Distúrbios nas ruas
Parece que ontem à noite não houve batatada em alguns bairros pobres de Lisboa, como nos últimos dias.
Os distúrbios já originaram, à altura em que escrevo, um morto por um polícia e um ferido gravíssimo por desordeiros incertos, além de outros feridos ligeiros incluindo polícias, destruição de bens, incluindo alguns automóveis, num caso conhecido e certamente noutros pertencente a gente pobre que os estavam a pagar com esforço. E pela televisão vemos o espectáculo de autocarros e depósitos de lixo a arder, e uma multidão de encapuçados a correr para cá e para lá. Portugal está realmente moderno, ai, estas coisas costumavam ser lá para Marselha, ou Paris, ou várias cidades inglesas ou suecas.
Sucedem-se na televisão, nos jornais e nas redes, os debates. E, previsivelmente, de um lado temos os gritos de racismo, desigualdade, abusos policiais, falta de investimento, guetização e à volta de mais 17 problemas que ficariam resolvidos se a verdadeira esquerda mandasse no país, ou ao menos continuasse a mandar a esquerda assim-assim; e, do outro, apelos à calma, à serenidade e à confiança na polícia, que de racista tem talvez alguma coisa, mas não muito. Alguns. Porque o Chega concorda com os reformados do meu café, que no essencial acham que varrendo a “rascaria” a tiro o problema acaba e que lá o outro preto que morreu se ia a fugir por alguma coisa seria.
É provável que os “meus” reformados não sejam uma amostra representativa da classe nem, muito menos, do país. Mas é certo que o discurso assente na violência institucional para lidar com a violência da rua, sem nenhuma ponderação fria de circunstâncias e dos valores em presença, dos quais a vida é o supremo, é muitíssimo mau conselheiro.
Um deputado buldogue do Chega disse na TV que se a polícia atirasse a matar haveria mais ordem nas ruas, esclarecendo porém com bondade que nenhum polícia atira a matar sem razões (falo de cor, não tenho paciência para procurar as declarações exactas do bruto).
Já anteriormente Ventura havia declarado, a propósito do agente que baleou mortalmente um homem na Cova da Moura, na segunda-feira, que "devia ser louvado, não devia ser perseguido".
Ao que se sabe, o incidente está a ser investigado, como tem de ser. E neste passo dispenso-me de enumerar as razões porque assim tem de acontecer porque quem subscreve aquele ponto de vista acha que há vidas humanas que podem ser ceifadas sem que haja necessidade de apurar as respectivas razões desde que o autor da morte seja um polícia. Isto é bárbaro e primário. Ventura bárbaro talvez não seja, mas oportunista sim – está aqui o excelente cavalo do bom cidadão que vou cavalgar para espadeirar contra o inimigo da Lei e da Ordem, cortando-lhe a cabeça, quer tenha quer não tenha carapinha.
É no que estamos – dois campos aguerridos, que se vão manifestar no próximo Sábado.
Ambos têm o direito de se manifestarem. E ambos fariam melhor em não o fazerem porque daí não virá qualquer bem.
O principal veneno nestes casos são as trincheiras e os parti-pris. Não é "a polícia", é um polícia; não é um imigrante, é um cidadão; não são "imigrantes em protesto" (os que têm andado a escavacar tudo), são desordeiros e criminosos, a tratar como tal, sendo que o “tal” não requer assassinatos. Se pusermos de lado categorizações genéricas fica tudo mais fácil. E uma das categorizações a que menos se deveria recorrer é a de racismo. Porque o racismo não interessa verdadeiramente a quem o invoca senão como arma retórica de arremesso, pelo que não se combate com labéus, mesmo que com algum fundamento, antes com casos concretos provados ou fundamentados.
Algum bem terá vindo destes tumultos. O país acordou para a falta de meios da polícia, por exemplo tasers (que possivelmente teriam evitado esta morte) e bodycams (que facilitam a apreciação de acusações de abusos policiais ou, ao contrário, sustentam acusações policiais). Disto e da falta de condições das instalações e da vida dos agentes, assim como da existência sacrificada da maioria dos residentes naqueles bairros, os que trabalham e não as minorias que se dedicam ao tráfico ilícito e à ociosidade, para as razões da qual sociólogos e assistentes sociais encontram penetrantes razões.
Tirando a solução das extremas-esquerdas, que à boleia das profundas assimetrias entre bairros pobres e os outros defendem uma nova sociedade que generalizaria a pobreza, e a da extrema-direita parlamentar que acha que o agravamento das molduras penais e o reforço dos poderes das polícias matariam no ovo a ameaça destes tumultos, restam remendos que melhorem um pouco a vida daquelas pessoas, lhes diminuam a segregação e facilitem a integração.
Sugestões desses remendos há. Tentativas de os pôr em prática não tem havido.
E é disto que precisamos, não de uma varinha de condão que faça correr o leite e o mel no Zambujal ou na Cova da Moura. Porque não existe.