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Delito de Opinião

A final

Paulo Sousa, 01.06.24

“O rei David disse: «Chamem-me o sumo-sacerdote Sadoque, o profeta Natan, e Benaías, filho de Joiadá.» Eles vieram então à presença do rei.  Disse-lhes o rei: «Tomai convosco os servos de vosso senhor; fazei montar o meu filho Salomão na minha própria mula e fazei-o descer a Guion. Ali será ungido pelo o sacerdote Sadoc e pelo profeta Natan como rei de Israel; vós tocareis a trombeta e exclamareis: «Viva o rei Salomão.» Vós subireis após ele; ele virá sentar-se no meu trono e reinará depois de mim; é a ele que eu estabeleço para ser chefe sobre Israel e Judá.”

Primeiro Livro dos Reis, 1:32-35

 

Esta passagem bíblica inspirou Haendel na sua peça Zadok the Priest (Sadoque o sumo-sacerdote), que é um dos seus hinos de coroação. Desde 1727, ano da coroação do Rei Jorge II de Inglaterra, que é entoado nas coroações de todos os monarcas britânicos. E voltou a ser ouvido em 2023 na coroação do Rei Carlos.

Em 1992, a UEFA encomendou ao compositor britânico Tony Britten uma peça musical para a qual os jogadores alinhariam antes do jogo, tal e qual como acontece nos jogos internacionais de selecções. Tony Britten inspirou-se em Haendel, e no seu Zadok the Priest para o hino da Champions League. A adaptação, rearranjo, ou recriação, de Britten é bem conhecida de todos.

Os juvenis da equipa de futebol da minha terra ouvem-no no balneário a partir de um telemóvel no volume máximo antes de cada jogo.

E hoje às 20:00, a partir do estádio do Wembley em Inglaterra, o hino da Champions League vai ser novamente entoado e ouvido por milhões de pessoas em todo o mundo. Algures, como que ocultos por entre os acordes, lá estarão os reis David e Salomão, o sumo-sacerdote Sadoque, o génio de Haendel e a mestria de Tony Britten.

Direito por linhas tortas

Pedro Correia, 15.06.14

 

“Os últimos serão os primeiros.” Quem não usou já esta expressão? O que poucos sabem é que se trata de uma frase bíblica – vem no Evangelho Segundo São Mateus (19-30) e no Evangelho Segundo São Lucas (10-31).

Inúmeras expressões que utilizamos neste quotidiano laico e secular, tal como a maioria dos nossos nomes próprios, têm a sua origem no livro sagrado do cristianismo. Expressões tão vulgares e tão diversas como “a carne é fraca” (São Mateus, 26-41, e São Lucas, 14-38), “ninguém é profeta na sua terra” (Evangelho Segundo São João, 4-44), “lançar pérolas a porcos” (São Mateus, 7-6), “nem só de pão vive o homem” (Deuteronómio, 8-3, e São Mateus, 4-4), “quem semeia ventos colhe tempestades” (Oseias, 8-7), “meter foice em seara alheia” (Deuteronómio, 23-26), “dois pesos e duas medidas” (Provérbios, 20-10), “separar o trigo do joio” (São Mateus, 13-30) e “olho por olho, dente por dente” (Êxodo, 21-24, Deuteronómio, 19-21).

 

De facto, a nossa linguagem comum está cheia de expressões colhidas na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o que se confirma também nestes exemplos, que estão muito longe de ser exaustivos: “bode expiatório” (Levítico, 9-15), “dia da ira (Sofonias, 1-13), “choro e ranger de dentes” (São Mateus, 8-12, 13-42, 22-13, 24-51), “pedra sobre pedra” (São Lucas, 13-2), “voz no deserto” (São João, 1-23). Ou ainda as designações “sal da terra” e “luz do mundo”, popularizadas no Sermão da Montanha e que originaram, respectivamente, o título de um célebre filme de Herbert Biberman e um dos melhores contos de Ernest Hemingway.

E quem não conhece as expressões “crescei e multiplicai-vos” (Génesis, 1-22 e 1-28), “nada há de novo debaixo do sol” (Livro do Eclesiastes, 1-9), “lobos disfarçados de cordeiros” (São Mateus, 7-15) ou “lavar as mãos como Pilatos” (São Mateus, 27-24)? Ou adágios tão conhecidos como “ninguém pode servir a dois senhores” (São Mateus, 6-24), “pelos frutos se conhece a árvore” (São Mateus, 7-20 e 12-33), “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (São Mateus, 22-21, Evangelho Segundo São Marcos, 12-17 e São Lucas, 22-21) e “quem estiver sem pecado que atire a primeira pedra” (São João, 8-7)?

 

A Bíblia é ainda um riquíssimo viveiro de aforismos que nada têm a ver com o “manual de maus costumes” de que falou José Saramago para promover o seu romance Caim. Aqui ficam alguns: “A maldade é a mãe da fome” (Tobias, 4-13), “a sabedoria vale mais que as pérolas” (Livro de Job, 28-18), “quem ama a violência odeia-se a si mesmo” (Os Salmos, 11-5) ou “o que perturba a sua casa herdará ventos” (Provérbios, 11-29). Este deu origem ao título de uma excelente longa-metragem de Stanley Kramer, protagonizada por Spencer Tracy.

Na verdade, não é possível compreendermos grande parte do último milénio da arte ocidental, nas suas mais diversas expressões, sem conhecermos a Bíblia. Isto inclui os próprios livros de Saramago, como O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Afinal “Deus escreve direito por linhas tortas” (Génesis, 50-14).

Passos Coelho e a Bíblia.

Luís Menezes Leitão, 18.01.13

 

Passos Coelho disse há dias que o relatório do FMI não era a sua Bíblia, mas acaba de citar a verdadeira Bíblia quando diz que o actual Estado Social tem pés de barro. Aqui temos o capítulo II do Livro de Daniel sobre o sonho do Rei da Babilónia Nabucodonozor.

 

No seu sonho, o Rei viu uma grande estátua. "A cabeça dessa estátua era de ouro fino; o peito e os braços de prata; o ventre e as coxas de bronze; as pernas de ferro; e os pés em parte de ferro e em parte de barro. Estavas vendo isto, quando uma pedra foi cortada, sem auxílio de mãos, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro, e os esmiuçou.  Então foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a pragana das eiras no estio, e o vento os levou, e não se podia achar nenhum vestígio deles; a pedra, porém, que feriu a estátua se tornou uma grande montanha, e encheu toda a terra".


Adivinhem qual a interpretação que o Profeta Daniel dá ao sonho do Rei:

"Tu, ó rei, és rei de reis, a quem o Deus do céu tem dado o reino, o poder, a força e a glória; e em cuja mão ele entregou os filhos dos homens, onde quer que habitem, os animais do campo e as aves do céu, e te fez reinar sobre todos eles; tu és a cabeça de ouro.

Depois de ti se levantará outro reino, inferior ao teu; e um terceiro reino, de bronze, o qual terá domínio sobre toda a terra.

E haverá um quarto reino, forte como ferro, porquanto o ferro esmiúça e quebra tudo; como o ferro quebra todas as coisas, assim ele quebrantará e esmiuçará.

Quanto ao que viste dos pés e dos dedos, em parte de barro de oleiro, e em parte de ferro, isso será um reino dividido; contudo haverá nele alguma coisa da firmeza do ferro, pois que viste o ferro misturado com barro de lodo.

E como os dedos dos pés eram em parte de ferro e em parte de barro, assim por uma parte o reino será forte, e por outra será frágil.

Quanto ao que viste do ferro misturado com barro de lodo, misturar-se-ão pelo casamento; mas não se ligarão um ao outro, assim como o ferro não se mistura com o barro.

Mas, nos dias desses reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; nem passará a soberania deste reino a outro povo; mas esmiuçará e consumirá todos esses reinos, e subsistirá para sempre.

Porquanto viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro, o grande Deus faz saber ao rei o que há de suceder no futuro. Certo é o sonho, e fiel a sua interpretação".


Analisando este texto bíblico a conclusão parece-me evidente. O Governo de Passos Coelho é a estátua que está assente numa coligação de pés de ferro e de barro. Como o ferro não se mistura com o barro, a estátua cairá à primeira pedrada que surgir, com o desfazer da coligação e o fim do Governo. E prevejo que a pedra que for atirada, se calhar já nas autárquicas, dará origem a um novo Governo que terminará com a passagem da soberania deste reino a outro povo. Afinal de contas o destino deste Governo já está profetizado no trecho da Bíblia que Passos Coelho citou.

Igual a todos nós

Pedro Correia, 22.04.11

 

É a frase mais dramática de toda a Bíblia. A frase que Cristo profere na cruz, quando todas as forças já lhe falecem no corpo em chaga, e brada aos céus com o último alento que lhe resta:

Eloí, Eloí, Lama sabachtami?

Este episódio da Paixão, que vem mencionado nos Evangelhos de Mateus (27,46) e Marcos (15,34), sempre me impressionou. Porque nos revela, mais que nenhum outro, a face humana de Jesus - as dúvidas, as angústias, a profunda inquietação existencial de um Jesus terreno, despido da sua condição divina, igual a todos nós. Na dor, no sofrimento, no desamparo. Este brado simboliza o desespero de múltiplas gerações de homens solitários clamando em momentos de aflição por um Pai que permanece teimosamente desconhecido, indiferente ao destino trágico dos seres dotados de consciência que lançou como grãos de areia na imensidão cósmica. É um grito lancinante que ecoa desde os confins dos tempos e se ramifica a todos os espaços onde chega a voz humana:

Meu Deus, Meu Deus, Porque Me abandonaste?

 

Texto reeditado 

Quadro: Gólgota, de Edvard Munch (1900)

Igual a todos nós

Pedro Correia, 02.04.10

 

É a frase mais dramática de toda a Bíblia. A frase que Cristo profere na cruz, quando todas as forças já lhe falecem no corpo em chaga, e brada aos céus com o último alento que lhe resta:

Eloí, Eloí, Lama sabachtami?

Este episódio da Paixão, que vem mencionado nos Evangelhos de Mateus (27,46) e Marcos (15,34), sempre me impressionou. Porque nos revela, mais que nenhum outro, a face humana de Jesus - as dúvidas, as angústias, a profunda inquietação existencial de um Jesus terreno, despido da sua condição divina, igual a todos nós. Na dor, no sofrimento, no desamparo. Este brado simboliza o desespero de múltiplas gerações de homens solitários clamando em momentos de aflição por um Pai que permanece teimosamente desconhecido, indiferente ao destino trágico dos seres dotados de consciência que lançou como grãos de areia na imensidão cósmica. É um grito lancinante que ecoa desde os confins dos tempos e se ramifica a todos os espaços onde chega a voz humana:

Meu Deus, Meu Deus, Porque Me abandonaste?

 

Texto reeditado

 

Quadro: Gólgota, de Edvard Munch (1900)

Escrever direito por linhas tortas

Pedro Correia, 28.10.09

  

 

“Os últimos serão os primeiros.” Quem não usou já esta expressão? O que poucos sabem é que se trata de uma frase bíblica – vem no Evangelho Segundo São Mateus (19-30) e no Evangelho Segundo São Lucas (10-31).

Inúmeras expressões que utilizamos neste quotidiano laico e secular, tal como a maioria dos nossos nomes próprios, têm a sua origem no livro sagrado do cristianismo. Expressões tão vulgares e tão diversas como “a carne é fraca” (São Mateus, 26-41, e São Lucas, 14-38), “ninguém é profeta na sua terra” (Evangelho Segundo São João, 4-44), “lançar pérolas a porcos” (São Mateus, 7-6), “nem só de pão vive o homem” (Deuteronómio, 8-3, e São Mateus, 4-4), “quem semeia ventos colhe tempestades” (Oseias, 8-7), “meter foice em seara alheia” (Deuteronómio, 23-26), “dois pesos e duas medidas” (Provérbios, 20-10), “separar o trigo do joio” (São Mateus, 13-30) e “olho por olho, dente por dente” (Êxodo, 21-24, Deuteronómio, 19-21).

 

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De facto, a nossa linguagem comum está cheia de expressões colhidas na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o que se confirma também nestes exemplos, que estão muito longe de serem exaustivos: “bode expiatório” (Levítico, 9-15), “dia da ira” (Sofonias, 1-13), “choro e ranger de dentes” (São Mateus, 8-12, 13-42, 22-13, 24-51), “pedra sobre pedra” (São Lucas, 13-2), “voz no deserto” (São João, 1-23).

Ou ainda as designações “sal da terra” e “luz do mundo”, popularizadas no Sermão da Montanha e que originaram, respectivamente, o título de um célebre filme de Herbert Biberman e um dos melhores contos de Ernest Hemingway.

E quem não conhece expressões como “crescei e multiplicai-vos” (Génesis, 1-22 e 1-28), “nada há de novo debaixo do sol” (Livro do Eclesiastes, 1-9), “lobos disfarçados de cordeiros” (São Mateus, 7-15) ou “lavar as mãos como Pilatos” (São Mateus, 27-24)? Ou adágios tão conhecidos como “ninguém pode servir a dois senhores” (São Mateus, 6-24), “pelos frutos se conhece a árvore” (São Mateus, 7-20 e 12-33), “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (São Mateus, 22-21, Evangelho Segundo São Marcos, 12-17 e São Lucas, 22-21) e “quem estiver sem pecado que atire a primeira pedra” (São João, 8-7)?

 

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A Bíblia é ainda um riquíssimo viveiro de aforismos que nada têm a ver com o “manual de maus costumes” de que há dias falava José Saramago para promover o seu romance Caim.

Aqui ficam alguns: “A maldade é a mãe da fome” (Tobias, 4-13), “a sabedoria vale mais que as pérolas” (Livro de Job, 28-18), “quem ama a violência odeia-se a si mesmo” (Os Salmos, 11-5) ou “o que perturba a sua casa herdará ventos” (Provérbios, 11-29). Este deu origem ao título de uma excelente longa-metragem de Stanley Kramer, protagonizada por Spencer Tracy.

Na verdade, não é possível compreendermos grande parte do último milénio da arte ocidental, nas suas mais diversas expressões, sem conhecermos a Bíblia. Isto inclui os próprios livros de Saramago, como O Evangelho Segundo Jesus Cristo ou o seu mais recente romance. Afinal “Deus escreve direito por linhas tortas” (Génesis, 50-14).

Uma notável prova de ignorância

Pedro Correia, 20.10.09

 

Fui e sou leitor da Bíblia. Que não é um livro - são muitos livros. Há livros da Bíblia que merecem leitura permanente e são uma fonte inesgotável de sabedoria para além da fé pessoal de cada um. Livros como Rute, Job, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos, além dos quatro Evangelhos.

A Bíblia influenciou toda a arte ocidental, toda a literatura ocidental. Lemos autores tão diversos como Hemingway, Melville, Faulkner e Thomas Mann - e lá está, bem patente na obra deles, a marca bíblica. Vemos filmes de cineastas tão diferentes como Bergman, Ford, Fellini ou Dreyer - e lá deparamos, bem nítido, com o imaginário bíblico.

A Bíblia é fundamental até na nossa linguagem comum: muitas frases que usamos no quotidiano são de lá extraídas. Frases de cuja origem bíblica muitos de nós nem sequer suspeitamos, como "os últimos são os primeiros", "pela árvore se conhece o fruto", "a carne é fraca", "lobo com pele de cordeiro", "pedra sobre pedra" e tantas outras.

Concordo inteiramente com o que escrevem Daniel Oliveira, no Arrastão, e Bruno Sena Martins, no 5 Dias. Dizer, como disse José Saramago, que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades e do pior da natureza humana" é passar um auto-atestado de ignorância: ao falar assim, Saramago só demonstra que não sabe do que fala. Fica-lhe mal a ele, não à Igreja Católica. Mas é compreensível que a Igreja reaja e responda: nada mais natural numa sociedade aberta. Assim sucedeu, aliás com notável moderação. Foi quanto bastou para haver quem escrevesse que a Igreja pretende "atear novas fogueiras", o que é algo pelo menos tão disparatado como as opiniões de Saramago sobre a Bíblia e me faz lembrar este aforismo: "Viste alguém que se julgue sábio? Há mais a esperar do insensato que dele."

Encontramo-lo onde encontramos tanta coisa: na Bíblia (Provérbios, 26-27). Saramago devia lê-la.

 

ADENDA:

Ler este texto do Francisco José Viegas. E este de Fernando Penim Redondo.

Igual a todos nós

Pedro Correia, 10.04.09

 

É a frase mais dramática de toda a Bíblia. A frase que Cristo profere na cruz, quando todas as forças já lhe falecem no corpo em chaga, e brada aos céus com o último alento que lhe resta:

Eloí, Eloí, Lama sabachtami?

Este episódio da Paixão, que vem mencionado nos Evangelhos de Mateus (27,46) e Marcos (15,34), sempre me impressionou. Porque nos revela, mais que nenhum outro, a face humana de Jesus - as dúvidas, as angústias, a profunda inquietação existencial de um Jesus terreno, despido da sua condição divina, igual a todos nós. Na dor, no sofrimento, no desamparo. Este brado simboliza o desespero de múltiplas gerações de homens solitários clamando em momentos de aflição por um Pai que permanece teimosamente desconhecido, indiferente ao destino trágico dos seres dotados de consciência que lançou como grãos de areia na imensidão cósmica. É um grito lancinante que ecoa desde os confins dos tempos e se ramifica a todos os espaços onde chega a voz humana:

Meu Deus, Meu Deus, Porque Me abandonaste?

 

Quadro: Gólgota, de Edvard Munch (1900)