A vertigem das intuições
A intuição não é coisa de confiança: Ela diz-nos que se o Estado confiscar a riqueza dos que têm mais e a distribuir equitativamente ficam todos remediados. Mas na realidade ficam todos pobres, excepto se o mecanismo do confisco, a que chamamos impostos, for suficientemente comedido para não desincentivar nem o investimento privado nem o desejo de trabalhar.
Isto sabe-se, mesmo que o sonho de uma sociedade igualitária alimente uma quantidade de almas puras (na parte em que não sejam simplesmente invejosas ou ressentidas) que deixaram de querer nacionalizar os meios de produção, entusiasmante apelo que substituíram pelo expediente de reclamar o aumento da carga fiscal até ao ponto de se poder enriquecer desde que não se fique rico, e se fique pobre se em algum momento se tiver acumulado, ou herdado, riqueza.
Toda a gente sabe isto, mesmo os que fingem não saber porque sonhar é bom e alimenta nichos eleitorais com clientelas numerosas.
O diabo é que há outras intuições traiçoeiras, e uma delas é a velocidade: Quanto mais depressa mais perigo, e portanto quanto mais devagar mais segurança, não é? E estabelecendo um limite necessariamente arbitrário e ir microgerindo a rede viária de modo a que sempre que se registem ou possam registar acidentes em determinados pontos esse limite seja diminuído ficamos todos a ganhar: o Estado porque aumenta as suas receitas sem ser com odiosos impostos, mas antes com virtuosas coimas; os acidentes diminuem (é o que diz esta senhora ministra, provavelmente baseada num estudo qualquer feito com os pés em que se ilustra o ponto); os condutores vão progressivamente, já que não ligam peva às paternais injunções da Prevenção Rodoviária Portuguesa, habituar-se à disciplina imposta por “especialistas” dominando modelos de raciocínio burocrático-policial; os condutores que se indignavam com aqueles que os ultrapassavam vertiginosamente deixarão de ter motivos para a sua ira justiceira porque toda a gente circulará à mesma velocidade; os automóveis desportivos continuarão a ter interesse, mas apenas para estacionar à porta de pastelarias ou para consolar homens de meia-idade à procura da juventude perdida, o que fará diminuir o seu número (dos automóveis, não dos portadores de cãs, se é que não será também o caso de falar delas, que hoje se metem em tudo); os níveis de cidadania, medidos pelo respeito devido ao que as autoridades entendem ser o bem comum, serão preciosamente reforçados, o que tem utilidade noutros domínios, como por exemplo a repressão de hábitos ou vícios considerados deletérios para a saúde (para o que se usa o truque de chamar pública à saúde de cada qual); e Portugal junta-se ao esforço dos países mais avançados (com excepção da Alemanha), como é seu direito e obrigação, para acabar com o flagelo das mortes e estropiados na circulação. Em suma, o socialismo, do bom, do verdadeiro, na estrada – todos iguais, todos contentes com a igualdade e todos dispostos a castigar perniciosos elementos antissociais com coimas terroristas para princípio de conversa, e generalizadas reeducações no ramo da virtude colectiva para os mais recalcitrantes, as quais aliás já existem em certos casos.
Não fora pior se na Alemanha, em extensos troços de autoestrada, houvesse limites – ao menos um dos vários que existem consoante os países. Mas os teutónicos, com insolência, não querem ouvir falar nisso e, por serem geneticamente abençoados com excepcioniais dotes de habilidade para a condução, não têm taxas de sinistralidade mais altas. A União Europeia, porém, ainda não disse a última palavra: eles que continuem a enfraquecer a economia com políticas de esquerda e pode ser que algures no futuro se vejam obrigados neste particular a acolherem-se ao redil dos países bem-comportados.
O diabo são as externalidades, um conceito que, por ser caro a economistas, peço desculpa por usar aqui, porquanto:
Qualquer automóvel actual trava em muito menos espaço do que o equivalente de há 40 anos, percorre com segurança curvas a velocidades que dantes o fariam esbardalhar-se na paisagem e, em caso de acidente, protege imensamente mais os passageiros do que nunca. Sabe-se porquê: tem travões de disco, assistidos, e não de tambor, muito melhores suspensões, auxílio electrónico, em certos casos, à condução, airbags, zonas de deformação e um longo, com frequência invisível, rosário de inovações para poderem circular a velocidades muito superiores às legais.
Isto significa que a baixas velocidades são muito mais seguros do que seriam se não fossem concebidos para circular a altas. E que talvez, talvez, haja uma ligação entre a superioridade dos carros de fabrico alemão, que vem sendo progressivamente emulada, e a tradição local em matéria de circulação em autoestrada, admitindo que essa superioridade não decorra exclusivamente da vocação para a excelência nas indústrias. O que, a contrario, significa que se a competição automóvel deixar de exportar inovações para o fabrico em série, e se a propriamente dita deixar de se fazer em torno do desempenho, será natural que a segurança deixe de progredir, primeiro, e regrida, depois, por soluções mais baratas serem perfeitamente aceitáveis para velocidades de caracol.
A indústria é madura, mas a competição entre marcas sempre foi feroz, tanto que muitas ficaram pelo caminho. Se os veículos não se puderem distinguir de uma maneira, privilegiarão outras: conforto, espaço, dimensões, entretenimentos de bordo e milhentas novidades, que já existem mas ainda não se banalizaram, ou virão a existir.
Há já sinais disso? Há, os SUVs. Correspondem a uma moda (semelhante à que existiu em tempos e que favorecia carrinhas), são mais cómodos para acesso a pessoas com idade, dão a falsa impressão de poderem circular em terrenos para jipes e de serem mais seguros do que as berlinas equivalentes e ainda proporcionam sensação de velocidade que os radares não confirmam. De qualidades reais ou aparentes estamos conversados. Porque na realidade consomem mais porque mais pesados, não são mais seguros, pelo contrário, e são necessariamente mais caros e de mais cara manutenção. Para já a tradição ainda impõe incorporar o último grito para o segmento em matéria de segurança activa. A concorrência se encarregará, é apenas uma questão de tempo, de começar a cortar no que é demasia – aquela segurança passará a ser menos exigente e o legislador europeu nunca conseguirá cobrir todos os aspectos que, na concepção, contendem com a qualidade e a eficácia no desempenho.
Qual é então a minha tese, que, por desafiar aquilo que a intuição diz às pessoas, e que faz com que elas julguem que sabem do que estão a falar, não converterá senão convertidos?
É esta: o grande amigo das pessoas que cumprem religiosamente as regras em matéria de velocidade é, e sempre foi, quem não as respeita; e, no futuro, os ganhos com as limitações (de resto não tão relevantes como quer fazer crer a propaganda oficial) serão anulados pelo progresso que deixará de se fazer, e pelo retrocesso que terá lugar em alguns aspectos.
Três páginas, já? Ora, mesmo que o assunto dê pano para mangas o melhor é ficar por aqui, de modo que encerremos:
O socialismo na estrada não é diferente do socialismo em todos os outros lugares.