I
Da cabra-cega
O meu espelho tem os olhos fechados desde criança.
Durante o intervalo, no pátio da escola primária, brincava-se a um jogo que sempre detestei: um lenço vermelho emprestado pela Professora Isabel da terceira classe, era amarrado à volta dos olhos da cabra-cega-A vítima que ficava acocorada, com os olhos escondidos pelo tecido, no centro de uma roda de mãos das outras crianças.
«Cabra-cega, donde vens?»
«Venho da Serra.»
«O que me trazes?»
«Trago bolinhos de canela.»
«Dá-me um!»
«Não dou.»
“Gulosa, gulosa, gulosa...”
Repetia, incessante, o coro formado pelas crianças, numa lenga-lenga impiedosa renovada até à exaustão das lágrimas que acabavam por surgir ocultas pelo lenço vermelho da professora Isabel.
A Cabra-Cega levantava-se.
Se agarrasse alguém, todos se calavam. O pátio ficava mudo, os corpos pequenos permaneciam, por instantes, apenas por instantes, imóveis. Depois a Cabra-Cega para se libertar da sua condição precisava de adivinhar quem tinha conseguido aprisionar com as suas mãos miudinhas. Apalpando com os dedos, entre risos e cócega lá tentava adivinhar quem era o apanhado. Se acertasse, a venda mudaria de olhos.
Gostas do que vês?, Rute Coelho