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Delito de Opinião

Do meu baú (6)

Pedro Correia, 09.02.21

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É sempre arriscado fazer previsões no jornalismo. E muito mais sobre os destinos da Igreja Católica, que são por natureza insondáveis, tais como os do Pai Eterno. Exemplo? Aqui está ele: veio publicado na primeira página do Expresso e transmitia uma certeza inabalável aos leitores «João Paulo II vai abdicar». Nem uma interrogação, sempre defensiva nestes casos, nem um daqueles verbos auxiliares - como poder ou admitir - que se utilizam para suavizar arestas quando a convicção está longe de ser absoluta. 

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A "notícia" - chamemos-lhe assim - veio estampada na primeira página daquele semanário, a 26 de Março de 1994. E baseava-se numa única "fonte" - chamemos-lhe assim também - identificada como tal: o correspondente no Vaticano da revista católica espanhola Vida Nueva. «O jornalista refere que destacadas figuras do aparelho do Estado da Santa Sé apontam mesmo alguns problemas clínicos com que o Papa se debate, como a falta de irrigação cerebal [sic] e células cancerígenas», escrevia o conceituado periódico. Acrescentando: «De facto, ultimamente João Paulo II tem vindo a perder vivacidade nas aparições públicas, desde que sofreu o atentado a tiro na Praça de S. Pedro, no dia 13 de Maio de 1981, que lhe atingiu o abdómen, e que o obrigou a diversas intervenções clínicas». 

O referido atentado, note-se, ocorrera quase 13 anos antes. E João Paulo II, apostado em contrariar o Expresso, manter-se-ia mais 11 anos sentado no trono de Pedro, terminando o seu pontificado não por renúncia mas por morte natural, a 2 de Abril de 2005. Aliás, depois desta bombástica "revelação" da primeira página, ainda visitou 47 países (incluindo a sua célebre deslocação a Cuba, em 1998, e a não menos badalada viagem a Fátima, em 2000, para a beatificação dos pastorinhos), publicou quatro encíclicas e divulgou oito exortações apostólicas

Falta acrescentar que a Santa Sé nem se deu ao incómodo de desmentir o Expresso. A História encarregou-se disso.

Do meu baú (5)

Pedro Correia, 08.02.21

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Se há exercício no jornalismo que se aproxima da quiromancia ou da cartomância, é este de predizer o futuro. O Expresso gosta de praticá-lo, a cada final de ano. É um pouco como praticar trapézio sem rede - embora as respostas surjam em regra muito arredondadas, para nelas caber tudo e o seu contrário, o que facilita de algum modo a tarefa.

Mas o que por vezes mais interessa são as perguntas. Repare-se na questão n.º 9 destas «100 perguntas para 2020» dadas à estampa na edição de 28 de Dezembro de 2019 daquele semanário. Uma questão afinal desdobrada em duas, sobre um tema sem a menor relevância neste mês de Fevereiro de 2021: «Joacine sai do Livre? E do Parlamento?» Poderá isto interessar a alguém excepto à própria deputada?

O jornal responde não respondendo, como acontece na grande maioria dos temas que aqui suscita: «A palavra à deputada Joacine.» Assim é demasiado fácil: qualquer um é capaz de escrever o mesmo.

 

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Os temas dividem-se em blocos que muito nos indicam sobre a hierarquia noticiosa do Expresso: política, sociedade, mundo, desporto e cultura. A economia está ausente porque foi tratada em local próprio, já aqui lembrado.

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No segundo bloco, destaque para dois temas relacionados com o SNS. Eis uma questão: «As urgências vão continuar a dar problemas?» Como hoje sabemos, raros assuntos estiveram tão em foco como este ao longo do ano que passou. Aqui o jornal não foge à questão, respondendo desta forma: «O atendimento de doentes urgentes será sempre o problema agudo do sistema de saúde. Com a saída de médicos (para a reforma, privados ou estrangeiro) as equipas do SNS não chegam para a procura e é utópico pensar que um dia irão chegar.» Isto porque - menciona-se na resposta à pergunta seguinte, a n.º 23 - «as condições de trabalho na rede pública - edifícios e equipamentos obsoletos, horários sobrecarregados, progressões congeladas e baixos salários, por exemplo - não irão mudar o suficiente para devolver atractividade ao SNS.»

E ainda ninguém adivinhava o que iria passar-se.

 

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Algumas perguntas, face ao sucedido, perderam razão de ser. Esta, por exemplo: «A selecção portuguesa irá revalidar o título europeu?» A resposta, como quase todas, vem arquitectada num estilo que permite diversas leituras no fim do ano. Mas neste caso não havia fuga possível: não chegou a acontecer o Campeonato da Europa de Futebol, tal como não ocorreram os anunciados Jogos Olímpicos de Tóquio.

Ou esta, pergunta n.º 85: «O concerto do ano vai ser o dos Faith No More?» Na resposta, dava-se como garantido que o regresso desta banda «irá consumar-se no festival NOS Alive». 

Como hoje sabemos, tudo ficou adiado para 2021. Se não chover.

 

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Ao nível ambiental, o Expresso não hesita em profetizar que «os episódios de seca tendem a ser mais extensos e intensos devido às alterações climáticas», registando-se nomeadamente «menos chuva». Podemos queixar-nos muito do sucedido em 2020, mas não da progressão da seca, pelo contrário: há muitos anos que o guarda-chuva e os impermeáveis não eram tão indispensáveis por cá.

Relacionada de algum modo com esta, surgia a pergunta n.º 71: «Greta vai entrar na política?» Assim, de repente, deixaria hoje vários leitores confundidos: é que esta activista sueca, tratada com tanta familiariedade pelo nome próprio, andou praticamente desaparecida ao longo de 2020 - e assim tem continuado nestes quase 40 dias de 2021. O Expresso proclamava-a «ícone de uma geração», com manifesto exagero. Porque, infelizmente, esta não se tornou a Geração Greta: tornou-se a Geração Covid.

 

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Tendo sido 2020 marcado pela pandemia do novo coronavírus, que causou mais mortos portugueses do que as guerras que travámos em África entre 1961 e 1974, pela queda mais abrupta alguma vez registada no PIB nacional, por dez inéditos estados de excepção e longas semanas de confinamento forçado, aliás ainda sem fim à vista, isto demonstra como são fúteis estes exercícios de jornalismo: entretêm alguma coisa, mas informam quase nada.

Repare-se só, a título de exemplo final, na pergunta n.º 98, em que o Expresso responde de algum modo em ca(u)sa própria: «A SIC vai consolidar a liderança nos canais generalistas?»

Resposta: «É provável que sim. (...) Tem vindo a reforçá-la ao longo dos meses, deixando o canal público e a estação de Queluz de Baixo para trás. Cristina Ferreira tornou-se num activo estratégico para o canal, mas os números provam que não é o único.»

Cristina Ferreira - «activo estratégico» da SIC em Dezembro de 2019 e hoje accionista e directora da TVI - confirma que o melhor mesmo é os jornalistas deixarem a quiromancia para os quiromantes. 

Do meu baú (4)

Pedro Correia, 20.10.20

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É sempre arriscado fazer previsões para o ano que vai seguir-se. Sobretudo quando a bola de cristal está embaciada.

Razões acrescidas para felicitar o risco corrido por quem escreveu e editou o último suplemento de 2019 do semanário Expresso. Parecia um exercício de trapézio sem rede - e era mesmo.

Mal havia decorrido o primeiro trimestre do ano em curso e já muitas previsões estavam estilhaçadas.

 

O prestigiado periódico não fez a coisa por menos, substituindo a prudência jornalística alicerçada em factos por exercícios de adivinhação, submetidos ao mote 50 perguntas para 2020.

Tentando responder a esta questão de âmbito mais genérico: «O que vai acontecer em Portugal e no mundo do ponto de vista económico ao longo do próximo ano?»

Selecciono aqui algumas dessas previsões:

- «Em 2020 perfila-se margem para [o turismo] crescer em valor.»

- «A segurança, o clima, a gastronomia e sobretudo a simpatia das pessoas irão continuar a cativar estrangeiros de várias origens e também para a compra de casas.»

- «Tudo indica que os salários vão subir.»

- «O Estado vai ter excedente [financeiro] se a economia crescer acima de 3% em termos nominais.»

- «A Alemanha não vai entrar em recessão.»

- «Outras cidades poderão seguir o caminho de Lisboa ou do Porto, que fixaram este ano limites [ao alojamento local] nas suas zonas históricas.»

- «Por vontade do Governo, sim, mas logo se verá [se começa a construção do aeroporto do Montijo].»

 

Relendo hoje o suplemento, datado de 28 de Dezembro de 2019, parecem ter passado longos anos - e não apenas dez meses.

Começando logo pela manchete: «Classe média resistiu à crise».

 

Outros títulos da mesma edição:

- Preços sobem menos que salários no próximo ano

- Três anos para mudar Coimbra, do Choupal até à Lapa

- Há 3964 imóveis à venda no arquipélago dos Açores

- Six Senses investe 10 milhões no luxo

- Há cada vez mais pessoas a viajar e Hong Kong está no topo

 

Mas valha a verdade: nem todas as previsões do Expresso saíram furadas. Esta ampla antevisão de 2020 vaticinava, com acerto, que continuaríamos a pagar "buracos" na banca e que a guerra comercial China-EUA prosseguiria.

Prognósticos que até o conceituado Professor Karamba seria capaz de ter emitido. Em 2019 ou noutro ano qualquer.

 

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Do meu baú (3)

Pedro Correia, 02.07.20

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Sou coleccionador compulsivo das entrevistas de falsos profetas. Sobretudo aqueles que profetizam desgraças e calamidades. Um dos mais simpáticos dentro do género, devo reconhecer, é João Ferreira do Amaral «economista conceituado», como o introduz Clara Ferreira Alves na entrevista (insolitamente apresentada como "almoço") que assinou com ele na revista do Expresso, edição de 4 de Maio de 2013

O título de capa é um daqueles que vendem sempre bem: «Vamos sair do euro.» Assim mesmo, neste tom categórico, sem margem para dúvida.

Como se fosse pouco, lá dentro (página 37) a certeza torna-se ainda mais indubitável: «É claro que vamos sair do euro.»

 

«Num restaurante de Lisboa com vista larga sobre o rio, pediu cabrito assado com batatas. Água. Mais nada. Fala dos assuntos com a voz desapaixonada do técnico e do conhecedor.» Assim alude a ele a jornalista, em prosa quase poética, sem disfarçar o deslumbramento pelo entrevistado: «Lê-lo é um exercício de clareza e de esclarecimento, e tem razão em muitas coisas que aponta. A saída deverá ser controlada para não ser traumática, e será um benefício para a economia. Portugal continuaria na União Europeia e no espaço Schengen. A história já lhe deu razão em quase tudo.»

Caramba, é difícil um simples leitor não se sentir esmagado com tanta sapiência. Tudo isto nos parágrafos de entrada, ainda sem termos acesso ao pensamento do entrevistado. 

 

«Não ponho sequer a alternativa de ficarmos», debita o professor, que trabalhou no Palácio de Belém, entre 1991 e 1996, como consultor de Mário Soares. E nem seria necessário convocar os portugueses para referendar tão relevante opção política. Motivo? «Visto que não entrámos com um, não há razão para precisarmos de um para sair.»

Possíveis consequências, para o País, de uma "saída ordeira" da moeda única? Hipótese desenvolvida num trecho da entrevista: «Seria o cenário argentino. Teríamos dois anos infernais e depois resolvia-se. O pior são os dois anos, do ponto de vista democrático. A violência, a bandidagem...» E noutro trecho: «Vejo imensos [riscos]. Pode correr mal. Pode gerar-se um pânico.»

 

Sete anos depois, ao revisitarmos este ameno bate-papo, ficamos esmagados com tanta acutilância e tanta presciência daquele a quem «a história já deu razão em quase tudo».

Fez bem, de qualquer modo, o Presidente Soares em não ter seguido os conselhos deste seu sábio consultor.

Do meu baú (2)

Pedro Correia, 29.06.20

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As crises, à partida, são péssimas. Mas em jornalismo são óptimas: ficam sempre bem em qualquer manchete. Sobretudo quando surgem com a vaga avassaladora da que foi desencadeada pelo colapso do centenário Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento dos EUA. Uma queda que provocou um abalo à escala planetária, bem revelador da fragilidade dos circuitos económicos do mundo contemporâneo.

No dia seguinte, 16 de Setembro de 2008, a manchete do DN dizia quase tudo em apenas cinco palavras: «A pior crise desde 1929». Foi preciso aguardar oito décadas - e haver uma guerra mundial de permeio - para ocorrer uma derrocada financeira comparável à da tristemente célebre queda da Bolsa novaiorquina que mergulhou os EUA numa década de depressão. 

Consequências para o nosso país? Não havia problema, apressou-se a garantir a nossa suprema autoridade financeira, então gerida pelo inefável Vítor Constâncio: «Em Portugal, a exposição ao Lehman não é significativa, segundo o Banco de Portugal», lia-se na última frase do texto que acompanhava esta manchete.

Lá dentro, na página 7, outra declaração igualmente tranquilizadora: «Estamos a avaliar, mas a nossa exposição ao Lehman Brothers é absolutamente módica, muito pouco expressiva.» De um tal Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo, esse admirável modelo de sagacidade e lisura.

Do meu baú (1)

Pedro Correia, 28.06.20

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Se há manchetes que me fazem sorrir é esta. «Túnel debaxo do Tejo entre Beato e Montijo», titulava o Diário de Notícias a 2 de Agosto de 2007. Prevendo já a chamada "terceira travessia" em Lisboa do maior rio português, com base no estudo de avaliação do empreendimento encomendado pela Confederação da Indústria Portuguesa. Segundo esta notícia - publicada vai fazer 13 anos - a travessia, «através de túnel ou ponte», iria situar-se no eixo Beato/Montijo, «em alternativa à [suposta] travessia entre Chelas e Barreiro, permitindo oferecer melhores acessos, sobretudo ferroviários, a um futuro aeroporto naquele local». O estudo resultou da encomenda a um «consultor internacional» cuja entidade não era revelada. 

O primeiro-ministro, à época, era José Sócrates. Que também figurava nesta capa do jornal, em notícia com menor destaque, sob o título «Curso de Sócrates livre de ilegalidades»: a Procuradoria-Geral da República acabara de arquivar um inquérito à licenciatura do chefe do Governo, concluindo que «não houve tratamento de favor».