Reaccionarismo automóvel
Vivemos num mundo em que a luta pelo controle das emissões de gases contendo carbono nas suas variadas formas se tornou banal ao ponto de se abdicar de energia barata, para a substituir por energia obtida de forma cientificamente mais elaborada e economicamente mais onerosa.
O mundo avança assim. Avança quando se procuram formas de obter o que não se tinha ou que se procura melhorar o que já existe. A evolução da tecnologia que está por de trás da capacidade que permite que os automóveis nos desloquem é um bom exemplo do esforço que se faz para reduzir a emissão dos referidos gases carbónicos.
Nas redes sociais é difícil evitar tropeçar em tantas das teorias que por lá rebolam pelo chão. Por força dos estudos de tendência de mercado realizados pelos marqueteiros, nenhum fabricante, por mais dúvidas ou certezas que tenha, pode sequer verbalizar a hipótese de que o rei possa estar a desfilar em pelota. Os tempos são de cancelamento e os lunáticos, quando revelados, precisam de ter sorte para que a respectiva punição não vá além de um par de fracturas expostas.
Eu, que me vergo às maravilhas que o capitalismo acrescentou à humanidade, mas que já cá ando há tempo suficiente para concordar que a sua fúria criativa deve ser monitorizada, acho que retirar um automóvel de circulação para o reciclar e substituir por outro por motivos ambientais, só será razoável quando os benefícios carbónicos dos novos carros forem muito superiores ao que existem nesse momento. Desde logo, pelo desaproveitamento que seria dar por perdido todo o esforço carbónico já feito no passado para que esse mesmo veículo exista. Quantas toneladas de carbono foram emitidas nos idos anos 70, 80 ou 90 para fundir o bloco do motor de um carro e de toda restante imensidão de peças? E quantas mais toneladas serão agora necessárias para o desmontar, peça a peça, de maneira a poder levar novamente alguns desses componentes às forjas e assim alimentar a tão idílico-poética economia circular? Considerando a informação relativa ao elevado custo carbónico da produção de baterias, e que tenho como válida, se um carro já “antigo” mantém a capacidade de cumprir as funções para que foi imaginado, a poluição marginal causada pelo seu uso é imensamente menor do que a necessária para o substituir.
Certamente que o que hoje se vai desenvolvendo e descobrindo, no futuro abrirá as portas a algo muito melhor do que agora existe e isso só será viável se as marcas automóveis continuarem a ganhar dinheiro. Apenas por esse ângulo de observação, pode fazer sentido encolher os ombros com indiferença, perante os torquemadas que gostam de encharcar este debate com fortes doses de moralidade e de fim do mundo.
Para além da questão carbónica, irrita-me a parafernália de funções e sensores que os carros modernos têm e que assentam na presunção da incapacidade do condutor em conseguir conduzir. Pelo contrário, não consigo deixar de apreciar os carros que me reconhecem certas capacidades. Poderei eu decidir se posso conduzir um par de quilómetros sem cinto de segurança? E, quando é preciso transportar um móvel de dimensões superiores às do veículo, terei capacidade de decisão sobre a possibilidade de poder circular com uma porta aberta? Os atestados de menoridade emitidos ad nauseam pelo "cérebro" dos veículos modernos servem pelo menos para desenferrujar o largo espectro do vernáculo da nossa maravilhosa língua.
O fecho centralizado de portas mais eficaz que conheço, funciona quando alguém, no centro do carro – e daí o “centralizado” – consegue trancar e destrancar todas as portas. Uma vez, com uma pedra, inventei um muito fiável sistema de cruise control e recordo-me com saudade dos muitos quilómetros feitos nas traseiras de uma velha Bedford CF sentado num banco de campismo, ou aos pés do lugar do morto, e de no Verão, quando aos domingos íamos à Nazaré, o meu pai ser incapaz de não dar boleia a todos quantos lhe esticavam o polegar. Numa dessas vezes éramos dezassete à chegada à praia.
A nossa era quase igual, embora não tivesse vidros atrás.
É certo que eram tempos diferentes, em que não existia electrodoméstico avariado que não verificasse melhoras com duas fortes palmadas numa qualquer das suas superfícies. Duas ou quatro. Ou mais, desde que fossem em número par.
Disse-me um amigo que agora quando leva um saco de compras no banco do passageiro, lugar que por incompetência foi despromovido da patente de “lugar do morto”, tem de proteger as compras com o cinto de segurança, não para resguardar os vegetais, mas para tentar poupar o remanescente da sua parca sanidade mental, de tantos avisos desencadeados por um qualquer infernal sensor no assento.
Os fabricantes dos carros aspiram a que estes possam substituir as pessoas que nos querem bem e se preocupam connosco, o que é um tremendo abuso de confiança. Vai com juízo, põe o cinto, vai devagar para chegares depressa, veste um casaco mais quentinho que esse é uma pelinha de batata, tem cuidado com as correntes de ar, não vás para a rua em mangas de camisa a cortar a aragem, não fumes, se conduzires não bebas, se beberes não conduzas, se te der o sono pára para dormir e tem cuidado com as más companhias. Um dia todos estes mimos serão emitidos ao louvor de um qualquer dispositivo electrónico.
Por motivos que aqui não importam, não há muito tempo tive de comprar um carro. Desde o início do processo procurei um que não se quisesse armar em mais esperto que o dono. Após várias conversas e diversos testemunhos, arrisquei por um que pudesse transformar em bi-fuel, gasolina e GPL. É de origem japonesa, o que lhe augura muitos anos a circular, e na compra, fui sensível a uma chamada de atenção do vendedor relativa à caixa de velocidades, “é justinha e sem folgas, parece uma rapariga nova.” Tenho de confessar que estou muito satisfeito com o seu desempenho e baixo custo de utilização, assim como com o facto de ter custado seis ou sete vezes menos do que um desses sabichões salvadores do planeta e destruidores da paciência, que estão na moda.