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A última edição da revista Etnográfica inclui um In Memoriam dedicado a Rui Mateus Pereira, morto em 2020 - com textos de Adolfo Yáñez Casal, Ana Isabel Afonso, Frederico Delgado Rosa e Laura Almodôvar, colegas que lhe foram próximos e que com ele constituiram amizades. Tive com o autor um relacionamento muito mais distante e esparso. Mas, e até porque a nossa interacção não se enquadrou no espaço universitário, aqui deixo a minha memória. Na qual, e porque escrita em blog próprio, não tenho o espartilho dos limites de caracteres - comum em publicações institucionais - nem prescindo do exclusivo tom de memória pessoal.
25 anos sobre o cume da eficácia genocida, no Ruanda. Para se compreender o acontecido - e muito mais relevante do que as súmulas de jornais - deixo aqui um texto (20 páginas) do meu amigo (e colega), e ex-co-bloguista, Fernando Florêncio, professor em Coimbra. O qual, logo após a hecatombe, esteve dois anos no país (1994-1996) a chefiar uma missão internacional. Homem discreto, pois muito mais teve para contar, mas reteve-o, decerto que por demais doloroso para ser passado à escrita. Mas narrava-o nos nossos almoços e jantares, quando nos cruzávamos em Lisboa. E bem lembro o que avançava sobre a emergente guerra no então Zaire, muito efeito da crise ruandesa, coisas que o poder político-diplomático luso, sempre tão lânguido, não tinha interesse em ouvir (e chega este tipo de diplomata a embaixador e ministro ..., gente impávida na sua extrema mediocridade). Tão discreto que googlo agora sobre se algum órgão de comunicação social o contactou mas nada, preferirão os habituais tudólogos, profissionais de painéis.
Do acontecido lembro o "frisson" com que se recebiam as notícias, estava então na missão eleitoral na África do Sul. Era imensa a festiva expectativa com a chegada ao poder de Mandela (nesse mesmo Abril de 94). Mas também o receio que a situação descambasse num conflito, na confluência de revanchismos. O Ruanda era um horror mas também um pesadelo, a aterrorizar o futuro.
Para a actualidade retiro duas coisas: a peçonha de haver investigadores portugueses pagos pelo Estado, e estabelecidos em instituições públicas, que publicam textos (no "referencial" Público) afimando que "só há racismo dos brancos, os negros quanto muito poderão ter preconceitos". A sujeição prostituta de alguns "cientistas" sociais à agenda do BE serve para tudo.
E recordo também tempos de meados de 2000s, quando tive alguns alunos ruandeses, normalmente cursando a licenciatura de ensino de francês. Refugiados, vindos do campo de Bobole (ainda não tinha havido a concentração em Nampula). Homens já crescidos, no dealbar dos 30s. E recordo da minha disciplina, de nunca lhes perguntar - em particular a um, mais habitual visita do meu gabinete, interessado em temáticas mais socioantropológicas - qual a respectiva origem. Não querendo assim entreabrir a porta do Horror. Não querendo saber o passado desses seus agentes ... E é importante lembrar isso neste tempo de burguesotes sacralizando "refugiados". Pois a realidade não cabe toda na rua da Rosa, 1985.
Desde 2011 que recebo imensos pedidos de informação de compatriotas desejando trabalhar em Moçambique (muitos devem estar agora aliviados ...). Não terei sido útil à esmagadora maioria, por vezes terei parecido antipático, mas sempre procurei seguir a máxima de nunca menosprezar quem necessita de procurar trabalho. Por compatriotismo mas também porque se houve algo em que Marx acertou foi no "Proletários de todo o mundo uni-vos!", mesmo que agora tenhamos colarinhos brancos e os capatazes sejam "doutores" das administrações públicas. No meu perfil da rede social Academia.edu tenho deixado textos antigos, aqueles que não cabem em blog pois nele não se justificam. Lembrei-me agora do texto mais pessoal que já escrevi, apesar da retórica quase-académica. Tem onze anos, então um período profissional terrível para mim (mas pessoalmente glorioso). Está velho, que muito no mundo mudou. Mas fica para os compatriotas que ainda buscam trabalho algures: para isso nunca confiem no vosso Estado (e tantos ainda me falam nas possibilidades da "cooperação"). Não por causa dos políticos. Mas mesmo por causa da "administração pública". Que é gente, de corpo e (sem) alma.
Fica aqui a ligação para o "Antropologia de um Projecto de Cooperação. (Auto)História de Vida de um Candidato a Cooperante". É um texto meio maluco, iradíssimo. Nota-se na forma. Mas não no conteúdo, "cristalino como o cristal". Custa-me a memória de tê-lo escrito. Ainda bem que o escrevi.
Este é um postal escrito para o ma-schamba, o texto referido (que não é nada blogal, ainda para mais com vinte e tal páginas) pouco poderá interessar à maioria do público do DO, dirá mais a quem acompanha as coisas de África (e das relações portuguesas com os países africanos) mas deixo a referência. Até para quando lerem ou ouvirem prosápias da política portuguesa em África. Desconfiem sempre. Normalmente é gente tralha que se ocupa disso.
Sou amigo do Filipe Verde há quase trinta anos (como custa escrever estas quantidades) e é também por isso, por esta minha fidelidade à ideologia do amiguismo, que aqui venho divulgar este "Exploradores Portugueses e Reis Africanos" (editado por A Esfera dos Livros), o livro que agora escreveu com Frederico Rosa. O qual será apresentado ao público no próximo dia 22 (terça-feira) em Lisboa, na livraria Bertrand no Chiado, por aquela hora do fim da tarde. Acontece ainda que o Filipe é o tipo com a mente mais brilhante que eu conheço (sim, sei do piroso que isto soa), opinião que já bloguei a propósito do lançamento do seu luminoso livro "O Homem Livre", o qual deveria ser presença constante nas estantes mas que me parece meio esgotado, e que continuo a recomendar como obra máxima do pensamento actual em Portugal. O Filipe Verde tem ainda a rara capacidade de pensar denso e escrever leve (entenda-se: muito bem), tornando acessível o seu pensamento de Homem Livre, nada sujeito a modismos e a obrigações de lojas, clubes ou capelas. Com tudo isto até parece que quero desmerecer o co-autor Frederico Rosa, mas não é o caso, é apenas eco de o desconhecer, apenas o ouvi uma vez, há anos, numa informadíssima comunicação, daquelas que denotam um intelectual de mão-cheia.
O livro destes dois antropólogos intenta uma releitura das viagens portuguesas em África durante XIX, visitando o calcorrear de Lacerda e Almeida, António Gamito, Rodrigues Graça, Silva Porto, Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Henrique de Carvalho, cruzando o olhar da antropologia, da história e da literatura. Coisa pensada não para especialistas mas sim para quem se possa e queira interessar, seja sobre o período histórico, seja sobre África, seja sobre essa coisa da construção dos discursos sobre o longínquo (e quantas vezes tornado exótico). Em termos de apelar a um repensar da história começa muito bem, logo com o título, nisto de "...Reis Africanos", pontapeando o velho olhar sobre o caos (apolítico) africano, o primitivismo sempre presente, com várias roupagens ...
Enfim, o lançamento é daqui a uma semana. E se alguém daqui (do in-blog) parta para assistir (os tipos falam bem, já agora) peço para ir lá ao Filipe Verde e entregar um abraço ido do jpt, qu'isto de viver longe tem recompensas mas também tem destas coisas, o perder os bons momentos dos nossos.
Para quem não tiver disponibilidade fica o desafio, o de folhear o livro a deixar-se tentar, a ver se gasta os quase vinte euros (em podendo, e pelo que já li, justificar-se-á).
No sábado vibrei com o golo de Kelvin, aquele com que, já no fim do jogo, o Porto derrotou o Benfica, assim quase quase roubando o campeonato que parecia decidido. Parei o carro, saí, entrei no restaurante mais próximo ("Cristal", na 24 de Julho), ainda vi a repetição do golo, ri-me de alguns conhecidos benfiquistas ali, tão desamparados estavam, troquei sorrisos cúmplices com amigos sportinguistas, ali algo seráficos mas contentes. Bebi uma cerveja.
Ontem, durante o dia da final da Liga Europa, gozei alguns amigos e conhecidos benfiquistas, anunciei "sou do Chelsea desde a mais tenra infância" (e era, ontem). Recebi alguns sms de benfiquistas provocatórios "Carrega Benfica", "A taça é nossa". A todos respondi "vão perder nos descontos". Não vi o jogo, fui dormir cedo. Hoje na alvorada leio que sim, perderam mesmo no fim, sorrio, contente, e em particular com a crueldade (bi-crueldade) do acontecido. Até lamento não ter visto em directo.
Ao longo dos últimos dias tenho lido várias declarações (até de sportinguistas) invectivando esta linha de sentimento, "anti-benfiquista" dizem. Nos jogos internacionais há sempre uns patriotas patrioteiros que vêm reclamar o supremo "bem da nação", como se um jogo de futebol fosse a batalha de Navas de Tolosa, um clube de futebol seja D. Afonso Henriques sonhando Cristo antes da batalha de Ourique e o jornal "A Bola" os "Lusíadas" em versão digital. Uma colecção de tontos a perorarem. Falando sério, uma colecção de gente desnorteada quanto aos seus valores.
Bill Shankly, mítico treinador que comandou o Liverpool durante 15 anos, disse algo que se tornou referência: "Algumas pessoas acreditam que futebol é questão de vida ou morte. Fico muito decepcionado com essa atitude. Eu posso assegurar que futebol é muito, muito mais importante.". É certo que haverá alguns malucos (holigões) que poderão ler isto literalmente (há gente para tudo). Mas o que está explícito aqui é que o futebol (e o clubismo) é outra coisa, não é liminar. Identidades opcionais, paixões cultivadas, formas de nos entrecruzar, de festejarmos, de cutucarmos, fazendo-nos juntos de modos não lineares.
E por isso surge a "rivalidade". Não somos adversários nem inimigos. Somos "rivais", vizinhos, queremos as mesmas coisas (as taças), que são super-importantes, aliás, são "muito, muito mais importantes do que a vida e a morte" (lá está, como disse Shankly), mas que, bem lá no fundo, não têm importância real.
Ontem ao fim da tarde bebi uma cerveja com dois amigos, ambos oriundos da Póvoa do Varzim. Benfiquistas, mas da Póvoa. Estava eu no meu chelseanismo militante, claro. E eles contaram-me da rivalidade lá da terra deles, entre o Varzim e o Rio Ave, clubes e terras vizinhas, limítrofes. Quando um dos clubes descia de divisão os adeptos do outro faziam-lhe, teatralmente, o funeral. Gozavam, até ao tutano, os adeptos rivais. Passado algum tempo seriam eles os gozados. É isso a rivalidade.
A gente, na antropologia, tem coisas escritas sobre o assunto, há já muito tempo. Chamamos-lhes "relações jocosas" ou "relações de gracejo" ["joking relationship" na wikipedia"]. Existem em inúmeros contextos, sob variadíssimas formas, mais ou menos institucionalizadas. São formas, só aparentemente paradoxais, de nos dizermos unos, comuns. "Rivais". Por isso mesmo a minha (verdadeira) alegria - pese embora o estado desgraçado do meu "grupo", Sporting, sobre o qual tanto tenho escrito in-blog no último ano, e mais ainda falado - com as derrotas do Benfica, do malvado Benfica, o gozo que me dá todo aquele sofrimento. Estamos "nós" mal? Sim. Mas que piada têm aqueles golos sofridos nos últimos minutos, estas dolorosíssimas derrotas, seguidas ainda para mais, do acabrunhamento em que "eles" agora vegetam. Que grande espectáculo. Que maravilha. ("E o Jesus ajoelhado no Dragão?, viram?").
Hoje mesmo enviarei cruéis mensagens aos amados familiares benfiquistas, aos meus queridos amigos (parentes espirituais), gozarei de viva voz com os vizinhos (concidadãos, nesta cidadania global da bola) adeptos da galinhola depenada. Porque a bola é para isto. O jogo deve ser limpo, leal (por isso a minha irritação com as aldrabices e com os adeptos da vitória a todo o custo, a toda a roubalheira). Para que o gozo seja limpo, leal. "Doloroso" para quem o sofre. Recíproco, para quando vier.
Quanto aos "éticos", os das grandes proclamações patrióticas, de lisura, da solidariedade? "Arranjem uma vida", como dizem os anglófonos. Ou, mais explicitamente, arranjem valores. Ou, mesmo, percebem-nos.
(postal colocado no ma-schamba)