Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Ainda o Affaire Coimbra

jpt, 25.03.24

D701991B-3BC0-44F7-9E7D-C42F684340BA.jpeg  

Há algum tempo rebentou a escandaleira do CES da lusa Atenas. Deixei aqui eco desse "Affaire Coimbra" (1, 2, 3  e este extra), que apontava dois tipos consabidamente imprestáveis - só não vira antes quem não quisera ver -, e uma rede eunuca de conúbio. O assunto foi muito falado e depois sendo esquecido. Agora, saiu o resultado do inquérito, nem sequer fui ler as notícias, apenas me sobressaiu um cabeçalho que indicava não terem sido nomeados os mariolas, e que o sénior se declarava "muito sossegado" com os resultados. Sorri, num muito esperado "Safaram-se!!".
 
Dias depois recebo um email circular - decerto que por ter blogado sobre o assunto, pois foi entregue no email do blog - contendo a reacção das queixosas. As quais, afinal, louvam a investigação... Leio com atenção o texto, e constato que os resultados são verdadeiramente letais. Para os malandretes, e para a tal rede conivente. E só percebo que o sénior esteja "muito mais sossegado", tal como os seus sequazes, se presume a continuidade da inércia institucional, a do CES e a das suas tutelas.
 
E é contra isso que - muito avisadamente - as queixosas exigem a acção correctiva e preventiva, no CES, na vetusta universidade dos lentes coimbrões, e nos poderes políticos que a tutelam. A ver vamos, menos distraidamente.
 
Há uma coisa importante no acompanhamento geral deste tipo de casos: não devem ser resumidos à questão sexual, sempre passível de compreensão, mesmo que sarcástica, nisso do ser "normal", "humano", o prof. mais velhote querer "comer a pitazita jeitosa", nisso do marialva "quem nunca pecou que atire a primeira pedra", etc.
 
De facto o que acontece é muito pior e mais alargado, é o culto do revanchismo. Pois se a "miúda" (quantas vezes senhora bem crescida) - ou o efebo - se recusa, e até mesmo quando anui, o que se segue é o longo acabrunhar, menorizar, da sua capacidade, o espezinhar perpétuo. E o minar, torpedear dos percursos, o obstar às carreiras profissionais. Impondo o exílio intelectual, quantas vezes mesmo pretendendo o assassinato moral. E isto não se passa só quando existe a tensão sexual - e até acontece mais vezes sem ela.
 
É uma coisa tétrica, esta autocracia do homo academicus luso. Dela ouvi falar nas gerações anteriores, conheci vários desses monstros - sempre saudados por inúmeras mesuras encomiásticas -, soube de várias situações dessas, mais suaves ou agrestes, na minha geração, algumas sofridas por gente que me é ou era bem próxima. E nem era de sexo que se falava, mas sim do cruel espezinhar, de verdadeira psicose laboral.
 
Também a mim me aconteceu. Não que algum professor me tivesse querido sodomizar - também deveria ser óbvio que arrancaria o falo ao pontapé ao primeiro dengoso que se me chegasse... Mas lembro que eu, e alguns outros colegas, fomos sonegados de bolsas de investigação de dois anos apenas por termos contestado a superficialidade das aulas de mestrado de um professor. E que década depois ainda estive dois anos à espera de um contrato (e cinco meses a trabalhar sem receber) devido aos obstáculos que ele me colocava na administração pública. Como podia tal? Devido à intocabilidade do estatuto de funcionário público, somado à mescla da influência das redes maçónicas e dessa difusa "esquerda católica", esta alimentada da mitografia do "reviralho". Por vezes gente que me conhece diz que eu tenho mau feitio, que me "sobe a mostarda ao nariz". Pois contesto, e recordo que um dia, depois disto tudo, lá no campus da UEM em Maputo, me entrou gabinete adentro o tal ex-padreca antropólogo, a querer falar comigo. E eu falei, aturei. Não o insultei. Nem lhe bati. Sou um santo, estóico.
 
Mas isso dá-me a empiria própria, "o saber de experiência feito", para olhar atento para estes casos, os dos porcos que querem levar as alunas e as assistentes para a cama a troco de (hipotéticos) favores, e os dos escroques que perseguem quem não lhes é fiel, e pisoteiam os que o são.
 
Têm razão as queixosas do "Affaire Coimbra", é necessário uma purga institucional, uma refundação dos procedimentos institucionais, um assumir da tal vetusta universidade que trata os seus mais jovens investigadores-docentes como futricas medievais. E é preciso, em todo o lado, lutar contra esta cultura da apropriação pessoal e do revanchismo. A qual se justifica, legitima como "natural", através de um mito: o da meritocracia.
 
Entretanto, peço a alguém que conheça o tardio enverhoxista e ladino retórico Sousa Santos, que o informe que este "diplomorto etnocêntrico" lhe está "a cuspir na campa". Apenas por desprezo.

Kevin Spacey

jpt, 26.07.23

ks.jpeg

Na Grã-Bretanha Kevin Spacey foi agora ilibado das acusações de crimes sexuais, que quatro candidatos a indemnizações lhe tinham levantado. Em Outubro passado também fora ilibado de acusações nos Estados Unidos.

O processo que lhe foi feito, nas suas múltiplas vertentes, foi horrível - e sim, daqui a uns anos haverá um filme de "Hollywood" mostrando-o como vítima e todos o considerarão como tal. Mas durante estes últimos seis anos fizeram-no passar um verdadeiro Calvário. Não apenas no ponto pessoal - vasculhado, enxovalhado, julgado, ostracizado. Mas também arrombando-o profissionalmente: despedido, apeado, censurado - chegou-se ao ponto de retirar as suas cenas num filme e atribuir o seu papel ao velho Christopher Plummer, o qual teve o desplante de, antes de morrer, aceitar essa função.

Em Dezembro de 2017 aqui deixei o postal "Viva Spacey", enjoado com a perseguição que lhe faziam e notando o perverso cariz político de todo este processo. Recupero algumas palavras, para quem não tenha paciência para ir ler o texto todo: 

"esta horrível coisa que andam a fazer ao Spacey - despedido e até o apagam de filmes, pura censura diante do silêncio da dita "esquerda europeia", sempre tão atenta às censuras e perversões de Hollywood. É de lembrar, isto é um ambiente criado pelo fundamentalismo "genderista" / "identitarista". Em última análise é autofágico (pois cairá em cima dos seus mais acérrimos defensores, vituperando comportamentos ditos "alternativos).  Pois, de facto, a única coisa de que Spacey é acusado é de ser "promíscuo" (palavra que é um programa político, moralista). Foi moral e profissionalmente linchado por razões políticas - por não se ter assumido como homossexual, e como tal ser uma "fraude", disse o primeiro delator [Anthony Rapp]. Ou seja, por não integrar as fileiras do movimento político "gay". Nisso acusado de violências morais e físicas, e até pedofilia (a monstruosidade dos nossos dias). Mas de facto o gajo não é mais do que um atrevido...".

Enfim, deixo votos que o extraordinário actor possa recuperar a paz de espírito, e nisso a sua vida afectiva e sexual. E também o estatuto profissional que tanto merece, com o seu enorme talento.

O Affaire Coimbra

jpt, 13.04.23

jml.jpg

O "affaire Coimbra" já se disseminou na imprensa e no binómio FB-Twitter. Uma colega pela qual tenho simpatia e (muito) respeito - tanto que até ambiciono que tal seja recíproco - recomendara-me há dias: "não te metas nesse lamaçal". Mas a vertigem foi mais forte do que eu próprio, e deixei-me botar um texto - ao dia ainda um bocado elíptico - encimado pela imagem do grande Jason Robards, dando conta da minha diversão... Como nesse postal assumo "sou muito pior do que gostaria", e daí o meu ricto bem-disposto. As razões para tal eram pessoais mas agora, dada a panóplia de reacções, são mais diversificadas, assim mais... divertidas.

Enfrentam (a instituição coimbrã e alguns dos seus funcionários) um texto carregado de insinuações. Talvez sejam fundamentadas, talvez não. Mas são máculas prejudiciais às respectivas reputações - e por isso prefiro que o (decerto enorme) desconforto que agora sentem se deva a acusações infundamentadas, pois mais me deliciará que sintam o ferrete da injustiça e não o chamboco punitivo. Pois é gente que não se coíbe de fazer o mesmo (ou compactuar - como referi no tal postal anterior), insinuações - até se perversas e descabidas -, seja para se engrandecerem ou justificarem ou, pura e simplesmente, por desfastio. "Quem semeia ventos colhe tempestades", anda dito pela Bíblia ou outro qualquer clássico, "cá se fazem, cá se pagam" traduz o povo, esse que tudo sabe...

Há um quarto de século os meus amigos Gil e Cristina casaram. Ainda que convidado não fui à boda, tinha seguido há pouco para Maputo. Nesse sábado festivo, durante a tarde, recebi um telefonema de um grupo de velhos amigos, ali congregados - e já um pouco "acelerados", como era usual nessas ocasiões. A pergunta inicial, em verdadeiro coro, foi "Zezé, o que é que tu fizeste ao Boaventura?" e isto vindo de gente que nada tinha a ver com as ciências sociais nem nunca o lera... Pois na véspera o ilustre alterglobalista publicara uma página inteira na "Visão" a pontapear a minha instituição em Moçambique e a mim próprio - sem ter qualquer razão, como bem o sabia. Dir-se-á que ter uma página de revista com um célebre académico a dizer-me incompetente e relapso é menos grave do que levar no ocaso da carreira com uma onda de apupos por acusações de más práticas relacionais. Garanto que para um puto de 32 anos que se despediu para seguir para um bom emprego no estrangeiro tal não será evidente, e tudo aquilo se me afigurou letal. Daí a rajada de palavrões com que respondi aos meus amigos. Os quais logo terão seguido para mais umas rodadas e, depois, para alongadas danças. E eu terei ido até ao "Piripiri" ou à então "Bússola" beber um uísque e resmungar a vida e pensar como iria regressar à Pátria (António Hespanha tinha-me dito que eu poderia sempre voltar caso corresse mal... mas seria um grande "flop" pessoal). O texto doutoral, um chorrilho auto-laudatório e de imprecações descabidas, em particular sobre o meu chefe de então e sobre mim, chamava-se, nunca o esqueci, "Diplomortos e Etnocêntricos" - "etnocêntrico!?" resmungava eu, antropólogo. Sim, sei que todos somos etnocêntricos, condição inesgotável mas burilável - mas ser assim dito por quem acredita em "lusofonias" e "colonialismo de cama"? E terei bebido mais um uísque debruçado sobre essa temática... Depois disso nem um pedido de desculpa privado. Nem um ressarcir público.

Leio agora as reacções dos "insinuados" coimbrões - um joga a "carta racial", dizendo-se racializado vitimizado. O outro, veterano, conclui que a difamação que sofre se deve ao "neoliberalismo" que polui as solidariedades interpessoais. Isto é engraçado pois dá para perceber como estes "trunfos" são constantemente jogados, a despropósito, e vão sendo aceites pelos "bem-pensantes". Voltando atrás, àqueles tempos, presumo que tenha sido o "neoliberalismo" que levou Sousa Santos a usar as teclas viperinas contra um grupo de funcionários que, com todos os defeitos que poderiam ter, apenas não prejudicaram outros funcionários em deslocação de trabalho para o beneficiar a ele e aos seus coadjuvantes, fazendo-o poupar uns tantos dólares em quartos de hotel (despesas de projecto de investigação, que não do bolso pessoal, entenda-se bem...).

Mas voltando ao agora fervilhante e ao coro dos que assumem como verídicas as insinuações - acabo de ler a partilha de um texto de alguém que desconheço que, enquanto convoca Bourdieu (é alguém das disciplinas), considera que quem põe em dúvida o insinuado no texto é "positivista", saudoso da era em que "mandavam as estatísticas e os homens" (não se refere aos "brancos" mas isso deve ter sido esquecimento) e avesso às "prespectivas (sic, apesar do Bourdieu) feministas". Em mural muito respeitável leio um lamento que "os homens de esquerda" tenham estas práticas - deixando implícito que os homens de centro ou direita terão, por defeito, tais tendências. E as deixarão correr, até desabridas. Entretanto, à "direita" e ao "centro" é um festim, por evidentes razões ideológicas, tendo-se no entanto a infeliz tendência redutora para associar BSS ao BE - de facto esquecem-se que o académico divergiu e tornou-se também notório apoiante e até mandatário do MES, perdão, do LIVRE. E à "esquerda" afiam-se as cimitarras, impiedosas (aliás, lendo as redes sociais mais parece um confronto entre grupelhos m-l, a la PREC).

Há (mais) uma evidência que me faz sorrir. É que não vejo (se é que há) indivíduos a convocarem o direito à presunção de inocência. Eu continuo na minha, nada me obriga a seguir esse princípio. Aliás, a ética convoca-me (e talvez até a lei) a prescindir dele - morto e enterrado o malvado ditado "entre marido e mulher não se mete a colher" se eu vir constantes equimoses na vizinha devo seguir a presunção de culpabilidade do seu marido e avisar as autoridades. Não era assim quando eu era mais novo... A presunção da inocência é um princípio para as instituições, seu funcionamento, salvaguardando direitos fundamentais dos acusados. Ora essa destrinça, que deveria ser evidente, é muito esquecida.

E por isso me surpreende (minto, não me surpreende, apenas noto) a desfaçatez de vários locutores (académicos ou outros) que estão agora a saltar em cima dos "presumíveis inocentes", aludidos num artigo que é... muito fluido, de facto não passando de um diz-que-diz, por mais cativante que seja. Quando esses mesmos justiceiros passaram anos a defender - em jornais, rádio, televisão, blogs (os "jugulares" por exemplo) e mesmo inserindo-se em candidaturas partidárias - Sócrates. Sempre recusando a pertinência de "alusões" - imensamente documentadas, já agora -, sempre clamando, até mesmo após o estertor da proto-candidatura presidencial do prócere socialista, o direito à presunção da inocência do consabido presumível réu.

Enfim, para estes socratistas (socialistas, bloquistas, livristas) é mais imediata e necessária a punição sobre uns quaisquer que façam assédio sexual e moral do que sobre uns tipos que rebentem o país.

Deve ser isto o conteúdo profundo destas posições avessas ao "positivismo" e concordantes com as tais "prespectivas (sic) feministas". Salvem-se o feminismo e as ciências sociais de tamanhas atoardas e seus locutores.

Em suma, sou mesmo muito pior do que gostaria de ser - mas isso já é consabido pelos meus amigos, os visitantes do blog e os meus amigos-FB.

Eu também

Cristina Torrão, 17.05.21

«Quando tinha 12 anos fui assediada por um vizinho. Um homem com idade para ser meu avô dirigiu-me palavras obscenas, propostas porcas. Sem que me tivesse apercebido, a mulher desse homem também ouviu o seu assédio e confrontou-me dias depois, acusou-me de lhe provocar o marido, dirigiu-me palavras que uma mulher não deve ter para com uma menina. Dele tive medo, mas ela fez-me sentir culpada, suja. Uma mulher com idade para ser minha avó preferiu atacar-me, a mim, uma menina que nem era ainda uma mulher, que enfrentar a realidade de estar casada com um pedófilo, um predador».

«Tinha treze anos quando comecei a ser assediada e nada me preparou para o choque. Na escola todos os rapazes apalpavam as maminhas e os rabos e os genitais de todas as raparigas e levantavam-lhes a saia. Os professores e auxiliares que viam isto - e isto acontecia mais ou menos em todos os intervalos - nunca fizeram nada. Hoje em dia surpreende-me a rapidez com que todos, raparigas e rapazes, aceitámos que este assédio era “normal”».

«Quando comecei a sair regularmente à noite, acho que nunca me senti tão insistentemente tocada, agarrada, ignorada quando dizia que não, que não queria conversar, que não queria dançar, que não queria um copo, etc. Era como se os homens, muitos homens, achassem que tinham o direito de dispor do meu tempo, do meu corpo, de mim. E na mesma medida em que achavam que tinham esse direito, achavam que eu não tinha o direito de lhes dizer não».

«Na verdade, foi com a chegada das minhas filhas à adolescência que percebi a violência das situações por que passei. Reagi sempre com desprezo ou distância, soube defender-me, pelo que nunca me vi como uma vítima. Mas fui assediada várias vezes em contexto laboral. E não quero que as minhas filhas, ou qualquer mulher, ou qualquer homem, continuem a encarar essa situação como uma fatalidade».

«O café está vazio. Sou o único cliente. Atrás do balcão, um empregado, jovem, aproxima-se da colega que arruma as chávenas sobre a máquina do café e passa as costas da mão devagar pelo braço nu da empregada. Ela sobressalta-se, olha-o com medo e foge para o outro extremo do balcão sem dizer uma palavra. Ele vai atrás dela, a rir, divertido, com uma mão agarra-a pelo pulso e força a outra mão através das mãos da rapariga para lhe acariciar de novo o braço. A empregada treme de confusão, de medo e de raiva e sacode as mãos, impotente, com lágrimas nos olhos mas sem querer gritar para não fazer escândalo. Levanto-me da mesa e aproximo-me do balcão. O empregado sorri-me cúmplice, entre homens, sem largar a rapariga, pensando que eu quero apreciar mais de perto o espectáculo e continua a deslizar a mão pelo braço da rapariga. Quando lhe digo para parar, hesita, considera a hipótese de me confrontar e acaba por largar a colega murmurando qualquer coisa do género “Era uma brincadeira… Não estava a fazer nada…”».

«Entrei num café com um amigo de família, bastante mais velho. Senti que tinha uma pedra no sapato a magoar-me. Parei. Apoiei-me na porta. Sacudi o pé algumas vezes. Comecei a ouvir os risos dos muitos homens que estavam lá dentro, frases de uns para outros, senti o calor a subir-me à cara antes sequer de perceber porquê. Até que ouvi, voz gritada, para garantir que chegava a mim e a todos: «Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.» Gargalhadas. Eu tinha oito anos».

«Tinha doze anos, vinha das aulas. Eram cerca das 18h 15m, mas era Inverno e já estava escuro. Abri a porta do prédio onde morava, uma porta de madeira, sem qualquer vidro. Portas destas eram mais ou menos comuns, nos anos 1970. Entrei e, quando já estava quase a fechar a porta, alguém a travou, do lado de fora. Pensei ser alguém a querer entrar no prédio por boas razões, deixei a porta aberta e dirigi-me às escadas. De repente, fui agarrada pelas costas. Totalmente confusa, dei conta de que estava a ser toda apalpada. Quis gritar e não consegui, assim como não consegui libertar-me. Senti um medo de morte, estava a entrar em pânico, quando fui largada. Senti a pessoa a afastar-se e olhei instintivamente para trás. Vi um rapaz com o sexo erecto fora das calças. Quando me viu a olhar para ele, apontou para o sexo. Subi as escadas a tremer (não havia elevador) e com o coração aos saltos, apesar de ele ter desaparecido. Não contei a ninguém, tive vergonha. E muito medo de que me culpassem - porque não fechaste a porta? Porque não gritaste? Porque não lhe deste um murro? etc., etc. Mas como pode uma miúda de doze anos estar preparada para um ataque destes?».

«Tinha 11 anos. Um velho vizinho do prédio "amigo" do meu pai, ouvia-me a entrar no elevador e como morava no andar de baixo, entrava lá dentro. Apalpava-me, um dia voltei-me e apertou-me o pescoço e ameaçou fazer mal aos meus pais».

Estes são relatos partilhados num grupo do Facebook. Um dos relatos é meu. As mulheres sentem-se encorajadas ao constatar que outras o fazem, surgem cada vez mais a dizerem «eu também». Há igualmente relatos de homens que assistiram a cenas de assédio e se revoltaram (como mostra o exemplo) e são muito bem-vindos. Os ataques, assédios e abusos acontecem em qualquer idade, mas escolhi propositadamente meninas, na sua maioria, para que todos se dêem conta, quão cedo nos mostram que são livres de nos intimidarem e usarem o nosso corpo. E com que impunidade o fazem.

Todas as mulheres já foram molestadas e assediadas, independentemente da maneira como se vestem, ou como se maquilham (ou não maquilham). Muitos homens até preferem as discretas e tímidas por serem mais susceptíveis de não reagir. As que dizem que não se importam, por ser “normal”, apenas recalcam o mal-estar e contribuem para a impunidade dos agressores. A maior falácia, na educação das meninas, é dizerem-lhes que nada de mal lhes acontece, se não usarem roupas provocantes e não derem nas vistas. Não digam isso às vossas filhas e netas! É mentira!

Muitas vezes me dizem estar a cumprir «agenda de esquerda», com textos deste tipo. Mas esta não é uma luta de esquerda, é uma luta de todos os lados. Pela mudança de mentalidades.

Assunção Cristas.png

Uma parte muito relevante da sociedade, talvez a maior parte, ainda não consegue compreender o que se passa verdadeiramente quando uma mulher se sente assediada ou à beira de um assédio num contexto laboral. Essa circunstância desrespeita o mais profundo da sua dignidade, põe em causa direitos fundamentais básicos e inibe o seu pleno desenvolvimento como pessoa.

 

Não se trata de direitos das mulheres, não são coisas do “mulherio”.

Trata-se de Direitos Humanos!

Regresso ao futuro

José Meireles Graça, 05.05.21

Imaginemos que eu era um jovem atraentíssimo (ou o que as mulheres em grosso geralmente assim consideram, isto é, um pamonha com ar de artista punk ou um estivador à antiga, é conforme) e que elas já detinham a maior parte dos postos de comando (o que é provável que venha a acontecer porque já são, na maior parte dos cursos, a maior parte dos licenciados). E a minha chefa, no caso um grande camafeu, insinuava umas coisas razoavelmente explícitas sobre a grande curiosidade que a consumia em explorar alguns detalhes da minha intimidade.

Com delicadeza, tirava-lhe as lúbricas esperanças. Daí para a frente, duas coisas podiam suceder: Não se passava mais nada, pelo que guardava o episódio junto com outros segredos – toda a gente os tem, excepto os santos, os parvos e o Manuel Luís Goucha; o grande estupor começava a lixar-me a carreira.

Que faria? Depende: Ou neste futuro o ambiente já era de pouca tolerância para estas iniciativas brejeiras ou a impunidade dos abusos das harpias era a norma. No primeiro caso arranjaria maneira de coligir provas, ao menos indiciárias, porque não era com certeza o único – cesteira que faz um cesto faz um cento. E no segundo?

Com a carreira a fechar-se, mas o silêncio consagrado nos costumes, mais uma vez dependeria: Ou tinha alma de herói e tratava de denunciar com alarido; ou não tinha e dava uma cambalhota com a atrevida, ou calava e aceitava a malapata, ou mudava de ramo ou de estabelecimento.

Engolindo o ego amassado, calando, e convivendo com a situação das três formas que acima alinhavei, que fazer se passados uns bons anos, quando começassem a soprar ventos de mudança de costumes vindos de paragens onde eles evoluem mais depressa, pôr a boca no mundo deixasse de ser um problema?

Bom, contar histórias pregressas sem nomes, sim; pondo os nomes aos bois não, por causa da lei penal – não é crime o que assim não é considerado à data da prática, e mesmo que fosse há aquela coisa da prescrição, cuja razão de ser que vá estudar quem for curioso.

Nada disto tem a ver com o presente, como é óbvio. Mas é preciso prever para prover. E tendo deste modo resolvido este problema do futuro com uma argúcia que creio me honra, despeço-me com amizade.

Os duendes alheios

jpt, 19.01.18

 

Aquando do horroroso ataque à Charlie Hebdo o então vice-primeiro-ministro britânico Nick Clegg teve estas declarações. O que então disse devia ser um lugar comum, pois é a base da nossa sociedade democrática. Mas não é tão lugar comum. Seja a propósito de situações liminares, como as de então. Seja a propósito de questões (infelizmente) do quotidiano. Isto de agora, do "importunar", que se quer criminalizar e que se criminaliza. Misturando-o com o assédio, com o exercício de poderes sob formas ilegítimas. Há atitudes que são, mais ou menos generalizadamente, consideradas imorais. Devem ser criticadas, são passíveis de sanções morais, sociais. E devem ser alvo de pedagogia e crítica pública - difundir, o que será difícil em tempos de mediática hipérbole "javardista", que o "fazia-te isto e aquilo", "quem me dera aqueloutro" é não só abjecto como é também sinal de enorme fragilidade e de incumprimento. Face às mulheres e também face aos outros homens. Mas não são crimes.  E isto tem tanto a ver com os célebres como com os tipos que andam por aí a importunar as nossas queridas ("óh pai, o que tenho que ouvir às vezes", dizia-me, enjoadíssima, a minha adolescente filha quando o outro dia cá em casa se discutia este assunto das "actualidades"). 

É esta a questão fundamental. E quem não a percebe vai por aí adiante, pensando-se moralista (e justiceiro), na ânsia da proibição. Do "rogaçar" de lábios, do ligeiro encosto. Do vernáculo. Da relação "incestuosa" [há gente que se considera no direito de escrever em público e que considera suspeito (bestial, de facto) o amor entre padrasto e enteada. Mas que acha normal o amor entre dois homens ou duas mulheres. Recuem lá 30 ou 40 anos e vejam lá como estas representações, que surgem tão pomposas e veementes, se inverteram]. Da promiscuidade (os nossos intelectuais da direita já estão a saudar o regresso da ética à sexualidade, como se tivesse estado ausente). E por aí adiante. Numa concepção de regulação da vida social que se alastra às mais díspares dimensões, como a de nos dizerem que temos que guiar a 30 km à hora porque é mais seguro. E de nos proibirem de comprar rissóis porque não são saudáveis. 

Lutar contra o assédio sexual, contra a violência masculina machista é fundamental. Mas não implica refutar a democracia. E é por isso que este assunto é tão querido aos anti-democratas. O estranho é que tantos democratas o não percebam, se esqueçam das fronteiras que têm que defender. Umas por cansaço, enjoo e até revanchismo contra os morcões. Outros e outras porque lá dentro, lá bem dentro, apesar deles-mesmo, alimentam o seu querido duende ditador. E nós não temos que sofrer o assédio desses malvados duendes. Tratem lá deles. Ou seja, inibam-nos. 

Assédio? (2)

jpt, 19.01.18

O Pedro Correia escreveu aqui: "O mais chocante é verificar que a presunção da inocência que reivindicamos para as restantes actividade ilícitas das sociedades contemporâneas estar ausente de todas as imputações de assédio sexual. Como bem alertou a insuspeita Margaret Atwood, o que lhe valeu um indignado coro de críticas. Os novos empestados ardem na fogueira sem lhes ser reconhecido o exercício do contraditório. Ou, se o fazem, ninguém os escuta. Porque estão condenados à partida. E não há recurso da sentença. Já vimos este filme. Noutras épocas e sob outras alegações. Acaba sempre mal, como sabemos." O João André riposta "A verdade é que me estou nas tintas ...". Como somos co-bloguistas e o DO é um sítio plácido apago o postal abrasivo que me apeteceu escrever. Mas como não me estou nas tintas - de facto isto é uma questão civilizacional - proponho a leitura deste texto de Alexandra Lucas Coelho

Assédio?

jpt, 15.01.18

Fui professor durante quinze anos em Moçambique. Onde o problema do assédio sexual dos professores homens às suas alunas teve dimensões demográficas: num país que triplicou a população nos últimos quarenta anos, que herdou uma paupérrima rede escolar, e que teve as escolas e os professores dizimados, pois alvos preferenciais da guerra civil (1976-1992), a paz veio exigir um desenvolvimento apressado dessa rede escolar e, como tal, da formação de docentes. A qual se deparou, nos anos 90s e na década subsequente, com um problema tétrico: os professores eram uma das profissões mais devastadas pelo Sida - o qual, grosso modo, afectou 20% da população nacional. Foi uma hecatombe. Duas razões para isso: os professores primários e secundários, ao longo do país, e por mais mal remunerados que fossem (e são), eram dos raros assalariados, com acesso à moeda, e usavam-na para alcançar relações sexuais; os professores tinham múltiplas parceiras sexuais entre as suas alunas, dado que o exigiam em troca do tal dinheiro, da sua posição social reforçada, e para darem as suas avaliações positivas. Sobre esta temática não me vou por com exemplos, que conheço imensos, tão dramática, sociológica e ... demográfica é. Incontornável. Também na universidade, onde fui professor, isso acontecia, ainda que em menor grau. Pois, de alguma forma, no país ainda pertence a alguma elite (num sentido muito amplo) quem chega à universidade, não estando assim tão desapoiado. Mas é uma realidade, e soube de vários casos, murmurados ou anunciados - o professor que não "lança" a nota, que "chumba" a aluna, pais de alunas que se vão queixar, etc. Assisti e saudei a criação do gabinete universitário de luta contra o assédio, interno à universidade, instaurado face à consciência do alastrar desse problema. O qual, evidentemente, emanava não só das concepções geralmente aceites sobre o "poder dos homens" mas também da continuidade das concepções (e práticas) existentes no ensino dos níveis anteriores. 

Ponho este arrazoado por causa do que vem sendo para aqui (e não só) dito sobre o "assédio sexual". E sobre o "fundamentalismo". Abaixo leio que os homens têm que assediar as mulheres para que haja reprodução. É uma patetice iletrada. Não há nada de animal nisto: as gatas têm cio e "assediam" os gatos. Dizer isso é apenas ignorância, remeter a questão para a léria de que os homens precisam das parceiras para se reproduzir. O corolário dessa ignorância é a naturalização da poliginia e a imoralização da poliandria. O que nós estamos treinados (cada vez menos, diga-se) é que sejam os homens a cortejar as mulheres e não o oposto, a nós homens o explícito, a elas mulheres o implícito. São códigos, muito do seu tempo, e em desaparecimento. O assédio não é explicitação do desejo, nem corte amorosa. É poder exercido: físico, económico, patronal, cultural, psicológico. Quem não percebe isso não estudou português, não aprendeu bem a língua,  não tem dicionários em casa, e não tem nos seus favoritos um qualquer dicionário informatizado. E perora. E qualquer tipo que tenha aprendido que não se vai para a cama com uma mulher (algo) inconsciente - aquela miserável cena do "só mais um copo" à rapariga -, com o livre-arbítrio reduzido, só pode desprezar quem assim pensa.

Debater isto não implica qualquer fundamentalismo, não há "fundamentalismos inevitáveis", como Teresa Ribeiro defende. Há tempos escrevi aqui sobre o Spacey, que é inserível neste eixo. E este moralismo - de facto, a "contra-reforma" da revolução sexual de há décadas - instala-se a torto e a direito. Sob um ideal de justiça popular, que transformou este movimento num verdadeiro #you too. Isto não é um "fundamentalismo inevitável", é uma justiça  popular perfidamente moralista.  A leitura do documento das "100 europeias", por tantas energúmenas torpemente reduzido a um lamento da "velha" e "reaccionária" Deneuve - a "estrela" que deu a cara ao manifesto pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, encabeçado por Beauvoir, e agora tratada como uma machista misógina caduca - é exemplo disso. É o corolário do mero radicalismo, confusionista. Porque, no seu moralismo pacóvio, censor, retira a questão do poder do centro da questão. Não há nada inevitável (a não a ser a morte ... e os impostos). Muito menos o fundamentalismo. Recusar e combater o assédio sexual é uma obrigação. Mas o assédio não é "roubar um beijo" (como até a esta velha carcaça bloguista ainda por vezes fazem), "encostar suavemente a mama ao antebraço alheio" (idem) - isso é explicitação da disponibilidade. Gestos que nós, homens, estamos treinados a saudar positivamente, mesmo que desinteressados ("he pá, ainda mexo", comenta para si-mesma a tal carcaça bloguista cinquentona). Um âmbito de gestos que, porventura, muitas mulheres entendem como prenúncio de outra agressividade, treinadas (socializadas) que foram de outra forma, e assim tornando-os incómodos. 

E o que muita gente diz, e o tal "manifesto das 100" explicita, é que o assédio não é isso, não é a mais ou menos desbragada corte, o "incómodo" acusável pela "justiça popular". E as fundamentalistas (e os fundamentalistas também) que tudo confundem, para se fazerem soar, não merecendo levar com "panos encharcados" merecem, com toda a certeza, oposição. 

Malfeitores e aproveitadores - Kayser Söze

Maria Dulce Fernandes, 04.11.17
“Mais do que o dinheiro, o mundo é movido pelas trocas de favor.” 


HARUKI MURAKAM







Há novelos que em começando a desenrolar uma ponta os fios da meada espalham-se por todo o lado e de tal modo, que chega a um ponto em que deixa de haver ponta por onde se lhes pegar. 
Aqui a solução é agarrar no baraço e colocar tudo no mesmo saco.

Não me interpretem mal. Como toda a gente com valores definidos e com alguma experiência de facto, acredito que todo o assédio sexual é tóxico, lesivo e perigoso, e deve ser punido como o acto de violação que representa.

Queria apenas falar-vos do actor que deu corpo ao meu vilão favorito de todos os tempos,o ubíquo, misterioso e indeterminado  Kayser Söze, brilhantemente interpretado na tela por Kevin Spacey, um dos homens do momento.


Quem viu atentamente o filme de 1997 " Meia noite no jardim do bem e do mal" realizado por Clint Eastwood, não pode ter ficado indiferente à "roupagem" cénica de Spacey, uma pele sobre a pele, de tal modo que a certo ponto ninguém consegue dissociar o actor da personagem. 
Eu, que não sou psicóloga nem vidente, nem tenho um QI astronómico, com aquela interpretação soube. 

Por isso sempre pensei que o Óscar em 1999 por "American Beauty" foi mais que merecido, apesar da ambiência do argumento tender a  deixar o actor um tanto confortável.

O facto de que um homem com mais de 40 anos que vai a todas as cerimónias dos Óscars ano após ano acompanhado pela mãe, ajuda a fortalecer a tese.

OK. O Kevin Spacey é homossexual. Que novidade!!
Não quis revelar-se até há alguns dias atrás. E dai? Escolha dele.
Assediou sexualmente homens durante 30 anos...
Pois , é capaz de o ter feito a alguns, ele próprio o confessou.

Agora que abriu a Caça às Bruxas, com o Weinstein, não vai parar por aqui. Ontem o Kevin, amanhã quem sabe ?


 Até há pouco tempo Frank Underwood era o presidente de todos os estados, agora em estado de desgraça, foi despedido.
Não estarão a impor o  impeachment ao presidente errado ?

Quem (dentro dessa corja que são os social climbers)  nunca tenha em Hollywood, lucrado com benefícios e proveitos obtidos consensualmente na horizontal,  que atire a primeira pedra.

Calculo a quantidade de carreiras que não se alicerçaram em favores que agora são escarros de ódio  em cheio na cara de quem os ajudou.


Dizem os antigos que uma mão lava a outra e ambas lavam... as costas - grande verdade, porque hoje nas costas de tanta gente, conseguimos um vislumbre das nossas próprias.





  

Se alguém lhe oferecer flores...

Inês Pedrosa, 19.11.16

transferir (1).jpg

 

... isso significa que essa pessoa gosta de si, quer sair consigo, eventualmente iniciar um namoro consigo. Se a oferta das flores vier de um cônjuge que habitualmente não lhe faz essas surpresas, pode ser um acto de má-consciência na sequência de uma infidelidade. 

Oferecer flores não é "assédio sexual" - a não ser que quem oferece seja chefe de quem recebe as flores e que as ditas venham acompanhadas de uma intimação para um encontro a sós. Nesse caso, e pressupondo que  não sente qualquer interesse romântico pelo/a dito/a chefe (porque não é crime desenvolver um interesse pessoal por um superior hierárquico), a pessoa que se sente intimada deve declarar de imediato e tranquilamente o seu repúdio pela proposta e afirmar que tomará medidas se essa aproximação indesejada continuar.

Qualificar toda e qualquer tentativa de aproximação como "assédio sexual" é grave, porque desvaloriza a realidade - tão torturante e criminosa - do assédio sexual, favorecendo a sua continuidade e o aumento de vítimas.

Querer "comer", sexualmente falando, outra pessoa, é aquilo a que se chama "desejo", e uma das grandes alegrias da existência.