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Delito de Opinião

Pensamento da semana

Pedro Correia, 05.11.23

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O secretário-geral da ONU desistiu de ser mediador no conflito do Médio Oriente, escolhendo campo. Declarar que o massacre cometido pelo Hamas em 7 de Outubro - a maior matança de judeus num só dia desde a II Guerra Mundial - «não surgiu do nada» tem algo de obsceno. Como reagiria António Guterres se alguém dissesse que a barbárie nazi e os campos de extermínio na URSS estalinista também não surgiram do nada, podendo assim justificar-se

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

O Hamas e Guterres*

José Meireles Graça, 27.10.23

A ONU é um prestigiado organismo à espera da III Guerra Mundial para decidir quem são os novos membros inamovíveis do Conselho de Segurança.

Tem inúmeras agências, entre especializadas e para administração de fundos e programas. Das primeiras (aliás autónomas, o chapéu da ONU é um rótulo) as mais conhecidas são a Organização Mundial de Saúde, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Unesco, e das segundas a UNICEF e o IPCC, este último também sob a égide da WMO, especializado na aterrorização da opinião pública com a trágica perspectiva de morrermos ou assados ou afogados. O Secretário-Geral nutre por este particular carinho, razão pela qual há uns anos apareceu na capa da Time com um fato de excelente corte mas com água pelas canelas, assim como recebeu a miraculada Greta Thunberg, que foi à ONU joanad’arcar os crentes nas maluqueiras que lhe povoam a cabeça adolescente.

Toda esta nebulosa é razoavelmente opaca e consome incontáveis milhões. Há uns anos falava-se de reformas, a ver se se punha um freio na crescente necessidade de fundos para financiar o monstro das mil cabeças burocráticas, mas a tarefa, além de ciclópica, choca com o interesse dos países membros, invariavelmente a favor de mudanças desde que os outros paguem mais, e cada um menos.

De todo o modo, Guterres nunca seria a pessoa indicada para semelhante tarefa, por ter o dinamismo de uma preguiça, a determinação de um catavento e a visão de uma toupeira. O homem chegou ao lugar que ocupa por se imaginar ter o perfil certo para a função: natural de um país exemplarmente democrático, pacífico e ordeiro, que não faz sombra a ninguém, experiente nas trincas e mincas da burocracia internacional, de convicções saudavelmente de esquerda moderada, católico mas tolerante, flexível, terceiro-mundista quanto baste, e dono do respeito instintivo que lhe merecem, e acha que devem merecer, burocracias em geral, e supranacionais em particular.

Esperava-se que não fizesse ondas. O Secretário-Geral tem ainda menos poderes reais que a Assembleia-Geral, a qual funciona segundo o curioso princípio de as suas votações democráticas resultarem de maiorias constituídas por países que de democráticos têm nada. Se algum país considerar que o seu interesse nacional é ferido por deliberações daquele prestigiado órgão, ignora-as e pronto – foi o caso, muitas vezes, de Israel.

O bom do Guterres, porém, descobriu uma bandeira, a das alterações climáticas, e agarra-se a ela com fervor: em Julho passado avisava, o cenho carregado de aflição, que o mundo já estava em ebulição. O qual mundo ficou imperturbável, salvo as organizações malagrídicas, que aproveitaram a boleia para pedir mais fundos e pedras para atirar às montras dos estabelecimentos, os governos que pretendem cobrar mais impostos verdes, as empresas que investem em produtos e actividades “protectoras” do ambiente, alguns partidos políticos que pretendem fazer passar o seu anseio pelo igualitarismo demente à boleia do clima, e os jornalistas que vivem de vender notícias de homens que mordem em cães.

Estava bem assim porque a ONU, imenso coio de inúteis, areópago de hipocrisias, sorvedouro de fundos, é indispensável por ser o lugar onde toda a gente fala com toda a gente e apalpa o pulso do mundo. Isto pode evitar desentendimentos e guerras, e do cortejo de agências são indispensáveis umas, e é provável que as outras façam mais bem do que mal.

Do que não se esperava era que na guerra Israel/Hamas Guterres tomasse partido. E embora o próprio se esfalfe por explicar que não disse o que disse ("It is important to also recognize the attacks by Hamas did not happen in a vacuum. The Palestinian people have been subjected to 56 years of suffocating occupation”), e por todo o lado haja gente, incluindo entre nós o inevitável Marcelo, que finge que não percebe, por estúpido paroquialismo, o que ele realmente quis dizer, conviria que os fingidores, os ingénuos, os interesseiros e os hipócritas não nos tomassem por parvos:

Não há nem nunca houve um atentado terrorista que nascesse do vácuo. Do ponto de vista dos perpetradores há sempre razões. E portanto Guterres, ao enunciar o óbvio, não é o óbvio que está a enunciar mas sim a sua simpatia pelo Hamas. Como se percebe quando só podemos concluir que, face ao ataque terrorista, ele provavelmente entende que Israel se devia defender não com armas mas apresentando um protesto na ONU (e comprar a libertação dos reféns, como já fez no passado e talvez tenha de fazer agora, com a libertação de terroristas presos). O secretário-geral da Liga Árabe, esse, percebeu perfeitamente, e estou certo que os aiatolas também.

A ONU é uma organização de Estados, não de movimentos ou ONG’s, e um diplomata não lança achas para a fogueira quando o seu papel é ajudar a extinguir incêndios. Guterres foi o nosso PM do pântano. Nunca devia dele ter saído para nos envergonhar colocando-se ao lado de terroristas.

 

* Publicado no Observador

Êxodos, massacres, genocídios e omissões

Pedro Correia, 26.10.23

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Crianças arménias refugiadas em 1915: o primeiro genocídio documentado do século XX

 

Também em matéria de "catástrofes humanitárias" (como agora tantos dizem, numa tradução imbecil do 'amaricano') há umas mais iguais do que outras.

A Arménia, lá nos confins do Cáucaso, sem jornalismo nem "activismo" nas redondezas, pode ser chutada para o rodapé pelo supremo responsável da segurança global (atenção: as cinco anteriores palavras são em registo irónico).

 

Convém nunca esquecer que os arménios sofreram o primeiro genocídio documentado dos tempos modernos. Há pouco mais de cem anos, cerca de milhão e meio foram massacrados pelo já decadente Império Otomano, avô da Turquia actual - incluindo deportações e assassínios em massa.

Seguiu-se o tenebroso Holodomor - a condenação de um povo inteiro à morte pela fome. Neste caso ucranianos, submetidos à mais cruel pena capital colectiva pela URSS de Estaline em 1932/1933.

 

Massacres étnicos originaram também grandes êxodos - de dezenas de milhões de pessoas. É outro dramático legado do século XX.

Entre 1944 e 1949, 1,7 milhões foram expulsos da Polónia para a Ucrânia - e vice-versa.

Após 1945, cerca de 8 milhões de alemães foram evacuados dos chamados "territórios de Leste" para o perímetro da actual fronteira alemã - e, depois, muitos fugiram da RDA para Ocidente.

O desmembramento do Hindustão britânico originou entre 1947 e 1951 o êxodo cruzado de 15 milhões de pessoas da União Indiana para o Paquistão - e vice-versa. Nessa traumática jornada entre fronteiras recém-estabelecidas, terão morrido cerca de dois milhões de pessoas.

O genocídio ocorrido no Camboja submetido ao domínio totalitário comunista de Pol Pot, entre 1975 e 1979, custou pelo menos dois milhões de vidas humanas.

A disputa pelo enclave que acaba agora de mudar de mãos no Cáucaso originou em 1994 a deslocação forçada de cerca de 400 mil arménios e de mais de um milhão de azeris.

Menos expressivo, mas não menos doloroso, foi o êxodo ocorrido em Chipre na sequência do golpe ilegal ali protagonizado pela Turquia em 1974 que dividiu a ilha até hoje: 200 mil gregos e 60 mil turcos desalojados.

Viria a acontecer, em escala maior, nas guerras dos Balcãs da década de 90 - ainda cheia de chagas por cicatrizar.

E no Ruanda, na sanguinária guerra civil de 1994: cerca de um milhão de mortos em apenas três meses apenas por pertencerem à "etnia errada" (tútsis, sobretudo).

Sem esquecer a guerra no Sudão, culminada na "limpeza" étnica no Darfur, em 2003: pelo menos 2 milhões de mortos e 6 milhões de refugiados nos vinte anos seguintes. Primeiro genocídio documentado deste já tão triste século XXI.

 

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Guterres na fronteira entre Gaza e o Egipto (20 de Outubro)

 

Existirá, nos casos de grandes êxodos, uma figura da justiça internacional denominada "direito ao regresso" dos desalojados, apenas invocada no caso da Palestina?

Fica à consideração dos especialistas.

Ao secretário-geral da ONU nem é preciso perguntar: dirá logo que sim. Num reflexo condicionado semelhante ao que no passado dia 20 o levou a mostrar-se aos repórteres do lado da fronteira egípcia com Gaza numa arenga cheia de bonitas frases humanitárias que esqueceram os mais de 200 reféns israelitas e de outras nacionalidades levados à força pelo Hamas, em circunstâncias bárbaras.

Também se peca por omissão. Eis um destes casos.

Simplesmente lamentável

Pedro Correia, 07.01.23

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É salutar que o secretário-geral da ONU venha a Lisboa, como ontem fez, advertir a opinião pública para uma questão preocupante: «A igualdade de género está a andar para trás», um pouco por toda a parte.

Fica-lhe bem lançar este alerta digno de realce. Mas atenção: se há instituição mundial onde a igualdade de género apresenta um défice muito censurável é precisamente a Organização das Nações Unidas. Ao longo da sua existência, teve nove secretários-gerais - todos do sexo masculino.

Fica o registo: o norueguês Trygve Lie (1946-1952), o sueco Dag Hammarskjöld (1953-1961), o birmanês U Thant (1961-1971), o austríaco Kurt Waldheim (1972-1981), o peruano Javier Pérez de Cuellar (1982-1991), o egípcio Boutros Boutros-Ghali (1992-1996), o ganês Kofi Annan (1997-2006), o coreano Ban Ki-moon (2007-2016) e o nosso compatriota António Guterres (desde 2017).

Nem uma mulher nesta galeria de quase oito décadas: verdadeira negação da igualdade de género. Simplesmente lamentável.

Toponímia*

José Meireles Graça, 06.05.22

Dos políticos contemporâneos talvez os mais bem sucedidos sejam Marcelo e Guterres. Um fez uma brilhante carreira no jornalismo de politiquices e foi, entre outras coisas, deputado, líder partidário, secretário de Estado e ministro. Isto em paralelo com um percurso ilustre na Academia, estrelado com altas classificações, doutoramentos e distinções. Até chegar à condição de mais alto magistrado da Nação, que acumula com a que nunca cessou de ter, de da opinião; e o outro, descontada a cátedra, que não se deu ao trabalho de perseguir, e a banca jornalística, para a qual não tinha tanto jeito, seguiu paralelamente até chegar a primeiro-ministro e depois Alto Comissário para os Refugiados e secretário-geral da ONU, o nono na função. Simplifico as duas carreiras e não fui conferir se, na Europa, isto é, nas prateleiras de luxo do funcionalismo supranacional inimputável, algum foi alguma coisa, mas se não foram podiam ter sido, o tempo é que não chega para tudo.

Não têm ainda o nome em avenidas, mas seria talvez oportuno as edilidades das principais cidades irem pensando nisso: Lisboa, onde tudo se decide, o Porto porque gosta de se enfeitar com os ademanes da capital que não é, Braga porque parece que Marcelo torce pelo clube local, e Celorico de Basto porque lá grande não é nem na imaginação dos seus mais ferozes bairristas, mas ilustre por ser berço familiar de uma destas luminárias.

Pode adiar-se para quando (espero que daqui a muito tempo) já cá não estejam, mas talvez não seja prudente: avenidas novas não surgem todos os anos e há o risco palpável de, poucos anos volvidos, já ninguém saber quem foram os preclaros.

Nós Fontes Pereira de Melo sabemos que era o dos comboios; Barjona de Freitas o da abolição da pena de morte; o Duque da Terceira o da guerra civil; e Pombal o da expulsão dos Jesuítas e da execução dos Távoras. Já com Hintze Ribeiro, Ressano Garcia ou o Duque de Ávila temos a burra nas couves mas enfim, sempre vagamente adivinhamos que devem ser personalidades lá da politicalha da monarquia constitucional antes de lhe darem um bote. Em chegando à balbúrdia republicana, então, nomes há tantos que se confundem todos na mesma indiferença e na mesma ignorância.

Nesta III República Mário Soares, talvez Cavaco, Sá Carneiro, não correm o risco de serem rapidamente esquecidos: o primeiro enterrou o PREC político, o segundo o económico e o terceiro domsebastiou.

Gente hipercrítica e verrinosa dirá talvez que Soares começou por levar o PCP ao colo, pelo que fez a figura da rã que transportou o escorpião no dorso; e que, não fosse a localização geográfica do país, ou a esfera de influência a que pertencíamos, outro galo cantaria. Tretas: Soares ganhou. E se não tivesse ganho não era impossível que fôssemos uma Cuba europeia em vez de uma colónia de Bruxelas onde a classe média europeia vem ver o typical.

Cavaco terraplanou o manicómio em autogestão que era a economia que herdou e erigiu o edifício europeísta, social-democrata e estatista que temos. Nas mãos dos socialistas a empresa faliu; e nas dos camaradas de Cavaco não teria falido, bem como, sempre acreditou o próprio e quem o admira, Portugal ter-se-ia colado ao pelotão da frente, para usar o jargão que usava e imaginava inspirado.

Há dois Sá Carneiros: o da retórica socialista que o ar do tempo impunha e o da AD. O segundo comportava uma dinâmica anti-PS que teria evoluído, provavelmente, para governos claramente de direita (democrática), para não falar do perfil do homem, que é pouco provável tivesse cristalizado nas crenças que lhe norteavam as acções de então – morreu cedo. O historiador Pacheco acha que o primeiro é que é o autêntico; e a exegese histórica haverá no futuro, numa manhã de nevoeiro, de dilucidar a questão.

Marcelo deixa para os vindouros o episódio da vichyssoise, que não é uma memória exaltante, e os afectos, que têm o carácter efémero das coisas superficiais – passam.

Já debaixo do nariz de Guterres está a decorrer a maior crise do nosso tempo e, mesmo que uma guerra atómica não pareça para já provável, um tsunami de disrupções de todo o género varre o mundo, que já estava abalado pelo “combate” à Covid e a quebra de cadeias de distribuição. Pois bem: ainda em 4 do mês passado o miraculado estadista condenava os governos que encaminhavam o mundo para a catástrofe. A ucraniana? Que nada, a das alterações climáticas. As mesmas que justificaram no passado que a Europa em geral, e a Alemanha em particular, se tivessem colocado na dependência da Rússia porque a energia atómica não, que horror, o fracking ainda menos, credo,  exploração de petróleo nem mo-lo digas, e do que precisamos é de corrupios no alto dos montes, hectares de painéis fotovoltaicos e veículos que nos atropelem porque não os ouvimos.

A Europa financia a Rússia para atacar a Ucrânia, que é financiada pela Europa para se defender. E o absurdo é tão gritante que Guterres, contrariado, lá foi, ao fim de dois meses de guerra, cedendo às injunções de meio mundo. A ONU é uma organização impotente, não pode ser outra coisa, e ninguém esperava do homem que fosse uma pedra importante no desenho de qualquer solução para o conflito. Mas é uma assembleia que preserva institucionalmente a ideia do diálogo sobre o confronto, e o respeito do Direito Internacional sobre a barbárie. Ou o secretário-geral se recusava a visitar o agressor, ponto; ou, a fazê-lo, teria ido ao princípio. Mas não: estava, e está, obcecado com as possíveis inundações no arquipélago da Tonga.

São estes os nossos maiores. Talvez devêssemos eleger, para efeito de distinções toponímicas, políticos estonianos ou lituanos. Que se saiba, não são ilustres – mas não nos envergonhariam.

 

* Publicado no Observador

Visitar o agressor e só depois o agredido

Pedro Correia, 03.05.22

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A imagem não podia ser mais reveladora da impotência e da inutilidade da organização criada em 1945 pelos vencedores da II Guerra Mundial: o ditador russo recebeu o secretário-geral da ONU em Moscovo sem um cumprimento, sem um sorriso protocolar – muito menos sem o afável aperto de mão que dispensou a Marine Le Pen quando a diva da extrema-direita gaulesa o visitou em 2017.

António Manuel de Oliveira Guterres, 73 anos, dialogou com Vladímir Putin – e o verbo dialogar não passa aqui de eufemismo – numa longa mesa que os colocava a mais de seis metros de distância. Lembrando a de Citizen Kane, quando o magnata e a esposa já nada tinham a dizer um ao outro após anos de casamento infeliz.

«Missão humanitária», sublinhou o antigo primeiro-ministro português, que permaneceu dois meses encerrado no palácio de vidro em Nova Iorque enquanto a Ucrânia ardia e a Europa assistia à maior deslocação de gente em fuga no continente ocorrida nas últimas oito décadas. Quando enfim decidiu atravessar o Atlântico, já com dez milhões de ucranianos desalojados dos seus lares, Guterres optou por visitar primeiro a potência agressora e só depois a nação agredida. Insólita ordem de prioridades talvez para salvar a face de Moscovo após as recentes derrotas russas em votações no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas.

 

Putin, detentor do maior arsenal atómico do planeta e salvaguardado pelo direito de veto que mantém para travar os efeitos práticos de qualquer resolução hostil na ONU, assumiu pose de czar ao dignar-se receber o português no Kremlin.

Se a intenção da visita era demovê-lo de praticar novas atrocidades, foi perda de tempo. Se visava apenas debitar platitudes, Guterres cumpriu o plano. Mostrou-se «muito preocupado com a situação humanitária na Ucrânia», admitiu que a Federação Russa possa ter acumulado «muitos ressentimentos» em anos precedentes e proclamou-se «mensageiro da paz». Missão em que o Papa Francisco supera sem dificuldade o católico socialista que em 2001 abandonou o «pântano» político português para mergulhar 15 anos depois nas águas pantanosas da diplomacia mundial.

 

A frase mais contundente do secretário-geral da ONU em Moscovo, antes de visitar Kiev, foi proferida após a audiência com Putin. Lembrando que há forças militares russas na Ucrânia e não soldados ucranianos na Rússia. Terminou aí a ousadia verbal de Guterres. Bem diferente de um dos seus antecessores, o ganês Kofi Annan, que em 2004 criticou com dureza a intervenção norte-americana no Iraque, considerando-a «ilegal», e em 2006 acusou Washington de desrespeitar o direito internacional em matéria de direitos humanos durante as campanhas militares e no combate ao terrorismo.

Estilos diferentes, contextos diferentes, alvos diferentes. Putin, leitor de Maquiavel, prefere ser temido a ser amado. Guterres situa-se no extremo oposto: ninguém o receia. Até ganha na comparação, embora não pareça.

 

Texto publicado no semanário Novo.

No conforto de Nova Iorque

Pedro Correia, 26.03.22

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Desde que a agressão da Rússia à Ucrânia começou, há um mês, o secretário-geral da ONU nada mais fez do que duas ou três declarações beatíficas sobre o tema. Permanecendo inerte no conforto de Nova Iorque: nem sequer pisou solo europeu, ao contrário do Presidente norte-americano.

A sua passividade face ao maior conflito bélico no nosso continente desde a II Guerra Mundial contrasta em absoluto com o protagonismo assumido por um dos seus antecessores, Kofi Annan, na segunda Guerra no Golfo. 

Mas nem tudo é mau. Mostrando-se firme ao leme do Palácio de Vidro, António Guterres acaba de dirigir à população do globo terrestre uma mensagem destinada a assinalar o Dia Mundial da Meteorologia.

Pela paz no mundo

Pedro Correia, 24.02.22

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Estala a guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia, e onde anda o secretário-geral da ONU, nosso tão louvado e tão improfícuo patrício? Refastelado, na poltrona de Nova Iorque, a proferir pias homilias sobre a «paz no mundo».

Eu preferia lá ver Miss Universo - a indiana Harnaaz Sandhu, eleita em Dezembro de 2021. Capaz de debitar também esse inútil paleio pacifista e com a vantagem de ser muito mais gira que António Guterres.

Figura nacional de 2016

Pedro Correia, 04.01.17

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ANTÓNIO GUTERRES

Nunca um político português atingiu um posto tão relevante a nível internacional: António Guterres superou as exigentes provas a que foi submetido e foi eleito secretário-geral da ONU em Dezembro, tendo prestado juramento mesmo à beira do fim do ano.

É a consagração máxima na carreira do ex-secretário-geral do Partido Socialista, que exerceu as funções de primeiro-ministro entre 1995 e 2002, e desde então só regressou ao palco da política portuguesa por breves meses, quando Marcelo Rebelo de Sousa o convidou para conselheiro de Estado.

Ironias do destino: há dois anos era ele o nome mais falado para representar o PS na corrida presidencial. Afinal quem chegou a Belém foi o seu amigo e adversário político Marcelo, enquanto ele rumou a Nova Iorque. Para ascender a secretário-geral da ONU muito contou o seu bom desempenho anterior como alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

Guterres foi eleito Figura Nacional do Ano pelo DELITO DE OPINIÃO num dos nossos escrutínios mais concorridos de sempre, que contou com a participação de 27 dos 31 autores deste blogue. Como já sucedeu noutros anos, cada um de nós poderia votar em mais de uma figura ou mais de um facto.

Mesmo sendo só notícia no último trimestre de 2016, o novo dirigente máximo da ONU destacou-se como favorito nas nossas escolhas: recebeu 15 votos, relegando para um distante segundo posto Marcelo Rebelo de SousaEleito Presidente da República logo à primeira volta, a 24 de Janeiro, empossado em 9 de Março como inquilino de Belém e figura em foco durante o ano em Portugal, Marcelo só obteve sete votos.

Ainda mais distantes, ficaram duas figuras do futebol: o seleccionador nacional Fernando Santos, que entre 10 de Junho e 10 de Julho conduziu a equipa das quinas à conquista do Campeonato Europa, a maior proeza de sempre do futebol português, e o jogador Éder, que marcou o golo decisivo do nosso triunfo na final disputada em Paris frente à selecção francesa. Ambos receberam dois votos.

Cristiano Ronaldo – que também se sagrou campeão em França e recebeu a quarta Bola de Ouro da sua carreira – recebeu um voto solitário. Tal como a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

 

Ler os sinais

Rui Rocha, 06.10.16

Nas últimas décadas, os dois chefes de governo portugueses que abandonaram funções quando o país se encontrava em situação difícil assumiram, mais cedo ou mais tarde, importantíssimos cargos nas mais relevantes organizações internacionais. Os que por cá ficaram, em contrapartida, acabaram por conformar-se com posições comparativamente menores e houve mesmo um que esteve preso. A bem do país, era bom que António Costa se apercebesse disto o mais rapidamente possível.

A “Team Guterres” e a irrelevância dos assuntos internacionais em Portugal

Diogo Noivo, 06.10.16

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Para aqueles que vivem isolados de formas de vida pubescentes, uma breve nota prévia: o fenómeno Twilight consiste numa saga livresca adaptada ao cinema cuja história, em traços gerais (aqueles que a saga merece), se resume a um jovem vampiro e a um jovem lobisomem que se digladiam pelo coração de uma rapariga apática e sem graça nenhuma. Foi um fenómeno de audiências intenso e à escala planetária. A legião de meninas adolescentes que acompanharam a saga divide-se, portanto, em dois bandos: a Team Edward, que torce pelas ambições amorosas do vampiro; e a Team Jacob, que apoia os sonhos românticos do lobisomem. Ambos os bandos são de um fanatismo implacável, onde qualquer concessão ao adversário é entendida como uma traição imperdoável. Foi dos fenómenos populares mais profundamente imbecis dos últimos vinte anos.

 

O processo de selecção para o cargo de Secretário-Geral da ONU foi uma espécie de Twilight dos crescidos e, finda a saga, parece que ganhou a Team Guterres. Julgo ser um bom desfecho. António Guterres tem um perfil mais do que adequado ao desempenho da função em apreço. As suas prestações nas diversas rondas de avaliação foram quase sempre notáveis e, gostando-se ou não, a verdade é que António Guterres não só domina tecnicamente os assuntos, como demonstrou ter pensamento próprio sobre o sistema das Nações Unidas. Foi um excelente candidato, merecedor de todos os louvores. E, claro, como somos portugueses, ficamos sempre muito satisfeitos quando um patrício singra no estrangeiro.

 

Porém, apesar de meses de paixões arrebatadas e de críticas encarniçadas, nenhum apoiante ou detractor se deu ao trabalho de explicar a importância do cargo ao qual António Guterres era candidato. Tal como a saga Twilight ignorou por completo o folclore e a tradição literária do género, de Bram Stoker a Alexandre Dumas, passando por Oscar Wilde ou Robert Lewis Stevenson, o debate sobre a eleição de um novo Secretário-Geral da ONU ignorou, pelo menos em Portugal, temas prementes como a reforma do sistema da ONU, a representatividade do Conselho de Segurança, os procedimentos da Assembleia Geral, os limites da polémica R2P, as sérias debilidades das missões de 'Peacekeeping', entre outros assuntos. No espaço público português, este processo foi um deserto onde as ideias foram obliteradas pelas emoções. E agora que a vitória de António Guterres é um facto, a Team Guterres, embevecida, insiste no tom de candura juvenil e disparatada, defendendo que, por exemplo, a eleição deste nosso compatriota é na verdade um reconhecimento da enorme relevância de Portugal no mundo. Se a racionalidade não acompanhou o processo de selecção, agora que temos novo Secretário-Geral o registo do debate público continua pobre e fanático. Mas enfim, o que interessa é que o nosso galã ganhou. E, já agora, a miúda dele é muito mais gira do que aquele pãozinho sem sal dos filmes.

Mérito de Guterres, naturalmente

Pedro Correia, 06.10.16

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A ridícula manobra de última hora, patrocinada por Berlim, de lançar uma vice-presidente da Comissão Europeia de nacionalidade búlgara para travar a candidatura de António Guterres a  secretário-geral da ONU demonstrou que a Alemanha continua a ter um papel na política internacional muito inferior à sua relevância na economia.

A manobra foi canhestra a vários títulos. Desde logo pela aparente incapacidade da Comissão Europeia em perceber que Guterres, enquanto ex-primeiro-ministro de um país membro da UE e candidato oficial do Estado português, já representava o espaço geográfico europeu. Depois por introduzir uma segunda búlgara no processo, sob o demagógico pretexto de corrigir uma histórica desigualdade de género na liderança das Nações Unidas, sem que a primeira candidata – Irina Bokova, secretária-geral da Unesco – tivesse anunciado a desistência.

 

Enfim foi possível perceber que a própria Kristalina Georgieva – comissária europeia com os pelouros do Orçamento e Recursos Humanos – acreditava pouco ou nada no sucesso da sua própria candidatura: lançou-se para Nova Iorque mantendo um pé em Bruxelas, limitando-se a solicitar uma  licença sem vencimento de um mês à Comissão Europeia, logo autorizada por Jean-Claude Juncker.

Acresce que na audição informal prestada esta semana perante os membros da Assembleia Geral da ONU, exprimindo-se num inglês pouco menos que sofrível, Georgieva viu-se em apuros quando o representante diplomático de Kiev a questionou sobre a crise ucraniana: limitou-se a balbuciar umas inanidades que evidenciaram a sua impreparação para o cargo. O ex-eurodeputado português Mário David, que integrava a sua lista de apoiantes, devia ter-lhe dado recomendações suplementares, evitando que a comissária búlgara fizesse tão lamentável figura.

 

Ouvi durante toda a tarde de ontem vozes a proclamar que “a diplomacia portuguesa está de parabéns”.

Temos este costume atávico de diluir o mérito individual num anódino embrulho colectivo. Discordo, pois: o mérito cabe por inteiro a Guterres, político experiente e candidato sem anticorpos, que superou com distinção o mais complexo processo de escolha para secretário-geral desde sempre ocorrido nas Nações Unidas. Exprime-se com fluência em vários idiomas, conhece por dentro a pesada máquina institucional da ONU por ter sido durante uma década alto-comissário da organização para os refugiados. E soube resistir com fleuma a todas as pressões, incluindo as deselegantes declarações do secretário-geral cessante, Ban Ki-moon, que fez campanha pela neozelandesa Helen Clark e pela costarriquenha Christiana Figueres – altas funcionárias da ONU – sob o pretexto de que o cargo devia passar a ser exercido por uma mulher.

 

Mérito dele, pois. Por muito competentes que sejam os nossos circuitos diplomáticos, e por maior que tenha sido o voluntarismo do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, incansável apoiante de António Guterres apesar de ter sido seu adversário político, jamais conseguiriam promover o candidato se o ex-primeiro-ministro socialista revelasse a mediocridade demonstrada pela comissária búlgara. Que o diga a diplomacia germânica, reduzida à insignificância entre os gigantes do Conselho de Segurança ao longo deste processo: do querer ao poder às vezes vai um passo demasiado longo.

Um trabalhinho para o engenheiro Guterres

Inês Pedrosa, 06.10.16

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As sauditas iniciaram há 90 dias uma campanha no twitter, sob a hashtag #StopEnslavingSaudiWomen, tentando acabar com a prisão masculina a que estão sujeitas para absolutamente tudo, incluindo tratamento médico. Sim, se o "guarda" de uma mulher da Arábia Saudita decidir proibir-lhe a assistência médica, tem esse direito. A Arábia Saudita prometeu na ONU acabar com o sistema de "guarda masculina" para as mulheres em 2009, depois em 2013. Agora atira esse projecto para 2030, e as sauditas fartaram-se de viver nesta hedionda escravatura e iniciaram a corajosa campanha sobre a qual escrevi aqui 

Espero que o novo secretário-geral da ONU use o seu poder e as tais qualidades extraordinárias que dizem que ele tem para pôr fim a esta ignomínia. Se o conseguir, talvez eu consiga encontrar-lhe atenuante para o desprezo que mostrou pela saúde reprodutiva das portuguesas, em 1998, quando substituiu a lei da interrupção voluntária da gravidez aprovada no Parlamento por um referendo que prolongou por mais dez anos o drama da mutilação e morte por aborto clandestino em Portugal.

Não se esqueçam de avisar a Merkel e o David

Sérgio de Almeida Correia, 05.10.16

O arranjo floral

João Campos, 05.10.16
 

Se a memória não me falha, só na ficção científica vi o Secretário Geral das Nações Unidas ter alguma importância prática: foi em Childhood's End, romance de 1953 de Arthur C. Clarke. Logo na primeira parte do livro, a Terra recebe a inesperada visita de uma civilização alienígena que estaciona sobre as principais cidades do planeta naves colossais; o líder aparente dos Overlords escolhe o Secretário Geral da ONU como porta-voz da Humanidade, e é através dele que os extraterrestres comunicam à Humanidade o seu propósito, assim como a intenção de só após 50 anos ser revelada ao mundo a forma física dos visitantes. Fora do livro e da ficção científica, sempre tive a sensação de que o cargo é mais ou menos equivalente a uma jarra sobre um naperon, ou, se quisermos ser um bocadinho menos kitsch, a um arranjo floral no centro da mesa dessa relíquia da ordem emergente do pós-Segunda Guerra Mundial que é o Conselho de Segurança (que, por obsoleta que possa ser, é onde está de facto o poder). Sim, seria porventura simpático que Guterres se tornasse nesse arranjo floral, mas dado o cargo e dada a personagem, não há nesta eleição peculiar nada que mereça grande exaltação patriótica. 

 

(de qualquer forma, podemos ficar sempre com a imagem mirabolante que seria uma civilização alienígena não hostil a fazer o mítico "primeiro contacto" com Guterres)

до свидания, António Guterres!

Luís Menezes Leitão, 05.10.16

A Rússia está a declarar que apoia uma mulher do Leste para a ONU. Conforme escrevi aqui, tratava-se de algo mais do que previsível, levando a que Guterres tenha acabado de ouvir em russo o adeus – до свидания (Dasvidanya) – à sua candidatura. Mas na verdade a sua candidatura estava morta à nascença, porque António Guterres tem dois graves pecados originais: nasceu rapaz e ainda por cima na freguesia de Santos-o-Velho em Lisboa. Trata-se de duas situações que ele não pode alterar e que o tornam absolutamente inapto para um cargo que neste momento é  reservado a mulheres da Europa do Leste. Até agora ainda ninguém se tinha apercebido disso?