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Delito de Opinião

25 Maravilhas - Edição extra XXV

Paulo Sousa, 15.09.24

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Biblioteca Nacional de Buenos Aires, Argentina

 

Sobre Jorge Luis Borges, que chegou a ser director desta Biblioteca.

“Um amigo do escritor conta que uma vez percorreu a Biblioteca Nacional de Buenos Aires com ele. Borges movia-se entre as prateleiras como o seu próprio habitat. Abraçava cada uma das estantes com o olhar, já quase sem vê-las nitidamente. Sabia onde estava cada livro e, ao abri-lo, encontrava logo a página precisa. Perdendo-se nos corredores forrados de livros, deslizando por entre lugares quase invisíveis, Borges abria caminho na escuridão da biblioteca com a dedicada precisão de um equilibrista.”

O infinito num junco, de Irene Vallejo

Os rótulos fáceis do jornalismo preguiçoso

Pedro Correia, 13.12.23

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A SIC fez esta estrondosa descoberta: 56% dos eleitores argentinos são de "extrema-direita". Eis uma demonstração prática de jornalismo preguiçoso - aquele que se apressa a pôr rótulos na política e varre contextos, circunstâncias e questões concretas para debaixo do tapete. Neste caso, vale a pena lembrar que a Argentina já foi um dos países mais ricos do globo: em 1912 tinha a nona economia mundial, à frente de países como Alemanha, França e Dinamarca.

Nos últimos anos os rótulos mais frequentes desta subespécie de jornalismo são "populista" e "extrema-direita". Sem nunca haver os respectivos contrapontos. O que define a diferença entre um populista e um não-populista, por exemplo.

Será não-populista o governo peronista que terminou funções com o país mergulhado em 143% de inflação anual, uma moeda que perdeu 99,2% do valor face ao dólar nos últimos 20 anos e quatro em cada dez argentinos em situação de pobreza nesta que já foi a mais próspera nação da América do Sul?

Se proliferam os extremistas de direita, onde andam os extremistas de esquerda, suas réplicas do campo oposto?

Faz sentido designar 56% dos eleitores como extremistas, seja qual for a ideologia política que estiver em causa?

O jornalismo preguiçoso não responde a nada disto. Nem esclarece como é que um ultraliberal, como o recém-empossado Presidente argentino, Javier Milei, pode ser catalogado de "extrema-direita" e até rotulado de fascista quando o fascismo proclama a existência de um Estado forte e este economista, pelo contrário, quer um Estado mínimo. Consciente - mal ou bem - de que na Argentina, nove bancarrotas depois, o aparelho estatal não faz parte da solução, mas do problema. 

 

Hoje, mais que nunca, não há "direita". Há direitas. Meter no mesmo saco os herdeiros ideológicos do marechal Pétain e os herdeiros ideológicos do general De Gaulle, só para mencionar duas figuras históricas da direita conservadora, nacionalista e até reaccionária que se combateram entre si em França, é grave erro de análise. Tal como, por exemplo, meter Giorgia Meloni e Milei na mesma gaveta. A verdade é que Milei acaba de derrotar nas urnas os discípulos ideológicos de Juan Domingo Perón, esse sim um fascista clássico (e amigo de nazis).

Casos diferentes que devem ser analisados não como amálgama, antes como sintoma generalizado dum protesto difuso com aspectos comuns mas motivações tão diversas que escapam a rótulos simplistas. E têm igualmente erupções à "esquerda", como ocorreu em 2015 na Grécia, com a vitória eleitoral do Syriza

A dicotomia partidos velhos versus partidos novos está hoje presente nos cenários eleitorais um pouco por toda a parte. Isto tem a ver com dinâmicas históricas e crises sociais: nenhuma etiqueta pronta-a-colar a explica.

 

A verdade é que os partidos e os próprios sistemas políticos, tal como as pessoas, também envelhecem.

Em Portugal, não por acaso, do vetusto PPD/PSD já emergiram três novas forças políticas na última década. Impulso de regeneração de um sistema que gera anticorpos: nuns casos resulta, noutros nem por isso. Resultou em proporções diferentes, e até ver, com a erupção do Chega e o nascimento da Iniciativa Liberal. Não resultou com a efémera Aliança do evanescente Santana Lopes.

Acontecerá o mesmo ao PS quando passar à oposição.

Xavier Milei

José Meireles Graça, 28.11.23

E as pampas, hã? Que maravilha. Buenos Aires então, aquilo é como uma cidade europeia. E tens lagos altos que só visto, uma variedade de climas (com quase 4.000 km de comprimento para 1.400 de largura a coisa dá para assar ao Norte e gelar no extremo sul), e – não esquecer – é a terra do tango, de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar (não li, mas diz que são famosíssimos). A carne é do melhor (são tradicionalmente grandes exportadores) e parece que até à Grande Guerra, e mesmo até ao fim da década de 20, o país ombreava com as economias que mais se desenvolviam. Depois ficou com sezões, até hoje, com um caudillo e uma primeira-dama célebres pelo meio, ditaduras e várias falências (três desde 2001, de um total de nove).

Os números são aterradores: mais de 140% de taxa de inflação, mais de 40% de pobres (não apurei se, dos variadíssimos conceitos que existem, esta percentagem se refere a indivíduos que recebem menos do que 60% do rendimento mediano ou outro qualquer), produto por cabeça estimado quase ao nível de 1974, emigração de cérebros, fuga de divisas, défices permanentes das contas públicas, economia de tobogã ao longo dos anos, isto é, com crescimento significativo seguido de recessões profundas, sector produtivo débil por estar tradicionalmente abrigado da concorrência estrangeira, fuga de divisas, banco central carente de independência, e um longuíssimo etc.

(A fuga de divisas chega a ser caricata: da muita literatura que consultei não vi referências ao que fazem os exportadores que são pagos em moeda estrangeira mas forçadamente convertida em pesos a um câmbio inferior ao do mercado negro – o Estado precisa desesperadamente delas e há muito que os câmbios oficiais deixaram de ter qualquer correspondência com o valor real do peso. Conclui, porém, que devem fazer o que é lógico, isto é, subfacturam e criam contas no exterior para as diferenças, que não chegam a sair do país importador).

Pois bem: um indivíduo que comentadores circunspectos, da esquerda à direita, declaram como um palhaço louco, ganhou as eleições. A alegada palhacice vem-lhe do corte de cabelo, da veemência e radicalismo das declarações, que incluem vernáculo no tratamento de oposicionistas, utilização em campanha de uma motosserra para simbolizar os cortes necessários, e um comportamento com frequência histriónico; e a loucura de um programa que inclui coisas como a dolarização da moeda e a extinção do banco central, a negação da origem antropológica do aquecimento global, a rejeição completa da agenda woke, a extinção de uma quantidade assinalável de ministérios, incluindo o das Mulheres, Género e Diversidade, além de uma quantidade de medidas, chocantes umas, originais outras, que cabem no que genericamente se pode designar como liberalismo libertário.

É impossível que possa aplicar a totalidade do seu programa porque não tem a maioria no Congresso e este tem extensos poderes. E é decerto ciente dessa limitação que Xavier Milei já começou a pôr água no vinho de anteriores posições: por exemplo, telefonou ao papa, seu compatriota, convidando-o a visitar o país, não obstante ter em tempos declarado tratar-se de um Jesuíta que promove o comunismo; e já pôs em banho-maria o seu antagonismo em relação ao Brasil e China, ainda que ao mesmo tempo declare que vai alinhar com os EUA, Israel e o mundo livre.

Entre nós o homem é de “extrema-direita”, como Trump, Bolsonaro, Orbán, Meloni, Morawiecky, o caseiro André Ventura e outros.

Porém o mesmo chapéu não pode servir para todos estes políticos. Trump, por exemplo, é um proteccionista e Xavier Milei o exacto oposto; e é preciso um prodígio da imaginação para fazer equivaler Jair Bolsonaro a Giorgia Meloni, ou achar que Ventura tem um programa económico liberal consistente. A menos que se queira dizer que desde o momento que se queira pôr um dique à marcha imparável de todas as esquerdas para

reforçar o papel do Estado na economia e na vida das pessoas; a transformação da livre iniciativa num capitalismo de compadrio; que a liberdade de opinião seja a de pensar dentro das baias apertadas do bem-pensismo oficial; e que a propriedade seja um íman para impostos, a história uma falsificação ignorante e interesseira e os magistrados da opinião, bem como os da Academia, um vasto rebanho papagueando as mesmas doutrinas falidas e daninhas na economia e na engenharia social:

se é de extrema-direita.

Os quais políticos de extrema-direita, a julgar por estes exemplos, têm uma característica curiosa: chegaram ao poder em eleições livres, os que já chegaram, e dele sairam, os que já saíram, pelo mesmo caminho. Morawiecky, aliás, ganhou as recentes eleições e nem assim vai formar governo, porque não tem a maioria no Parlamento, como sucedeu com Passos Coelho, que talvez também fosse de extrema-direita – a doutrina não é pacífica.

No continente americano Nicolás Maduro ou Díaz-Canel, por exemplo, com eleições é que não vão sair, o que levanta um problema: se a extrema-direita é democrática e a extrema-esquerda não, um dos sectores do espectro político deve mudar de designação. Ou então os comentadores devem apresentar-se em público com orelhas de burro, o que no caso de alguns teria ainda a vantagem suplementar de lhes disfarçar a caspa.

Buenos Aires é uma capital europeia, como a língua; o país católico, as instituições democráticas, o potencial grande como o país; e Xavier Milei um comentador, académico e político com esteróides. Diz-se anarco-capitalista e é socialmente conservador.

Louco? Os sensatos puseram reiteradamente a Argentina de joelhos, onde está. Pior não pode fazer, donde seria prudente, para dizer o mínimo, que a direita envergonhada que aprecia que a esquerda a olhe com tolerância lhe desse ao menos o benefício da dúvida.

Argentina, contratos e regulação

José António Abreu, 01.08.14

Concordo com o Luís Naves quando considera excessivo o nível de lucros de Fundos como o que detém actualmente parte da dívida argentina. Não porque me incomode ver outras pessoas a ganhar dinheiro (muitos dos investidores em fundos nem sequer são ricos) mas porque níveis destes indiciam uma economia muito pouco baseada em produtos tangíveis. Em princípio, também não sou contra uma regulação mais apertada dos mercados financeiros (dos de dívida soberana como dos restantes). Só não percebo bem em que consistiria a regulação num caso como este.

 

Os contratos que a Argentina subscreveu antes de, em 2001, entrar em incumprimento incluíam:

- Uma cláusula garantindo que todos os credores têm os mesmos direitos (cláusula pari passu);

- Uma cláusula estabelecendo que qualquer conflito seria resolvido nos tribunais de Nova Iorque.

Em contrapartida, não incluíam:

- Uma cláusula que forçasse a totalidade dos credores a aceitar as condições negociadas em caso de reestruturação da dívida, desde que um determinado número as aceitasse (em inglês, collective action clause).

Muito embora esteja a desempenhar um papel importante na situação actual (já lá vamos), a primeira cláusula é, pelo que leio, habitual. A segunda faz com que a questão jurídica não pertença, como o Luís Naves defende, ao «direito argentino» - por escolha da Argentina, à época desejosa de obter credibilidade junto dos financiadores, após décadas de governação laxista e inflação galopante. A terceira, ou melhor, a sua inexistência é, no entanto, o erro mais grave, tendo aberto a porta aos problemas – e aos especuladores. Provavelmente o governo argentino prescindiu dela pela mesma razão que aceitou a jurisdição dos tribunais nova-iorquinos: sinal de confiança. Ou então fê-lo por incompetência ou – pior – por interesses ocultos. Seja como for, foi uma decisão com consequências graves. Após entrar em incumprimento, a Argentina chegou a acordo com a maioria dos credores mas não com todos. O Fundo Elliot Management, que entretanto comprara dívida argentina a preço de saldo, recorreu para a Justiça – em Nova Iorque, como os contratos previam. O que o tribunal veio dizer é que os credores que não aceitaram a reestruturação têm efectivamente direito aos montantes previstos nos contratos originais e que, não estando eles a ser ressarcidos, os restantes também não o podem ser (por causa da primeira cláusula). Esta decisão deixa a Argentina bloqueada e sem alternativas: se pagar os montantes originais ao Elliot Management, arrisca-se a ser processada pelos outros credores – e, quase certamente, a perder (de novo por causa da primeira cláusula).

 

Feito o ponto da situação, voltemos à necessidade de regulação. Em que consistiria ela afinal? Dever-se-ia limitar a venda de títulos no mercado secundário, de modo a evitar que caíssem na mão de entidades que pudessem tentar fazer valer os contratos assinados? Estabelecer-se-iam limites máximos para o lucro? (Mesmo nos casos em que ele é monumental apenas porque alguém – o detentor anterior dos títulos – encaixou uma perda quase do mesmo valor?) Obrigar-se-ia a que todos os contratos incluíssem a cláusula de acção colectiva? (Será válida em todos os regimes jurídicos? E que percentagem se imporia? 90%? 70%? 51%? Para punir mesmo a sério os credores ambiciosos, talvez nem devesse ser necessário atingir-se o acordo com os detentores da maioria dos créditos: que tal 20%? Ou 5%, um valor que qualquer governo poderia facilmente garantir estarem em mãos amigas?) Outra hipótese seria agir do lado do fornecedor do bem que mantém o vício em vez de agir do lado do viciado: que tal proibir que os governos emitam dívida adicional quando os seus países se encontram acima de determinados patamares de endividamento? Sendo inegável que os grandes capitalistas são frequentemente abutres (à escala do poder e dinheiro que detêm, quase todos os humanos são), contas públicas equilibradas evitam que se lhes caia nas garras de forma muito mais eficaz do que quaisquer normas regulatórias.

 

 

Nota 1: Especula-se que um ou mais bancos poderão pagar ao Fundo, de modo a evitar o accionamento dos credit default swaps detidos pelos restantes credores. Seria uma solução cem por cento privada, onde os cada vez mais complexos (e perigosos) instrumentos financeiros existentes acabariam jogando a favor do Estado Argentino. Mas o tempo urge, até porque o Comité de Derivados de Crédito das Américas já classificou a situação como sendo incumprimento (ver coluna à direita, sob o título ongoing).

Nota 2: Mesmo sem este imbróglio jurídico, a situação da economia argentina não seria brilhante. Recuperada a autonomia do peso, mantiveram-se as políticas de sempre, baseadas na injecção de dinheiro - que rapidamente perde valor, fazendo disparar a taxa de inflação (ou as taxas de inflação, uma vez que a oficial costuma ser pouco credível). Ainda assim, trata-se da receita que muita gente parece desejar aplicar em Portugal.

Paraísos de crescimento económico e justiça social

José António Abreu, 14.02.14

Argentina is once again at the centre of an emerging-market crisis. This one can be blamed on the incompetence of the president, Cristina Fernández, but she is merely the latest in a succession of economically illiterate populists, stretching back to Juan and Eva (Evita) Perón, and before. The Chilean and Uruguayans, the locals Argentines used to look down on, are now richer. Children from both those countries – and Brazil and Mexico too – do better in international education tests.

[…]

On Europe’s southern fringe, both government and business have avoided reality with Argentine disdain. Italy’s petulant demand that rating agencies should take into account its “cultural wealth”, instead of looking too closely at its dodgy government finances, sounded like Ms. Fernández. The European Union protects Spain or Greece from spiralling off into autarky. But what if the euro zone broke up?

The Economist, número saído hoje.

 

Nada que assuste os populistas de esquerda, tão activos como os de direita mas com muito melhor imprensa. Das duas, uma: como a Sra. Fernández e, um pouco mais a norte, o Sr. Maduro, não vêem os riscos ou estão mesmo convencidos (e iludidos) de que será possível forçar parte da Europa a cobrir-lhes a demagogia.

 

(Para que conste, no final de 2012 escrevi: Em 2013 continuará a discutir-se por cá a relação custo/benefício do euro. Na Argentina continuará a discutir-se a relação custo/benefício da inflação.)

Kirchner e a nacionalização da YPF

Rui Rocha, 16.04.12

A decisão de Cristina Kirchner de nacionalizar a YPF, controlada pela espanhola Repsol, coloca ao comentador um dilema sem solução. Tomar partido quando estão em disputa os interesses do mais básico populismo, por um lado, e os de uma petrolífera, por outro, apresenta o mesmo grau de dificuldade que enfrentaria qualquer mortal se tivesse que optar entre regiões diferentes do inferno. Assim, mais do que tomar posição sobre a medida, vale a pena sublinhar alguns aspectos de contexto. O Kirchnerismo defronta-se com a perspectiva de implosão do modelo económico que promoveu. A Argentina tem assegurado uma posição sólida na primeira metade da tabela dos estados com risco mais elevado de bancarrota. Kirchner sabe que o caminho escolhido é insustentável. Confronta-se assim com uma escolha: ou altera a política, ou fecha os olhos e acelera. Kirchner é política. E um político só obedece a duas leis: a da lógica de curto prazo e a da escalada de compromisso (tendência para insistir em soluções que sabemos inviáveis só porque as defendemos em determinado momento). Kirchner atirou-se de cabeça. Com a nacionalização obtém um instrumento adicional, que se junta à subsidiação dos preços ou ao crédito a taxas negativas, para suportar artificialmente o boomdo consumo e a ilusão do bem-estar . Que a decisão tenha sido tomada apesar de todas as suas consequências (perda de confiança de investidores e outros desastres) diz bem do estado de desespero de Kirchner. Pelo visto, para controlar a situação já não é suficiente dar ordem de prisão a quem questiona os dados oficiais da inflação. Neste contexto, faz cada vez mais sentido uma definição de Kirchnerismo que circula em Buenos Aires: "com Peron cantávamos combatiendo el capital, embora fizéssemos coisa bem diferente; com Menem o refrão foi seduzir o capital; com Kirchner já nem sequer cantamos". A pergunta que fica é se, apesar de tudo isto, a nacionalização vai dar bons resultados. Não vai. Se dúvidas houvesse, bastaria ter em conta o desastre de gestão das Aerolineas Argentinas, cujo controlo foi também assumido pelo estado, para perceber como tudo vai acabar. O problema? O problema é que do outro lado de Kirchner está uma petrolífera. E este comentador não tem especial preferência por encarnações terrenas do demo. Da mesma maneira que tem dificuldade em ser definitivo quando as alternativas às nacionalizações se reconduzem à venda de activos aos chineses.