Dos políticos contemporâneos talvez os mais bem sucedidos sejam Marcelo e Guterres. Um fez uma brilhante carreira no jornalismo de politiquices e foi, entre outras coisas, deputado, líder partidário, secretário de Estado e ministro. Isto em paralelo com um percurso ilustre na Academia, estrelado com altas classificações, doutoramentos e distinções. Até chegar à condição de mais alto magistrado da Nação, que acumula com a que nunca cessou de ter, de da opinião; e o outro, descontada a cátedra, que não se deu ao trabalho de perseguir, e a banca jornalística, para a qual não tinha tanto jeito, seguiu paralelamente até chegar a primeiro-ministro e depois Alto Comissário para os Refugiados e secretário-geral da ONU, o nono na função. Simplifico as duas carreiras e não fui conferir se, na Europa, isto é, nas prateleiras de luxo do funcionalismo supranacional inimputável, algum foi alguma coisa, mas se não foram podiam ter sido, o tempo é que não chega para tudo.
Não têm ainda o nome em avenidas, mas seria talvez oportuno as edilidades das principais cidades irem pensando nisso: Lisboa, onde tudo se decide, o Porto porque gosta de se enfeitar com os ademanes da capital que não é, Braga porque parece que Marcelo torce pelo clube local, e Celorico de Basto porque lá grande não é nem na imaginação dos seus mais ferozes bairristas, mas ilustre por ser berço familiar de uma destas luminárias.
Pode adiar-se para quando (espero que daqui a muito tempo) já cá não estejam, mas talvez não seja prudente: avenidas novas não surgem todos os anos e há o risco palpável de, poucos anos volvidos, já ninguém saber quem foram os preclaros.
Nós Fontes Pereira de Melo sabemos que era o dos comboios; Barjona de Freitas o da abolição da pena de morte; o Duque da Terceira o da guerra civil; e Pombal o da expulsão dos Jesuítas e da execução dos Távoras. Já com Hintze Ribeiro, Ressano Garcia ou o Duque de Ávila temos a burra nas couves mas enfim, sempre vagamente adivinhamos que devem ser personalidades lá da politicalha da monarquia constitucional antes de lhe darem um bote. Em chegando à balbúrdia republicana, então, nomes há tantos que se confundem todos na mesma indiferença e na mesma ignorância.
Nesta III República Mário Soares, talvez Cavaco, Sá Carneiro, não correm o risco de serem rapidamente esquecidos: o primeiro enterrou o PREC político, o segundo o económico e o terceiro domsebastiou.
Gente hipercrítica e verrinosa dirá talvez que Soares começou por levar o PCP ao colo, pelo que fez a figura da rã que transportou o escorpião no dorso; e que, não fosse a localização geográfica do país, ou a esfera de influência a que pertencíamos, outro galo cantaria. Tretas: Soares ganhou. E se não tivesse ganho não era impossível que fôssemos uma Cuba europeia em vez de uma colónia de Bruxelas onde a classe média europeia vem ver o typical.
Cavaco terraplanou o manicómio em autogestão que era a economia que herdou e erigiu o edifício europeísta, social-democrata e estatista que temos. Nas mãos dos socialistas a empresa faliu; e nas dos camaradas de Cavaco não teria falido, bem como, sempre acreditou o próprio e quem o admira, Portugal ter-se-ia colado ao pelotão da frente, para usar o jargão que usava e imaginava inspirado.
Há dois Sá Carneiros: o da retórica socialista que o ar do tempo impunha e o da AD. O segundo comportava uma dinâmica anti-PS que teria evoluído, provavelmente, para governos claramente de direita (democrática), para não falar do perfil do homem, que é pouco provável tivesse cristalizado nas crenças que lhe norteavam as acções de então – morreu cedo. O historiador Pacheco acha que o primeiro é que é o autêntico; e a exegese histórica haverá no futuro, numa manhã de nevoeiro, de dilucidar a questão.
Marcelo deixa para os vindouros o episódio da vichyssoise, que não é uma memória exaltante, e os afectos, que têm o carácter efémero das coisas superficiais – passam.
Já debaixo do nariz de Guterres está a decorrer a maior crise do nosso tempo e, mesmo que uma guerra atómica não pareça para já provável, um tsunami de disrupções de todo o género varre o mundo, que já estava abalado pelo “combate” à Covid e a quebra de cadeias de distribuição. Pois bem: ainda em 4 do mês passado o miraculado estadista condenava os governos que encaminhavam o mundo para a catástrofe. A ucraniana? Que nada, a das alterações climáticas. As mesmas que justificaram no passado que a Europa em geral, e a Alemanha em particular, se tivessem colocado na dependência da Rússia porque a energia atómica não, que horror, o fracking ainda menos, credo, exploração de petróleo nem mo-lo digas, e do que precisamos é de corrupios no alto dos montes, hectares de painéis fotovoltaicos e veículos que nos atropelem porque não os ouvimos.
A Europa financia a Rússia para atacar a Ucrânia, que é financiada pela Europa para se defender. E o absurdo é tão gritante que Guterres, contrariado, lá foi, ao fim de dois meses de guerra, cedendo às injunções de meio mundo. A ONU é uma organização impotente, não pode ser outra coisa, e ninguém esperava do homem que fosse uma pedra importante no desenho de qualquer solução para o conflito. Mas é uma assembleia que preserva institucionalmente a ideia do diálogo sobre o confronto, e o respeito do Direito Internacional sobre a barbárie. Ou o secretário-geral se recusava a visitar o agressor, ponto; ou, a fazê-lo, teria ido ao princípio. Mas não: estava, e está, obcecado com as possíveis inundações no arquipélago da Tonga.
São estes os nossos maiores. Talvez devêssemos eleger, para efeito de distinções toponímicas, políticos estonianos ou lituanos. Que se saiba, não são ilustres – mas não nos envergonhariam.
* Publicado no Observador