Presidente norte-americano Joe Biden (Figura do Ano em 2022), na primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e no secretário-geral da ONU, o nosso compatriota António Guterres

 

Faltam mais três.

Ismail Haniya, líder do Hamas - «Pelas piores razões», diz quem votou nele.

Sam Altman, big boss da OpenAI. Motivo? «Abriu a porta para um futuro potencialmente tão assombroso quanto tenebroso – porque, quer queiramos quer não, o futuro já chegou e está em movimento uniformemente acelerado.»

Finalmente, um voto com dimensão colectiva. No povo palestiniano. «Vítima do Hamas, de Netanyahu e da inércia/impotência internacional. Não teve voz nem voto na matéria, limita-se a esperar a morte», assim foi justificado.

Para o ano há mais, fica prometido.

 

Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange

Figura internacional de 2011: Angela Merkel 

Figura internacional de 2013: Papa Francisco

Figura internacional de 2014: Papa Francisco

Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi

Figura internacional de 2016: Donald Trump

Figura internacional de 2017: Donald Trump

Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro

Figura internacional de 2019: Boris Johnson

Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen

Figura internacional de 2021: Joe Biden

Figura internacional de 2022: Volodimir Zelenski

Figura nacional de 2023

Pedro Correia, 07.01.24

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MARCELO REBELO DE SOUSA

Repete o destaque já aqui alcançado há seis anos. Desta vez, sobretudo, por ter decidido dissolver a Assembleia da República, em Novembro. Tal como fizera em 2021, o que permitiu ao PS vencer as eleições seguintes e usufruir do breve interlúdio da maioria absoluta que será quebrado a 10 de Março. 

O Presidente da República volta a ocupar o principal lugar do palco num sistema político que tem reforçado a vertente parlamentar. Isto no ano em que as relações institucionais com o primeiro-ministro cessante passaram do morno para o quase gélido. Hoje quase parece impossível que António Costa tenha recomendado em Janeiro de 2021 o voto no actual inquilino de Belém. Prova - mais uma - de que a política portuguesa se alimenta de microciclos, em aceleração constante.

Assim, Marcelo Rebelo de Sousa foi escolhido pelo DELITO como Figura Nacional do Ano. Por maioria simples, muito longe de qualquer vitória arrasadora. Houve quem o elegesse pela positiva. «Não há noticiário que passe sem ele», assinalou alguém. Mas pesaram igualmente motivos menos lisonjeiros - incluindo o caso das gémeas brasileiras, ainda não esclarecido na totalidade e que contribuiu para uma quebra notória da popularidade do Chefe do Estado já reflectida nas sondagens.

«[Marcelo] parece ter perdido o sentido de Estado ou até mesmo o contacto com a realidade. Vive num mundo imaginado, onde é rei absoluto», justificou uma das vozes "delituosas".

 

Na segunda posição ficou o recém-eleito secretário-geral do PS. Pedro Nuno Santos, que passou de quase proscrito a sucessor de Costa, sufragado nas eleições internas de Dezembro, em que superou o seu rival interno, José Luís Carneiro, com cerca de 64% dos votos.

«Por ter feito a travessia do deserto socialista mais rápida dos últimos tempos e conseguido passar de persona non grata a potencial futuro primeiro-ministro num abrir e fechar de olhos (cortesia de Lucília Gago e Marcelo Rebelo de Sousa). Um verdadeiro artista do circo que é a nossa política.» Foi assim que um dos nossos votantes em PNS justificou a sua escolha.

 

Seguiram-se votos isolados em diversas outras figuras nacionais. António Costa, que o DELITO elegeu Figura do Ano em 2015 e 2022. João Galamba, empossado em Janeiro como ministro das Infraestruturas e forçado a abandonar estas funções em Novembro após ter protagonizado em Abril um dos episódios mais caricatos e vergonhosos do Governo de maioria absoluta que o transportaram para o anedotário nacional. Lucília Gago, a procuradora-geral da República escolhida pelo Governo socialista e agora transformada em alvo frequente de críticas no PS devido à investigação anunciada ao País a 7 de Novembro. Vítor Escária, ex-chefe de gabinete de Costa, que tinha quase 76 mil euros em notas no seu gabinete da residência oficial em São Bento. O antigo presidente da Iniciativa Liberal Carlos Guimarães Pinto, que um dos "delituosos" elogiou como «um dos poucos deputados que conseguiuram dar alguma qualidade ao parlamento». E, claro, Cristiano Ronaldo - que em 2023 foi o futebolista que marcou mais golos em competições oficiais de todo o mundo: 54. Já com 38 anos, promete continuar em 2024. Ninguém o pára.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Figura nacional de 2019: D. José Tolentino Mendonça

Figura nacional de 2020: Marta Temido

Figura nacional de 2021: Henrique Gouveia e Melo

Figura nacional de 2022: António Costa

Os melhores livros do meu ano (3)

Pedro Correia, 05.02.23

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Já vos confessei noutros momentos: sou cada vez mais adepto de releituras. Tenho-o feito com proveito e gosto. Quando o livro é mesmo bom, abre-nos novas perspectivas quando mergulhamos nele. À segunda ou à terceira, já nos interessa menos a trama e estamos mais atentos a certos aspectos da construção frásica, da linguagem ou da crítica social ali contidos. Aconteceu-me, noutros anos, com vários romances de Eça - como Os Maias ou A Cidade e as Serras. Enquanto me resta um só dos seus livros por desvendar: A Ilustre Casa de Ramires. Ainda não aconteceu em 2022.

Reservo às releituras o terceiro e último bloco de dez títulos que funciona como súmula dos 88 que pude ler no ano passado. Em boa verdade, nenhum me decepcionou: gostei muito dos livros que já me haviam atraído, achei insólitos ou desinteressantes os que já me haviam suscitado reservas. Mas nunca senti que estava a perder o tempo. Isso é o que mais importa.

Partilho esta lista convosco: são seis romances ou novelas de autores portugueses, dois romances estrangeiros, um volume de crónicas e outro de contos. Por ordem alfabética, mantendo o critério assumido aqui e aqui.

 

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A PAZ DOMÉSTICA, de Teresa Veiga (1999). Este curto romance é um dos meus preferidos entre os que se foram publicando em Portugal no último quarto de século. Primeira - e bem-sucedida - incursão no género de uma das nossas mais enigmáticas escritoras, que nunca dá entrevistas e raras vezes é vista em eventos sociais. Contista por vocação, nota-se esta característica na economia de meios do romance, valorizando-o. Retrato de uma mulher ao longo de algumas décadas - que é também, de algum modo, o retrato do País.

 

ALEXANDRA ALPHA, de José Cardoso Pires (1987). Não é bem uma releitura. Explico já: este é um livro que nos dá luta. Só em 2022, à terceira tentativa, consegui lê-lo até ao fim. Da primeira, há vários anos, pareceu-me pastoso e aborrecido; da segunda, mais recente, perdi-me a meio daquela intriga e troquei-o por outro, mais estimulante. Agora está concluído. Romance com fragmentos de sátira à intelectualidade alfacinha dos anos 80, aliás com figuras facilmente identificáveis, mas longe de ser o melhor de Cardoso Pires.

 

ALVES & C.ª, de Eça de Queiroz (1925). Uma das obras que permaneceram um quarto de século guardadas em estado virginal na arca do escritor, quase tão célebre como a de Fernando Pessoa. Novela de atmosfera lisboeta, esboçando nesta prosa ainda de juventude a demolidora crítica à burguesia da capital, que a geração de Eça considerava a classe social mais decadente do País. O escritor guardou o texto sem o rever, mas o essencial do seu estilo mantém-se neste retrato irónico de um marido enganado mas complacente.

 

CONTOS COMPLETOS, de Fernando Pessoa (2012). O poeta de Mensagem era um escritor compulsivo: chegava a escrever em bilhetes de eléctrico. Quase autor póstumo, com apenas um livro publicado em vida. Tantos anos depois, o espólio pessoano ainda produz novidades. Como este livrinho, que recolheu a sua esparsa prosa de ficção, inédita ou dispersa por publicações há muito falecidas. Desperta curiosidade, mas nada tem de empolgante. Só um dos contos, "O Banqueiro Anarquista",  justifica leitura mais atenta.

 

ECLIPSE DO SOL, de Arthur Koestler (1941). Este romance foi muito divulgado em Portugal com outro título: O Zero e o Infinito. Corajosa denúncia do estalinismo por parte deste autor, que conheceu por dentro o pesadelo totalitário e teve forte influência nas obras similares de George Orwell. Esta versão portuguesa decorre do original alemão, que durante muito tempo se imaginou perdido, e não do exemplar inglês, base da tradução anterior. O novo título faz sentido. A denúncia mantém-se vigorosa. E actual como nunca.

 

O ANJHO ANCORADO, de José Cardoso Pires (1958). Trinta anos antes de Alexandra Alpha, Cardoso Pires escreveu esta novela numa toada quase musical, em sagaz olhar sobre a atmosfera social de um país enclausurado à luz do sol. João, empresário a caminho da meia idade, e Guida, jovem professora recém-saída da universidade, encontram-se e desencontram-se numa tarde de fim-de-semana à beira-mar entre gente ignota e rude que os observa à distância. Inacreditável, este livro nunca ter gerado um filme.

 

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA, de G. K. Chesterton (1908). Espécie de antepassado das novelas de espionagem, ou de paródia antecipada às ditas, quando o anarquismo estava em voga naqueles anos que precederam a I Guerra Mundial. Chesterton aborda com humor o mesmo tema a que Joseph Conrad deu tratamento sério no romance O Agente Secreto, publicado em 1907: impossível não ver relação entre as duas obras. No confronto entre ambas, há quem prefira esta sátira ligeira e muito divertida: é o meu caso.

 

REVOLUCIONÁRIOS QUE EU CONHECI, de Vera Lagoa (1977). No PREC, em 1975, produziu-se muita literatura panfletária, para consumo imediato, alimentando o confronto ideológico travado neste país que alguns queriam "em marcha acelerada para o socialismo". Na facção oposta avultava Vera Lagoa, recentemente recordada em Três Mulheres. A série da RTP levou-me a reler este livro, que reúne demolidoras crónicas jornalísticas. Com trechos divertidos, outros injustos. Era um sinal daqueles tempos.

 

SIGNO SINAL, de Vergílio Ferreira (1979). Um dos romances menos conhecidos do autor de Aparição, que aqui faz uma espécie de autópsia do processo revolucionário português, centrado numa aldeia devastada por um terramoto. A cáustica sátira política surge aqui a traço grosso, envolta numa linguagem desbragada raras vezes usada por Vergílio Ferreira - mas que faz algum sentido por caracterizar aquela época de todas as ilusões, povoada por uma vasta galeria de vira-casacas e oportunistas de todos os matizes.

 

UMA ABELHA NA CHUVA, de Carlos de Oliveira (1953). Talvez o melhor romance daquela escola literária que entre nós se convencionou chamar "neo-realista". Numa linguagem depurada e límpida, raras vezes usada por outros autores da mesma corrente estilística, e sem os chavões da praxe que transformavam personagens em caricaturas. Neste drama aldeão há gente concreta e paixões atávicas que se sobrepõem a qualquer cartilha ideológica. Inspirou o filme homónimo de Fernando Lopes, que merece ser revisto.

Os melhores livros do meu ano (2)

Pedro Correia, 04.02.23

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Foi uma das poucas boas heranças dos longos meses da pandemia, pontuados por estados de emergência, recolher obrigatório e teletrabalho em larga escala: sobraram-me horas para a leitura. Daí ter lido cem livros em 2020, outros cem em 2021 e 88 no ano que há pouco terminou.

Ontem destaquei aqui dez dessas obras que me acompanharam em 2022, escritas apenas por autores portugueses: seis romances, uma ensaio memorialístico, uma biografia, um livro de crónicas e outro de apontamentos literários. De escritores já antigos, como Vergílio Ferreira ou Urbano Tavares Rodrigues, e outros contemporâneos, ainda jovens, como Djaimilia Pereira de Almeida ou Afonso Reis Cabral.

Hoje destaco outras dez, mas só de autores estrangeiros. São oito romances, um ensaio literário e um extenso volume com prosa diarística. De três galardoados com o Prémio Nobel (Thomas Mann, John Galsworthy e Mario Vargas Llosa) e de épocas muito diversas - de meados do século XIX até quase à década em que hoje vivemos. Gostei de todos, em graus diversos. Alguns foram excelentes surpresas.

Alinhados também por ordem alfabética, para maior facilidade de consulta.

 

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A FAMÍLIA FORSYTE, de John Galsworthy (1922). Um monumento literário sobre meio século de vida de um clã de prósperos negociantes londrinos que simbolizavam o apogeu e decadência da Inglaterra vitoriana. Com personagens inesquecíveis: o pérfido Soames e o seu primo direito Jolyon, mais dado às artes dos que aos negócios, além de Irene, a mulher que ambos disputaram. Originou filmes e séries, sempre com sucesso.

 

A FESTA DO CHIBO, de Mario Vargas Llosa (2000). Um dos melhores romances do popular escritor peruano, aqui num ousado exercício de estilo que cruza a ficção com segmentos de reportagem em torno de um dos mais execráveis ditadores da América hispânica: o dominicano Rafael Trujillo, assassinado em 1961. Autópsia de uma tirania com bisturi literário de mestre exibindo uma escrita inigualável.

 

DIÁRIOS 1950-1962, de Sylvia Plath (2000). Viver era escrever para a poetisa norte-americana, que sofria de depressão desde a adolescência e foi capaz de elevar esta doença à categoria de obra de arte enquanto matéria literária. Eis a versão mais completa dos seus diários, só há meses publicada em português. Permite-nos perceber como a tragédia do suicídio, aos 30 anos, se prenunciava nos belos textos que redigia.

 

E TUDO O VENTO LEVOU, de Margaret Mitchell (1936). Epopeia em torno da Guerra Civil norte-americana (1861-1865) que dilacerou os EUA com reflexos que chegaram aos nossos dias. Scarlett O'Hara, que resiste às adversidades do destino na vasta propriedade rural de Tara, na Geórgia, simboliza a tenacidade sulista, deslocada num mundo em mudança vertiginosa. Uma das grandes personagens femininas da literatura.

 

MORTE EM HAVANA, de Leonardo Padura (1997). Inesquecível, o Quarteto de Havana integrado por quatro policiais, cada qual ambientado numa das estações do ano - que na Cuba comunista são pequenas variações do mesmo sistema concentracionário, emoldurado por um oceano que em vez de libertar oprime. Mario Conde, polícia que sonhava ser escritor, protagoniza os quatro romances, de que este é o meu eleito.

 

NOSTROMO, de Joseph Conrad (1904). O escritor anglo-polaco era capaz de conciliar a novela de aventuras com a fabulosa criação de atmosferas densas e perturbantes. Aqui numa fictícia república da América do Sul, inaugurando um subgénero que fez furor com títulos como Tirano Banderas (Valle Inclán, 1927), O Senhor Presidente  (Miguel Angel Asturias, 1947) ou O Outono do Patriarca (Gabriel García Márquez, 1975).

 

O BARULHO DAS COISAS AO CAIR, de Juan Gabriel Vásquez (2011). Um dos melhores romances da nova geração sul-americana. O autor, colombiano, presta homenagem ao realismo mágico mais pelas palavras do que pelas ideias numa obra sem concessões ao imaginário pícaro. O livro disseca com desassombro a tragédia do terrorismo ligado ao narcotráfico, que paralisou o Estado e estilhaçou a sociedade.

 

O  INFINITO NUM JUNCO, de Irene Vallejo (2019). Deslumbrante ensaio que se aproxima de um romance sobre o apego à leitura, iniciado antes da invenção do papel. Leva-nos aos grandes pensadores da Grécia antiga, faz-nos conhecer as penas mais talentosas da velha Roma. Caso extraordinário de paixão desmedida pela palavra escrita que a historiadora espanhola transmite com inegável fascínio aos seus leitores.

 

O MONTE DOS VENDAVAIS, de Emily Brontë (1847). Exemplo clássico da ficção gótica, centrada numa mansão onde o rasto dos mortos assombra os vivos. O inferno transposto para o bucólico cenário rural inglês em forma de romantismo exacerbado, tendo no centro a figura do demoníaco Heathcliff na sua demencial obsessão por Catherine, uma das primeiras e mais emblemáticas heroínas da literatura. 

 

OS BUDDENBROOK, de Thomas Mann (1901). A fortuna da família Buddenbrook, argamassada há três gerações no norte da Alemanha, ameaça ruir quando os filhos tomam o lugar dos pais naquele final do século XIX, já com a velha burguesia luterana a dissolver-se enquanto âncora moral da sociedade. Genial romance de juventude que valeu o Nobel ao prosador germânico: nunca voltaria a escrever tão bem.

Os melhores livros do meu ano (1)

Pedro Correia, 03.02.23

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Já vem algo tarde, mas ainda a tempo. O balanço das minhas leituras ao longo de 2022. Após dois anos consecutivos em que consegui ler cem, com a crise pandémica a dar forte contributo por nos ter amputado grande parte da vida social, baixei um pouco neste mais recente, entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro: desta vez foram 88. De várias épocas, de vários estilos, de vários géneros, de autores de diversas nacionalidades.

Como em anos anteriores, dou-vos nota das minhas leituras em 2022. Dividindo-as em três listas de dez títulos, precisamente aqueles de que mais gostei. Não gostei de outros - e houve até uns tantos que detestei. Mas desses falarei noutra ocasião, não nesta.

Hoje menciono apenas obras de autores portugueses. Amanhã, de autores estrangeiros. No terceiro dia, ficará aqui um apontamento sobre as melhores releituras. Sempre dez em cada bloco. Por ordem alfabética, critério que gosto de seguir.

 

Tal como já tinha sucedido em 2020 e 2021, dediquei muito mais tempo à leitura do que ao cinema, contrariando um hábito há muito enraizado. Nos dias que correm, os filmes interessam-me bastante menos. Porque, confesso, já vi grande parte do que gostaria de ver - incluindo a esmagadora maioria dos clássicos da Sétima Arte. E também porque nada me atrai hoje na chamada "indústria cinematográfica", precisamente a que domina os circuitos de exibição e comercialização. 

Ao contrário dos livros. E se algum me decepciona, há sempre um título em alternativa na fila de espera. Para 2023, já revelei quais são as minhas prioridadesGuerra e Paz como leitura de Inverno, Em Busca do Tempo Perdido como leitura de Verão.

Não serão os únicos. Olho a pilha que se avoluma na sala. Contém pelo menos estes: Uma Casa Para Mr. Biswas (V. S. Naipaul), Herzog - Um Homem do Nosso Tempo (Saul Bellow), A Piada Infinita (David Foster Wallace), Na Minha Morte (William Faulkner), O Templo da Aurora (Yukio Mishima), Sagarana (Guimarães Rosa), Os Sonâmbulos (Hermann Broch), Auto-de-Fé (Elias Canetti).

Qual irá seguir-se?

O sortilégio da leitura passa também pela incerteza destas escolhas em rumo errante. É acaso, é destino? De viagem em viagem, todas nos transportam para mundos bem diferentes sem necessidade de darmos um passo. Apetece dizer como Jorge Luis Borges: «Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler.»

 

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A MESA ESTÁ POSTA, de Jorge Silva Melo (2019). Recolha de crónicas de Jorge Silva Melo, figura magna do teatro e do cinema que morreu há quase um ano. Na sequência do magnífico Século Passado - quase o romance que nunca escreveu. Ainda bem que nos deixou estes livros por legado: preciosos testemunhos de uma época que vai passando.

 

A VOZ DOS DEUSES, de João Aguiar (1984). Quem diria que Viriato seria personagem credível de um romance português numa prosa sem artifícios nem rodriguinhos? Há quase 40 anos, este livro distinguiu-se por uma proeza difícil: teve sucesso junto do público e da crítica. Resiste hoje à mais dura das provas - a do tempo. Falando-nos desta terra que já tinha identidade própria antes de ser Portugal.

 

CALENDÁRIO PRIVADO, de Fernanda Botelho (1958). Escritora discreta por opção própria, a autora de Xerazade e os Outros abordava neste seu segundo romance, de algum modo ainda de aprendizagem, temas quase clandestinos, como o aborto. Numa obra de forte toada psicológica, contrariando as tendências político-sociais então em voga.

 

COM OS HOLANDESES, de J. Rentes de Carvalho (1972). Há longos anos radicado nos Países Baixos, o autor de Ernestina desenrola o fio da memória desde o tempo em que ali desembocou como imprevisto emigrante, sem saber uma palavra do idioma local. No seu estilo empático e desenvolto, fala-nos com humor do país de acolhimento e dos choques culturais que lá sofreu.

 

DE QUASE NADA A QUASE REI, de Pedro Sena-Lino (2020). Minuciosa biografia do Marquês de Pombal (1699-1782) escrita por um poeta apostado em investigar a figura do ministro de D. José que ascendeu a vulto mais influente do reino. Bem documentada, sem as liberdades literárias que Camilo e Agustina dedicaram ao homem que reergueu Lisboa após o terramoto e mandou executar opositores com requintes de crueldade.

 

LIVRO DOS PREFÁCIOS À OBRA DE AGUSTINA BESSA-LUÍS, de vários autores (2022). Reúne os textos que funcionaram de pórtico a diversos livros da notável prosadora. Uma galeria notável de admiradores desfila aqui - de António Barreto a Rui Ramos, de João Bénard da Costa a José Tolentino de Mendonça. A melhor das introduções ao espólio literário de Agustina.

 

LUANDA, LISBOA, PARAÍSO, de Djaimilia Pereira de Almeida (2018). Singular romance, de uma frescura surpreendente e notável domínio da linguagem escrita polvilhada de marcas da oralidade contemporânea num amargo cruzamento de rotas entre Angola e Portugal. Em perfeito contraste com tantas outras obras actuais de onde a vida está ausente. 

 

O CAMINHO FICA LONGE, de Vergílio Ferreira (1943). Aqui o futuro autor de Para Sempre dava os primeiros passos como escritor. Já com destreza oficinal ao revelar-se como romancista. Durante décadas, esta obra sobre o meio estudantil coimbrão de final dos anos 30 permaneceu fora do mercado. Felizmente foi possível relançá-la. Texto juvenil, com virtudes e defeitos próprios de quem começa.

 

OS INSUBMISSOS, de Urbano Tavares Rodrigues (1961). Um dos raros romances portugueses centrados no mundo jornalístico, por experiência directa do autor. Hoje vale mais como documento do que como marco literário: a linguagem é demasiado carregada de adjectivos e muitos diálogos soam a falso. Mas certas cenas merecem destaque. Como a última, com os amigos na praia cantando o hino nacional - a revolta possível naqueles anos de chumbo.

 

O MEU IRMÃO, de Afonso Reis Cabral (2014). Obra-prima da novelística portuguesa contemporânea, justamente galardoada com o Prémio Leya, fala-nos da atribulada mas enternecedora relação entre um jovem universitário e o seu irmão mais velho, deficiente profundo. Com emoção contida, evitando chavões sentimentais e sem nunca escorregar para o melodrama.

Frase nacional de 2022

Pedro Correia, 12.01.23

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«Haver 400 casos de abusos não me parece particularmente elevado.»

Marcelo Rebelo de Sousa, comentando os abusos sexuais na Igreja, 11 de Outubro

(eleita por maioria, pelo DELITO DE OPINIÃO)

 

Também mereceram destaque estas frases:

 

«O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal... mas, enfim, esqueçamos isto.»

Marcelo Rebelo de Sousa, a 17 de Novembro, celebrando a ida da selecção das quinas ao Mundial

 

«"Estás com uma pressa do cara*** para me tirar, fo***

Cristiano Ronaldo, a 2 de Dezembro, quando Fernando Santos o mandou sair de campo no jogo contra a Coreia do Sul

 

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Frase nacional de 2010: «O povo tem de sofrer as crises como o governo as sofre.»

(Almeida Santos)

Frase nacional de 2011: «Estou-me marimbando para os nossos credores.»

(Pedro Nuno Santos)

Frase nacional de 2013: «Com a apresentação do pedido de demissão, que é irrevogável, obedeço à minha consciência e mais não posso fazer.»

(Paulo Portas)

Frase nacional de 2014: «Sinto-me mais livre que nunca.»

(José Sócrates)

Frase nacional de 2015: «Temos os cofres cheios.»

(Maria Luís Albuquerque)

Frase nacional de 2016: «Já avisei a famíia que só volto no dia 11 [de Julho] e vou ser recebido em festa.»

(Fernando Santos)

Frase nacional de 2017: «Este ano foi um ano particularmente saboroso para Portugal.»

(António Costa)

Frase nacional de 2020: «Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?»

(Ferro Rodrigues)

Frase nacional de 2021: «Já posso ir ao banco»?

(António Costa)

Facto internacional de 2022

Pedro Correia, 11.01.23

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AGRESSÃO RUSSA À UCRÂNIA

Este foi, por larguíssima maioria (quinze em vinte dos participantes), eleito o Acontecimento internacional de 2022 pelos autores do DELITO DE OPINIÃO: a invasão da Ucrânia pela Rússia, obedecendo à voz de comando do ditador de Moscovo, Vladimir Putin. 

Iniciada na madrugada de 24 de Fevereiro, esta agressão bélica faz lembrar tempos que há muito não víamos no Europa, tendo provocado um número impressionante de vítimas (fala-se em cerca de cem mil, entre baixas militares e civis dos dois lados), a destruição de grande parte do território da Ucrânia e uma onda de refugiados sem precedentes no continente desde a II Guerra Mundial: calcula-se que 15 milhões de pessoas - cerca de um terço da população do país agredido - tenha sido forçada a abandonar os seus lares. Muitos procuraram refúgio noutros países, incluindo Portugal. 

A guerra - que Putin desencadeou pensando que fosse concluída a curto prazo, com a ocupação de Kiev, a deposição das instituições do país invadido e a detenção ou assassínio do Presidente Volodimir Zelenski - tem-se prolongado, tendo os ucranianos já recuperado cerca de 55% do território inicialmente invadido. Cidades como Butcha, Irpin e Mariúpol tornaram-se tristemente famosas em todo o mundo, pelos massacres que os esbirros armados do Kremlin lá cometeram. 

A agressão motivou uma unidade inquebrantável dos países ocidentais no apoio à Ucrânia - financeiro, humanitário e militar. Com Zelenski enaltecido como símbolo da resistência e países até há pouco neutrais, como a Finlândia e a Suécia, envolvidos na estratégia global de defesa face ao imperalismo russo - ao ponto de terem aderido à NATO, algo impensável há um ano.

 

Passo a citar algumas das opiniões emitidas pelos participantes nesta votação:

«A partir de 24 de Fevereiro o mundo mudou de forma abrupta.»

«A guerra na Ucrânia modificou mesmo as nossas vidas; esperemos que não modifique ainda mais.»

«A chocante invasão da Ucrânia pela Rússia, em pleno século XXI, fez soar todos os alarmes. Põe em risco a ordem mundial tal como a conhecemos, tem como alvo as sociedades democráticas liberais, e é afirmação da autocracia feita ruidosamente ao som dos tambores bélicos, a única e verdadeira força de Moscovo. Este conflito tem provocado alinhamentos e realinhamentos geostratégicos. Ironicamente, teve o condão de unir o Ocidente e de alargar a NATO até às fronteiras da Rússia. Quanto mais tempo a guerra durar mais perto estaremos de que se torne global, com consequências imprevisíveis para o planeta.»

 

Como todos os anos acontece, é possível cada um votar em mais do que um tema. Assim, eis dois acontecimentos do ano passado que também mereceram referência nesta eleição: planeta Terra ultrapassou os 8 mil milhões de habitantes (três votos) e revolta popular no Irão (dois votos).

Registaram-se ainda votos isolados na morte da Rainha Isabel II, na inflação como fenómeno global e no desrespeito pela vida no planeta («guerra, alterações climáticas, agravamento do fosso entre muito ricos e muito pobres»).

 

Facto nacional de 2022

Pedro Correia, 09.01.23

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O REGRESSO DA INFLAÇÃO

Duas gerações de portugueses nunca tinham experimentado isto. Todo o ano passado foi vivido sob o espectro da inflação, numa depreciação contínua do valor do dinheiro e consequente aumento dos preços dos bens essenciais. Desde 1993 que não se registavam cifras destas entre nós: o surto inflacionário chegou a atingir dois dígitos (10,1%) em Outubro. No final do ano, cifrava-se em 9,6%. Mas pode voltar a subir neste primeiro trimestre de 2023, segundo alertou o governador do Banco de Portugal. Reflectindo-se de forma bem visível na diminuição do nosso poder de compra.

A política monetária seguida pelos bancos centrais, a pandemia que abalou as tradicionais cadeias de abastecimento e a guerra na Ucrânia, com a consequente crise energética e alimentar, foram causas próximas deste regresso à inflação, que se regista um pouco por todo o mundo e causa muita preocupação entre os portugueses. Ao ponto de este regresso da inflação ter sido eleito o Acontecimento Nacional de 2021, embora por escassa margem, pelos autores do DELITO DE OPINIÃO: sete votos em 20 dos que participaram - podendo sempre ser escolhido mais de um tema, como é tradicional entre nós.

«Esta antiga campanheira da nossa já longa história voltou a dar sinal de si. Poderíamos ter aproveitado a sua hibernação, de três décadas, mas o avanço mais efectivo verificado na sua ausência foi o disparar da dívida do país», assinalou um dos "delituosos", justificando a escolha.

 

Em segundo lugar, com seis votos, ficou o que alguns intitularam desgovernação, havendo também quem lhe chamasse crise política. Em alusão aos sucessivos casos que abalaram o governo maioritário de António Costa, num constante entra-e-sai de membros do Executivo. «Não tenho memória de se ter assistido a tantas demissões num governo que ainda não fez um ano» , observou alguém.

A inesperada maioria absoluta do PS nas legislativas de Janeiro foi outro tema mencionado, recolhendo quatro votos. É outro regresso: neste caso a um cenário político inexistente desde 2009, quando chegou ao fim o primeiro Executivo de José Sócrates. 

Menção ainda (com dois votos) para o caos nos hospitais, também classificado de "derrocada do SNS" - outro assunto que foi acompanhando o quotidiano nacional em 2022.

 

Depois, cinco outros factos, cada qual com um voto. Passo a enunciá-los para ficarem lavrados em acta como sempre sucede, ano após ano, no nosso blogue:

- Escândalo de pedofilia na Igreja Católica «e o subsequente rosário de disparates dos seus representantes, e de um certo chefe de Estado de um estado supostamente laico».

- A continuação ideológica da geringonça por outros meios.

Fim da geringonça e a «oportunidade perdida de dar um novo rumo ao país».

- O crescente impacto das alterações climáticas no litoral e no interior de Portugal.

Fim do uso obrigatório da máscara (muitos de nós já nos tínhamos esquecido disto).

 

Facto nacional de 2010: crise financeira

Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal

Facto nacional de 2013: crise política de Julho

Facto nacional de 2014: derrocada do Grupo Espírito Santo

Facto nacional de 2015: acordos parlamentares à esquerda

Facto nacional de 2016: Portugal conquista Europeu de Futebol

Facto nacional de 2017: Portugal a arder de Junho a Outubro

Facto nacional de 2018: incúria do Estado

Facto nacional de 2019: novos partidos no Parlamento

Facto nacional de 2020: o vírus que nos mudou a vida

Facto nacional de 2021: vacinação em massa

Figura internacional de 2022

Pedro Correia, 08.01.23

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VOLODIMIR ZELENSKI

Unanimidade quase total este ano: 19 dos 20 autores do DELITO que participaram na votação elegeram como Figura Internacional do Ano o Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski. Do quase anonimato, tornou-se personalidade com ressonância planetária. Daí a nossa homenagem.

Sem qualquer intenção de sermos originais: já a revista Time tinha feito o mesmo

Foi apenas, no fundo, a confirmação do que havia acontecido ao longo de quase todo o ano, com o protagonista da resistência ucraniana a merecer contínuas referências aqui no blogue. Sobretudo desde que viu o seu país invadido pela força bélica russa, a 24 de Fevereiro. 

 

Na justificação do voto, algumas frases merecem ser destacadas. 

«Um verdadeiro herói, além de uma série de outros atributos, tem de ser um herói improvável. Zelenski cumpre todos esses critérios.»

«Líder improvável, mas um líder. Estóico, agitador de consciências, verdadeiro protector do seu povo. Guardião de um patriotismo ameaçado e alvo de tentativas de aniquilação. A sua liderança foi também capaz de tocar a reunir o Ocidente, congregado em torno da causa ucraniana.»

«Não sei o que é mais admirável nele: o sentido do dever? A intrepidez? A fortitude? A inteligência de se rodear das pessoas certas? A visão política? O patriotismo inspirador? A segurança sem arrogância? A capacidade de acção? A improbabilidade de todas estas virtudes misturadas numa só pessoa?»

Às vezes muito pode ser dito também numa simples frase. Como esta, a justificar igualmente a escolha em Zelenski: «Por ter restaurado o conceito de pátria.»

 

Houve ainda um voto isolado no secretário-geral da ONU. António Guterres, por sinal, também mencionado na votação para Figura Nacional do Ano.

Para o Presidente russo, Vladimir Putin, nada.

 

Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange

Figura internacional de 2011: Angela Merkel 

Figura internacional de 2013: Papa Francisco

Figura internacional de 2014: Papa Francisco

Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi

Figura internacional de 2016: Donald Trump

Figura internacional de 2017: Donald Trump

Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro

Figura internacional de 2019: Boris Johnson

Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen

Figura internacional de 2021: Joe Biden

Figura nacional de 2022

Pedro Correia, 07.01.23

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ANTÓNIO COSTA

É um regresso a esta galeria anual do DELITO DE OPINIÃO. O primeiro-ministro já tinha passado por cá em 2015, quando chegou ao poder mesmo sem ter vencido as legislativas. Era o início da geringonça que se manteve durante seis anos: o PS a governar com apoio parlamentar simultâneo de comunistas e bloquistas. 

Em 2022 abriu-se outro ciclo: o PS saiu vencedor incontestado da eleição antecipada, convocada pelo Presidente da República para 30 de Janeiro após a dissolução da Assembleia da República devido ao chumbo do Orçamento do Estado.

Todas as sondagens falharam: os socialistas emergiram das urnas com maioria absoluta. Cento e vinte deputados num total de 230. Foi a segunda vez que superaram a barreira dos 115, após José Sócrates em 2005.

Também com maioria absoluta, António Costa foi escolhido pelo DELITO como Figura Nacional do Ano. Recolheu 11 "boletins" de 20 eleitores - mantendo-se a regra aqui vigente desde o inicio: cada um de nós pode votar em mais de uma figura. Uns pela positiva, outros nem tanto. «O anti-reformador. Pela conquista da maioria absoluta e porque essa conquista confirma-o menos como um gestor de políticas e mais como um gestor da política como meio de conservar o poder, pondo o país refém dele», observou um dos membros da tribo "delituosa".

 

O facto é que o chefe do Governo deixou a larga distância todos os restantes. Desde logo Marcelo Rebelo de Sousa (três votos) e Cristiano Ronaldo (dois).

O mais célebre português do planeta justificou rasgados elogios, como este: «Conseguiu ser o jogador de futebol mais bem pago de sempre. Passar a receber 200 milhões por ano depois da sua péssima prestação no Mundial merece destaque absoluto.» E este: «Para uns desceu do pedestal, para outros caiu. E em torno dele adensou-se aquela nuvem roxa de ressentimento, inveja e azedume tão tipicamente portuguesa.»

 

Seguiram-se votos isolados em António Guterres («tem obtido sucessos na agenda climática»), Fernando Medina, o contribuinte português («apesar de todas as dificuldades nacionais e internacionais, está prestes a bater de novo o seu recorde»), as cientistas Rita Acúrcio, Rita Guedes e Helena Florindo («as três investigadoras portuguesas do grupo de quatro que descobriu uma molécula capaz de estimular o sistema imunitário a combater vários tipos de cancro») e ainda, como triste símbolo nacional, a bebé Jessica («morta às mãos de quem deveria tomar conta dela, em representação do enorme falhanço deste estado social, mas também da indiferença da sociedade»).

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Figura nacional de 2019: D. José Tolentino Mendonça

Figura nacional de 2020: Marta Temido

Figura nacional de 2021: Henrique Gouveia e Melo

Os melhores livros do meu ano (3)

Pedro Correia, 15.02.22

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À medida que os anos passam e as leituras se acumulam, cresce a apetência por revisitarmos obras que nos cativaram em décadas precedentes. Seja no domínio da ficção, seja em qualquer outro ramo literário.

Tem-me acontecido isso. E a tendência acentou-se em 2021, também por causa dos extensos períodos de confinamento vigentes em grande parte deste ano, que deixa poucas saudades. Neste contexto, a literatura tornou-se num passaporte para outras paragens. Mesmo quando existem impedimentos para a viagem física, podemos embarcar sempre na viagem literária.

Foi assim que reforcei o meu gosto pela releitura. Nunca dei o tempo por mal empregue neste reencontro com livros meus amigos. Sem necessitar de máscara ou distanciamento físico - a que alguns imbecis continuam a chamar «distanciamento social», incapazes de perceber a diferença entre uma coisa e outra.

Partilho convosco a lista dos dez melhores livros que fui relendo no ano que terminou: seis romances ou novelas de autores portugueses, dois romances estrangeiros, um ensaio literário e um diário. Por ordem alfabética, mantendo o critério assumido aqui e aqui.

 

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A CIDADE DAS FLORES, de Augusto Abelaira (1959). Lisboa transposta para Florença, no auge do fascismo, em 1939. O autor concebeu este cenário italiano, vinte anos antes, para ludibriar a censura salazarista. É o romance de uma geração confrontada com esta dúvida: ou envolve-se num combate talvez desesperado pela liberdade ou verga-se ao imobilismo.

 

A MISSÃO, de Ferreira de Castro (1954). Admirável novela do criador d' A Selva em torno de um dilema ético vivido numa missão católica em França, durante a ofensiva nazi em 1940. Como devem comportar-se os discípulos de Cristo perante um risco de ataque aéreo? Um padre ousar questionar o seu superior em nome de um bem maior que a segurança.

 

ADEUS, PRINCESA, de Clara Pinto Correia (1985). Em formato policial, um dos melhores romances portugueses da década de 80. Com Beja, Cuba e Baleizão como cenário. Funciona hoje também como documento daquela época num Alentejo que vivia a ressaca da revolução e o declínio da hegemonia comunista antes da entrada de Portugal na CEE.

 

CÂNTICO FINAL, de Vergílio Ferreira (1960). Um pintor, sabendo-se condenado pela doença, recolhe à aldeia natal para concretizar o seu último projecto: decorar uma capela há muito encerrada, onde quer deixar a sua marca artística. Enquanto vai lembrando as etapas mais relevantes da sua vida, dos sonhos da juventude às cicatrizes da idade adulta.

 

CONTA CORRENTE 3, de Vergílio Ferreira (1981). Diário do autor de Aparição que foi muito lido e comentado quando surgiu. Obra inimitável, que assinala o encontro do escritor com camadas mais vastas de leitores, só pode ser hoje encontrada em alfarrabistas. Estranhamente, nunca mais foi reeditada. E não é por falta de qualidade, longe disso.

 

DOMINGO À TARDE, de Fernando Namora (1961). Clarisse, jovem com leucemia prestes a despedir-se da vida, apaixona-se por Jorge, o médico que tenta devolver-lhe a saúde. Namora, que exerceu cínica no Instituto Português de Oncologia, assina aqui um dos seus melhores romances. Que poucos anos depois deu origem a um excelente filme.

 

GUIA PARA 50 PERSONAGENS DA FICÇÃO PORTUGUESA, de Bruno Vieira Amaral (2013). Um dos melhores ensaios literários surgidos na última década. De um escritor que também demonstra ser um leitor atento e meticuloso. Com o mérito acrescido de nos chamar a atenção para obras há muito esquecidas e que merecem ser revisitadas.

 

O BARÃO, de Branquinho da Fonseca (1942). Uma das raras incursões portuguesas na chamada novela gótica, marcada por uma atmosfera de mistério e assombro, que nunca chega a ser desvendada por completo. António José Branquinho da Fonseca foi mestre da ficção curta, mais psicológica do que social. Esta é considerada a sua obra-prima.

 

O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO, de John Le Carré (1963). Mal foi publicado, tornou-se um clássico instantâneo. Cada vez mais revalorizado à medida que o tempo passa. Ponto cimeiro de um subgénero na literatura de espionagem - a que traça um retrato impiedoso dos meandros da Guerra Fria. Com o sinistro muro assombrando a noite de Berlim.

 

SAYONARA, de James Michener (1954). Singular romance sobre o Japão ocupado por forças dos EUA nos anos subsequentes à II Guerra Mundial, quando outro conflito bélico já se desenrolava, na península da Coreia. Neste cenário, um oficial norte-americano envolve-se com uma actriz nipónica. Desafiando convenções e preconceitos atávicos.

Os melhores livros do meu ano (2)

Pedro Correia, 14.02.22

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Como referi anteriormente, há muitos anos que não lia tantos livros. Este biénio marcado pela pandemia, tanto em 2020 como em 2021, devolveu-me aos dias da adolescência em matéria de leituras. Se há males que vêm por bem, este foi um deles.

Cada vez tenho menos dúvidas: ler é a actividade intelectual que mais nos permite contrariar tendências dominantes, rejeitar o espírito de rebanho ou alcateia e mergulhar na subjectividade - no fundo, aquilo que nos diferencia dos restantes mortais. A literatura faz-nos viajar a qualquer momento no tempo e no espaço, abrindo-nos horizontes de toda a espécie. Graças a ela, ficamos a saber o que nos antecedeu e a conhecer a face oculta do que nos rodeia. E passamos até a ser iluminados sobre nós próprios.

Ontem destaquei aqui dez obras entre as cem completas que pude ler no ano passado. Hoje trago outras dez, mas só de autores estrangeiros: sete romances ou novelas, uma biografia, um ensaio satírico e um volume de crónicas memorialísticas. Alinhados também por ordem alfabética, para maior facilidade de consulta.

 

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A LARANJA MECÂNICA, de Anthony Burgess (1962). Poderosa distopia situada num futuro talvez mais próximo do que possamos imaginar. Trabalho notável também ao nível da linguagem: Burgess criou dezenas de neologismos que serviam de senha aos jovens delinquentes, violentos por natureza num Estado destituído de princípios morais.

 

A PRAGA ESCARLATE, de Jack London (1912). Como sobreviverá o ser humano num mundo apocalíptico? London morreu muito antes da bomba atómica, mas pressentiu um vírus letal com efeitos pandémicos nesta novela que nos fala do fim da civilização e do regresso do homem ao estado de natureza mais selvagem. Obra-prima, no tema e no estilo.

 

A REBELIÃO, de Joseph Roth (1924). Um olhar realista e sem complacência sobre a ruína social que submergiu a Europa nos anos subsequentes à I Guerra Mundial. Tendo como protagonista um antigo combatente austríaco mutilado no conflito que passa a lutar pela sobrevivência diária. Num outro combate, ainda mais implacável do que o anterior.

 

HEMINGWAY EN CUBA, de Norberto Fuentes (1984). Uma das melhores biografias do autor de Adeus às Armas, centrada nas duas décadas em que se radicou numa quinta a 15 km de Havana e da qual só saiu pouco antes de Fidel Castro proclamar a sinistra divisa «socialismo ou morte». Uma obra lamentavelmente inexistente em português.

 

O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA, de Gabriel García Márquez (1985). Talvez o melhor romance do talentoso autor colombiano, à época já galardoado com o Nobel da Literatura. Uma atribulada história de amor que resistiu a todas as vicissitudes e todas as tempestades, comprovando que o fracasso pode ser só uma palavra no dicionário.

 

O CONSERVADOR, de Nadine Gordimer (1974). Meticulosa digressão ao quotidiano dos anos de chumbo do apartheid, numa África do Sul já condenada pela comunidade internacional mas que teimava em resistir aos «ventos da História». Quando um próspero proprietário rural branco se viu abandonado pela própria filha, avessa ao regime racista.

 

O REI FAZ VÉNIA E MATA, de Herta Müller (2003). Galardoada em 2009 com o Nobel da Literatura, esta escritora nascida numa comunidade germânica da Roménia sentiu na pele a repressão da ditadura comunista de Ceausescu. Fala-nos dessa amarga experiência nesta estimulante colectânea de crónicas e pequenos ensaios autobiográficos. 

 

OS TEUS PASSOS NAS ESCADAS, de Antonio Muñoz Molina (2019). Pode haver um romance português de um escritor espanhol? Sim. Eis a prova, nesta admirável declaração de amor a Lisboa, que já tinha figurado numa das suas primeiras obras. Cidade-refúgio num mundo assombrado pelas catástrofes climáticas e pelo terrorismo global.

 

SEMENTES DE VIOLÊNCIA, de Evan Hunter (1954). Um dos melhores romances sobre a delinquência juvenil, aqui centrada numa escola pública de um bairro pobre de Nova Iorque e nos desafios que coloca a um professor no início da profissão. Adaptado no ano seguinte ao cinema, com merecido êxito de público e de crítica.

 

WOKE, de Titania McGrath (2019). Demolidora denúncia do extremismo liberticida que vai lançando anátemas, impondo dogmas e ditando a censura em nome da correcção política. Titania é personagem inventada pelo comediante britânico Andrew Doyle, que ridiculariza o sectarismo destes novos talibãs que tudo querem proibir.

Os melhores livros do meu ano (1)

Pedro Correia, 13.02.22

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Já vem tarde, mas creio que ainda chega a tempo. Faço um balanço das minhas leituras feitas em 2021, Ano II da Pandemia, muito marcado pela imobilidade forçada, e que, entre as raras compensações, me permitiu usufruir de mais horas dedicadas à leitura. Como num regresso tardio à adolescência, quando tinha tempo para tudo - incluindo para devorar qualquer livro que me chegasse às mãos.

Tal como no ano anterior, em 2021 consegui ler cem livros completos. Dos mais diversos géneros, mas bastante centrados na literatura portuguesa de ficção do século XX - para tentar dar corpo a um projecto que gostaria de ver materializado em ensaio literário. Não custa tentar, veremos no que dá.

 

Também à semelhança do que já sucedera em 2020, dediquei mais tempo à leitura do que ao cinema, contrariando um hábito há muito enraizado. Nos dias que correm, os filmes interessam-me bastante menos. Porque já vi grande parte do que gostaria de ver - incluindo a esmagadora maioria dos clássicos da Sétima Arte. E também porque nada me atrai hoje na chamada "indústria cinematográfica", precisamente a que domina os circuitos de exibição e comercialização. 

Como acontece com vários dos meus leitores, julgo, vi muito mais séries do que filmes. Não apenas nos canais por cabo mas numa das principais plataformas dedicadas ao género, a Netflix, de que sou assinante periódico. Mas também aqui é necessário peneirar bastante: a maioria da oferta não me agrada. 

 

Tenciono falar delas um dia destes. Agora venho partilho convosco o balanço das leituras, na expectativa de vos deixar sugestões úteis.

Durante três dias, revelarei aqui a lista dos dez melhores destes cem, multiplicada por três: a primeira, já de seguida, respeitante só a autores portugueses. Amanhã virão os autores estrangeiros. Depois de amanhã, recordo os dez que mais gostei de reler. Títulos sempre acompanhados por duas ou três frases sobre cada obra.

Cada lista fica por ordem alfabética. Podia ter sido outro o critério, mas prefiro este.

 

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A CAPITAL, de Eça de Queiroz (1925). Um dos romances menos conhecidos do autor d' Os Maias. E um dos mais cáusticos. Obra póstuma, escrita ainda na juventude, inclui já quase todos os temas dominantes no imaginário de Eça. Com uma personagem inesquecível: Artur Corvelo, homem que tenta tudo para subir na vida. Podia ser hoje.

 

A TORRE DA BARBELA, de Ruben A. (1964). Genial cruzamento dos romances de cavalaria com histórias de fantasmas e folhetins românticos, tudo polvilhado com sátira inteligente e diálogos surrealistas, numa espécie de revisitação burlesca da História de Portugal. Obra-prima de um autor desaparecido demasiado cedo. 

 

ANDANÇAS DO DEMÓNIO, de Jorge de Sena (1960). Mais conhecido como poeta e ensaísta, Sena foi igualmente magnífico prosador. Em formato longo, legando-nos o romance Sinais de Fogo, e também em pequenas mas marcantes narrativas. Este volume comprova-o em contos como "História do Peixe-Pato" e "A Janela da Esquina".

 

ERNESTINA, de J. Rentes de Carvalho (1998). Memórias? Crónica novelesca? Romance de não-ficção, ao jeito de Truman Capote? Pouco importam as etiquetas. Aqui estamos perante literatura digna de quadro de honra. Que é também um retrato impressivo e vívido de um Portugal que muitos não conheceram e já poucos recordam.

 

FELIZMENTE HÁ LUAR!, de Luís de Sttau Monteiro (1961). Teatro é para ver representado em palco, não para ler. Mas, quando o texto tem qualidade, até resulta em leitura proveitosa. É o caso deste drama em dois actos, centrado na execução do general Gomes Freire de Andrade em 1817 - símbolo de outras injustiças e outros tempos de opressão.

 

ÍNDICE MÉDIO DE FELICIDADE, de David Machado (2013). Um dos mais estimulantes romances portugueses surgidos na última década. Muito influenciado pelos road movies, transporta-nos por estrada de Lisboa a Barcelona na companhia de um heterogéneo grupo de amigos e conhecidos. Comovente e divertido: vale a pena seguir viagem com eles.

 

O ESPLENDOR DE PORTUGAL, de António Lobo Antunes (1997). Fulgurante romance que estabelece uma espécie de rima interna com uma das primeiras obras do autor, Os Cus de Judas. Também com Angola como cenário. Mas aqui fala-se de civis, não de militares. E das marcas que a descolonização deixou. Sem temores nem tabus.

 

O MILAGRE SEGUNDO SALOMÉ, de José Rodrigues Miguéis (1975). Injustamente esquecido, é um dos grandes textos de ficção do nosso século XX. Grande em vários sentidos - a começar no número de páginas, cerca de 700. Do final da monarquia ao início da ditadura pós-28 de Maio, com alusões óbvias a Fátima. Merece ser lido e divulgado.

 

O RETORNO, de Dulce Maria Cardoso (2011). Angola, de novo. Na perspectiva de adolescentes que lá nasceram e se viram forçados a embarcar para a distante Lisboa fugindo ao morticínio na Luanda de 1975, pré-independência. Os chamados "retornados". Será possível retornar a um lugar onde nunca se viveu? 

 

TERRAS DO DEMO, de Aquilino Ribeiro (1919). Um dos primeiros e melhores romances de mestre Aquilino, um dos nossos mais inconfundíveis prosadores. Em páginas que nos transportam ao esquecido Portugal do interior serrano, onde as paixões mais primárias e superstições de todo o género andavam à solta, longe de qualquer verniz citadino.

Frase nacional de 2021

Pedro Correia, 15.01.22

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«Já posso ir ao banco?»

António Costa para Ursula von Der Leyen, 16 de Junho

(eleita por maioria, pelo DELITO DE OPINIÃO)

 

Também mereceram destaque estas frases:

 

«Tenho um excelente ministro da Administração Interna e vivo muito bem com o senhor ministro da Administração Interna.»

António Costa, justificando a manutenção de Eduardo Cabrita no Governo (Maio)

 

«Estou irritantemente optimista.»

Marcelo Rebelo de Sousa, sugerindo que as medidas de restrição impostas pela pandemia iriam ser suavizadas (Julho)

 

«Vejam o parolo que sou.»

Augusto Santos Silva, demarcando-se de Sócrates, com quem trabalhou durante anos (Maio)

 

«Não há vidas insignificantes nem vidas menos importantes. Somos todos seres humanos.»

Gouveia e Melo, ao receber um Globo de Ouro na SIC (Outubro)

 

«Nunca haverá um governo de direita se o BE o puder impedir.»

Catarina Martins, na ressaca do chumbo do Orçamento em que votou com a direita (Novembro)

 

«Eu sou o passageiro.»

Eduardo Cabrita, sobre o atropelamento mortal de um trabalhador pela sua viatura oficial (Dezembro)

 

«O azar de Rendeiro foi haver eleições em Janeiro.»

Rui Rio, numa crítica à Polícia Judiciária que quase ninguém entendeu (Dezembro)

 

«Fiz mal em ir para o Governo, perdi uma fortuna incalculável.»

Manuel Pinho, tentando - sem sucesso - puxar à lágrima em entrevista ao Expresso (Dezembro)

 

«Temos de ir jogo a jogo.»

Rúben Amorim, treinador campeão pelo Sporting ao fim de 19 anos (Dezembro)

 

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Frase nacional de 2010: «O povo tem de sofrer as crises como o governo as sofre.»

(Almeida Santos)

Frase nacional de 2011: «Estou-me marimbando para os nossos credores.»

(Pedro Nuno Santos)

Frase nacional de 2013: «Com a apresentação do pedido de demissão, que é irrevogável, obedeço à minha consciência e mais não posso fazer.»

(Paulo Portas)

Frase nacional de 2014: «Sinto-me mais livre que nunca.»

(José Sócrates)

Frase nacional de 2015: «Temos os cofres cheios.»

(Maria Luís Albuquerque)

Frase nacional de 2016: «Já avisei a famíia que só volto no dia 11 [de Julho] e vou ser recebido em festa.»

(Fernando Santos)

Frase nacional de 2017: «Este ano foi um ano particularmente saboroso para Portugal.»

(António Costa)

Frase nacional de 2020: «Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?»

(Ferro Rodrigues)