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Delito de Opinião

Ainda o Affaire Coimbra

jpt, 25.03.24

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Há algum tempo rebentou a escandaleira do CES da lusa Atenas. Deixei aqui eco desse "Affaire Coimbra" (1, 2, 3  e este extra), que apontava dois tipos consabidamente imprestáveis - só não vira antes quem não quisera ver -, e uma rede eunuca de conúbio. O assunto foi muito falado e depois sendo esquecido. Agora, saiu o resultado do inquérito, nem sequer fui ler as notícias, apenas me sobressaiu um cabeçalho que indicava não terem sido nomeados os mariolas, e que o sénior se declarava "muito sossegado" com os resultados. Sorri, num muito esperado "Safaram-se!!".
 
Dias depois recebo um email circular - decerto que por ter blogado sobre o assunto, pois foi entregue no email do blog - contendo a reacção das queixosas. As quais, afinal, louvam a investigação... Leio com atenção o texto, e constato que os resultados são verdadeiramente letais. Para os malandretes, e para a tal rede conivente. E só percebo que o sénior esteja "muito mais sossegado", tal como os seus sequazes, se presume a continuidade da inércia institucional, a do CES e a das suas tutelas.
 
E é contra isso que - muito avisadamente - as queixosas exigem a acção correctiva e preventiva, no CES, na vetusta universidade dos lentes coimbrões, e nos poderes políticos que a tutelam. A ver vamos, menos distraidamente.
 
Há uma coisa importante no acompanhamento geral deste tipo de casos: não devem ser resumidos à questão sexual, sempre passível de compreensão, mesmo que sarcástica, nisso do ser "normal", "humano", o prof. mais velhote querer "comer a pitazita jeitosa", nisso do marialva "quem nunca pecou que atire a primeira pedra", etc.
 
De facto o que acontece é muito pior e mais alargado, é o culto do revanchismo. Pois se a "miúda" (quantas vezes senhora bem crescida) - ou o efebo - se recusa, e até mesmo quando anui, o que se segue é o longo acabrunhar, menorizar, da sua capacidade, o espezinhar perpétuo. E o minar, torpedear dos percursos, o obstar às carreiras profissionais. Impondo o exílio intelectual, quantas vezes mesmo pretendendo o assassinato moral. E isto não se passa só quando existe a tensão sexual - e até acontece mais vezes sem ela.
 
É uma coisa tétrica, esta autocracia do homo academicus luso. Dela ouvi falar nas gerações anteriores, conheci vários desses monstros - sempre saudados por inúmeras mesuras encomiásticas -, soube de várias situações dessas, mais suaves ou agrestes, na minha geração, algumas sofridas por gente que me é ou era bem próxima. E nem era de sexo que se falava, mas sim do cruel espezinhar, de verdadeira psicose laboral.
 
Também a mim me aconteceu. Não que algum professor me tivesse querido sodomizar - também deveria ser óbvio que arrancaria o falo ao pontapé ao primeiro dengoso que se me chegasse... Mas lembro que eu, e alguns outros colegas, fomos sonegados de bolsas de investigação de dois anos apenas por termos contestado a superficialidade das aulas de mestrado de um professor. E que década depois ainda estive dois anos à espera de um contrato (e cinco meses a trabalhar sem receber) devido aos obstáculos que ele me colocava na administração pública. Como podia tal? Devido à intocabilidade do estatuto de funcionário público, somado à mescla da influência das redes maçónicas e dessa difusa "esquerda católica", esta alimentada da mitografia do "reviralho". Por vezes gente que me conhece diz que eu tenho mau feitio, que me "sobe a mostarda ao nariz". Pois contesto, e recordo que um dia, depois disto tudo, lá no campus da UEM em Maputo, me entrou gabinete adentro o tal ex-padreca antropólogo, a querer falar comigo. E eu falei, aturei. Não o insultei. Nem lhe bati. Sou um santo, estóico.
 
Mas isso dá-me a empiria própria, "o saber de experiência feito", para olhar atento para estes casos, os dos porcos que querem levar as alunas e as assistentes para a cama a troco de (hipotéticos) favores, e os dos escroques que perseguem quem não lhes é fiel, e pisoteiam os que o são.
 
Têm razão as queixosas do "Affaire Coimbra", é necessário uma purga institucional, uma refundação dos procedimentos institucionais, um assumir da tal vetusta universidade que trata os seus mais jovens investigadores-docentes como futricas medievais. E é preciso, em todo o lado, lutar contra esta cultura da apropriação pessoal e do revanchismo. A qual se justifica, legitima como "natural", através de um mito: o da meritocracia.
 
Entretanto, peço a alguém que conheça o tardio enverhoxista e ladino retórico Sousa Santos, que o informe que este "diplomorto etnocêntrico" lhe está "a cuspir na campa". Apenas por desprezo.

Este filme acaba sempre mal

Pedro Correia, 19.01.18

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 Woody Allen, de 82 anos, durante a rodagem de A Rainy Day in New York, ainda por estrear

 

 

«O maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei.»

Camus

 

Nos dias que correm há novas "bruxas de Salem" lançadas às fogueiras mediáticas. A certos actores, como James Franco e Aziz Ansari, de nada valeu surgirem na recente cerimónia de distribuição dos Globos de Ouro vestidos de negro e emblema anti-assédio na lapela: também eles já estão a ser queimados.

O primeiro passou a engrossar a lista dos molestadores, com ou sem aspas, mal recebeu o Globo de Ouro para melhor actor em cinema. Já nem compareceu na noite da atribuição dos prémios da Crítica de Los Angeles, apesar de ter sido novamente designado melhor intérprete masculino pelo seu desempenho em Um Desastre de Artista.

Ansari, recém-galardoado como melhor actor televisivo pelo seu desempenho na série Master of None, não tardou também a ser alvo de acusações por parte de alguém que a acoberto do anonimato o apontou a dedo perante o mundo inteiro, alegando que com ele teve a "pior experiência alguma vez ocorrida com um homem".

Como tantos outros, passou de bestial a besta num abrir e fechar de olhos. Mas desta vez a sensação de injustiça foi tão manifesta que o caso está a dividir até algum feminismo mais radical.

 

Como não há coincidências, uma das enteadas de Woody Allen surgiu entretanto em directo na televisão revelando  "pormenores chocantes" do comportamento do cineasta, que se apressou a  desmentir as acusações sobre  alegados factos supostamente ocorridos há um quarto de século e então investigados não apenas pela imprensa mas pelas próprias autoridades, que ilibaram o realizador de qualquer suspeita.

De nada valeu o firme desmentido: a acusação soou muito mais alto. E logo um conjunto de actrizes e actores se apressou a confessar em público um enorme pecado, seguido do acto de contrição: trabalharam com o realizador mas juram não entrar em novos filmes dele per saecula saeculorum

Um desfile que tende a aumentar. Por enquanto integra Mira Sorvino, Ellen Page, Greta Gerwig, Colin Firth, Rebecca Hall, Thimotée Chalamet, Griffin Newman. A primeira, que deve o estrelato (e um Óscar) a Allen, fez publicar uma carta aberta em que se confessa "horrivelmente arrependida" de ter sido dirigida por ele em Poderosa Afrodite. Os três últimos anunciaram que entregarão a movimentos anti-assédio os salários recebidos pela participação no mais recente filme de Allen, A Rainy Day in New York, ainda por estrear.

Apenas Alec Baldwin se atreveu a sair em defesa do cineasta galardoado em 1978 com o Óscar de melhor realizador pelo seu filme Annie Hall - um dos mais subtis e ternos retratos de mulher que o cinema nos proporcionou. Louvo a coragem do actor: pelo rumo que as coisas levam, é um candidato ao desemprego em Hollywood, onde as opiniões politicamente incorrectas são alvo de duras punições.

 

O que mais me choca neste incessante caudal de tochas incendiárias não é o facto de todos os dias provocar novas vítimas, numa espécie de "maccartismo sexual", como alguém já lhe chamou com muito acerto. O mais chocante é verificar que a presunção da inocência que reivindicamos para as restantes actividade ilícitas das sociedades contemporâneas estar ausente de todas as imputações de assédio sexual. Como bem alertou a insuspeita Margaret Atwood, o que lhe valeu um indignado coro de críticas.

Os novos empestados ardem na fogueira sem lhes ser reconhecido o exercício do contraditório. Ou, se o fazem, ninguém os escuta. Porque estão condenados à partida. E não há recurso da sentença.

Já vimos este filme. Noutras épocas e sob outras alegações. Acaba sempre mal, como sabemos.

Contra as novas censuras

Pedro Correia, 18.01.18

O video da semana e uma certa esquerda presa no seu próprio labirinto

Rui Rocha, 02.11.14

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O video da semana mostra uma mulher que percorre as ruas de Nova Iorque durante 10 horas. A jovem mulher é abordada constantemente. Como a Fernanda Câncio sublinha, o que o vídeo evidencia é o carácter repetitivo, importunador, exasperante do "piropo". Mostra como sair à rua é, para qualquer mulher, um estado de alerta permanente, o de quem sabe que a qualquer momento pode ser abordada por um estranho com ofertas de sexo e sujeita a apreciações, mais ou menos alarves, sobre o seu aspeto. Esta parece ser uma descrição objectiva dos factos. Seria, portanto, de esperar que a partir deles se gerasse um amplo movimento de condenação das atitudes retratadas no video. E que essa condenação fosse consensual nos sectores à esquerda do espectro político, que reivindicam para si o património histórico da promoção dos direitos das mulheres. Surpreendentemente, nomeadamente nos EUA, é da própria esquerda que chegam vozes que questionam as conclusões aparentemente óbvias que resultam do video. O problema, ao que parece, reside no facto de a protagonista ser uma mulher branca. E de as abordagens filmadas serem quase sempre protagonizadas por homens de raça negra. Não tardaram vozes como a de Kristin Iverson que denuncia no video uma clara intenção de defender e proteger "a mulher branca inocente", isto é, a "estrutura social de poder existente". Rapidamente o argumento foi mais longe. E logo surgiu quem afirmasse que o video tem claros propósitos racistas. Dion Rabouin di-lo com todas as letras: há uma clara intenção de passar a ideia de que as mulheres brancas não estão a salvo de "sex-crazed black and brown men". Na escalada de argumentos, Aura Bogado refere um viés intencional no video: as filmagens teriam sido feitas deliberadamente em bairros em que os residentes são maioritariamente negros com o objectivo de perpetuar o mito de que estes são os responsáveis por todos os aspectos negativos da humanidade e que é preciso salvar a mulher branca. A solução seria, ao que parece, filmar um novo video com um elenco universal, em que a protagonista seria "a black trans woman". Mas houve quem fosse ainda mais longe. Emily Gould justifica as abordagens como sendo uma forma de grupos marginalizados ajustarem contas com quem (a estrutura social de poder branca existente) os condena a estarem à margem. As ondas de choque foram de tal forma intensas que o grupo Hollaback que promoveu a divulgação do video já veio a público reconhecer que este pode ter ferido a susceptibilidade de alguns sectores mais sensíveis. Como refere Charles Cooke na ampla resenha que faz sobre o assunto, o que subjaz à incomodidade provocada pelo video nestes sectores é a ideia, também tão cara da esquerda, de que os autores das abordagens são meras vítimas das circunstâncias e que foram forçados, pelas suas condições, a importunar uma mulher branca inocente. O problema é que a injustiça não se apresenta, na realidade, em silos estanques e segmentados. As camadas de injustiça sobrepõem-se, interpenetram-se e multiplicam-se. E essa esquerda que se esqueceu das grandes ideias gerais como a igualdade e cedeu ao apelo da apropriação da injustiça minoria a minoria, caso a caso, perdeu-se no seu próprio labirinto. Daí que lhe falte critério quando é confrontada com escolhas definitivas: radicalismo islâmico ou direito das mulheres. Radicalismo islâmico ou direito à orientação sexual? Direitos das mulheres (sejam elas brancas, baixas, altas ou negras) ou paternalismo para determinados comportamentos?