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Delito de Opinião

A ler

Sérgio de Almeida Correia, 04.07.23

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"Les régimes autocratiques s'allient aux populistes, terreau fertile pour subvertir l'intérieur de la démocratie  et juguler son expansion dans le monde. Les premiers misent sur le glissement vers des formes de gouvernance plus dures dans les pays démocratiques. Partout ils partagent les mêmes idées. Nationalisme, cultede la force, nostalgie pour les empires, valorisation de la famille traditionnelle, lutte contre les LBGT, détestation des migrants, xénophobie, avec l'extrême droite. Contestation du capitalisme néolibéral, localisme, goût pour les initiatives et référendums populaires, exaltation vis-à-vis d'un "Sud" idealisé, multipolarisme à géometrie variable, avec l'extrême gauche. Tous se rejoignent sur l'importance de l'appel au peuple, la haine des médias mainstream, la volonté de réformer l'architecture internationale, et par-dessus tout sur un anti-américanisme transformé en aversion pour l'Occident, ses valeurs, son histoire, son culture" (p. 175)

Escrito a duas mãos, por uma jornalista, antiga chefe-adjunta do serviço internacional do Le Monde, ex-correspondente na Rússia e com conhecimento profundo do país, e um cientista político e filósofo, também professor em Sciences Po, aqui está um pequeno-grande livro muito actual (Abril de 2023) que nos chama a atenção para as mudanças verificadas nas últimas décadas, em especial após a Conferência de Segurança de Munique de 2007, em que Putin colocou em xeque os equilíbrios internacionais.

Em causa está uma situação de guerra latente que se desenvolve em diversos cenários e em que se confrontam sanções económicas, influência política à escala global e regional, guerra de informação e psicológica, propaganda, ciber-ataques, ameaças de guerra convencional e nuclear, tudo agravado pela crise ucraniana e a aceleração da desregulação.

Em dez capítulos de fácil leitura são desvendadas alianças e negócios e estabelecidos paralelos entre os protagonistas, mostrando-se a forma como alguns regimes se organizaram até se tornarem numa verdadeira "internacional autocrática", cujos membros assumem posições conjuntas no seio das Nações Unidas, cooperam no plano militar e securitário, usam os mesmos instrumentos de propaganda, servem-se de instituições e métodos semelhantes para actuarem fora das suas fronteiras, reforçando laços comerciais e fornecendo-se mutuamente armas que alimentam as alianças militares.

Da Ásia Central ao continente americano e às Caraíbas, do Médio-Oriente a África, são colocadas em relevo as novas alianças militares e políticas, a hipocrisia do discurso político e a forma como homens e regimes aparentemente incompatíveis acabam por se entender, sendo disso mesmo exemplo o encontro, num momento politicamente sensível, entre Wang Yi e Abdul Hani Baradar, em Tianjin, em que o primeiro representa um regime comunista e o outro um regime teocrático que por natureza se excluiriam.

O papel desempenhado pela propaganda permite obscurecer factos tão importantes como que a Rússia, desde 2014, após a invasão da Crimeia, tornou-se no primeiro fornecedor de armamento a África (44%), muito à frente dos EUA, da China ou da França, sendo o primeiro fornecedor de armamento da Argélia, de Angola, da Etiópia, do Mali, da Nigéria e do Botswana, ou a disparidade das contribuições para o Afeganistão: na cimeira extraordinária dos G20, a China anunciou a disponibilização de 200 milhões de yuans, cerca de 30 milhões de dólares, ou seja, 30 (trinta!) vezes menos do que aquilo que a União Europeia mobilizou, à volta de mil milhões de euros.

No ano seguinte, dos 4,4 mil milhões necessários, os EUA doaram 500 milhões, o Reino Unido cerca de 400 milhões e os "novos amigos" do Afeganistão apenas "entraram" com 11 milhões de dólares, dos quais uns míseros 525.000 dólares saíram do Banco Islâmico de Desenvolvimento.

De igual modo, a Rússia, que na cimeira de Teerão, com Erdogan e o anfitrião quis fazer figura de importante e imprescindível no contexto do Médio-Oriente, foi incapaz de investir as quantias necessárias à reconstrução da Síria.

Aqui e ali com números impressionantes, que nos dão a dimensão de algumas catástrofes – Mohammed ben Salmane, que em 2015, com apenas 29 anos se tornou no mais jovem ministro da Defesa do mundo, lançou a operação "Tempestade decisiva" conseguindo levar a efeito 16424 raides aéreos sauditas no Iémene entre Março de 2015 e Fevereiro de 2018, uma média de 15, 3 por dia, levando a um balanço que ao fim de sete anos se traduz em 337.000 mortos numa população de 30 milhões de habitantes, dos quais 227.000 como consequência indirecta do conflito –  e de alguns negócios – 17 países africanos abasteceram-se de armamento chinês, entre os quais o Egipto, a Etiópia, o Ruanda e o Sudão com mísseis, Angola e o Egipto comprando aviões de combate e drones, a República Centro-Africana, o Mali e o Gabão dotando-se de blindados e a Nigéria e a Etiópia de artilharia – , muitos com pouca ou nenhuma transparência, e das novas alianças militares que promovem exercícios conjuntos de grande escala (África do Sul, Rússia e China, entre 17 e 27 de Fevereiro deste ano, ao largo de Durban, por ocasião do primeiro aniversário da invasão da Ucrânia, e no mar das Caraíbas entre China, Rússia, Venezuela e Irão, com o contra-almirante Shahram Irani e a marinha iraniana a anunciarem em 11 de Janeiro passado a possibilidade de extensão das suas operações ao canal do Panamá).

Não faltando um olhar sobre a Hungria de Orbán, a propósito do bloqueio à ajuda europeia à Ucrânia, chantageando-a depois da Comissão recomendar a suspensão dos fundos de coesão previstos para o período 20212/2027 por incumprimento das regras comunitárias, e à hipocrisia interesseira das meias-tintas de Lula de Silva, Le Pacte des Autocrates dá uma visão resumida e informada do estado actual das relações internacionais, da incerteza mundial quanto ao futuro, e da situação de perigo das democracias quando se sabe que em 2021 cerca de 70% da população mundial, 5,4 mil milhões de almas, vivia sob regimes autocráticos.

Um número e um livro que não podem deixar de obrigar a pensar o leitor amante da liberdade. Qualquer que seja o seu posicionamento político.

Vantagens das autocracias

Sérgio de Almeida Correia, 29.06.23

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Uma das grande vantagens de se viver num estado autocrático é que qualquer pessoa pode ver os escolhidos fazerem publicamente os seus cursūs honōrum, e confirmar que serão alçados a distintas figuras, o que lhes permitirá escrever e dizer publicamente os maiores disparates.

Serão então efusivamente apoiados, citados, aplaudidos, acenarão para as câmaras, e ficarão sem resposta, o que normalmente acontece em razão de todo o povo ter percebido, logo com a primeira decisão tomada, depois sucessivamente confirmada ao longo do seu percurso público, que não passam de destituídos.

Outra é que a ausência de resposta pública mostra que a maioria pode ficar sossegada em silêncio, fazendo figura de boi, com o que vai revelando a sua tolerância e compreensão para com a infelicidade alheia; no que também é visto pelos eleitos como manifestação de reverência e respeito.

São estas vantagens – mas há mais – que lhes permitem continuar a mostrar a sua valia, até ao final dos seus dias, sem que nada lhes aconteça, dando assim oportunidade a que a História o registe, a sua ciência se reproduza, e os outros, os que fazem de bois, alguns entre os verdadeiros e senhores bois, possam pastar tranquilos.

O António que me perdoe. O Monte do Pasto não devia ser no Alentejo. Lá só há bois a sério.

 

(P.S. Espero que os latinistas também sejam compreensivos para com quem tem de pastar)